O inacessível aborto legal no Chile

Por Anita Peña Saavedra*, em colaboração a MULHERES EM MOVIMENTO, em artigo originalmente publicado na Folha de Pernambuco

Anita Peña Saavedra, é uma ativista feminista lésbica, diretora executiva da Corporación Miles Chile para os direitos sexuais e reprodutivos, organização que desempenhou papel fundamental na legalização da interrupção voluntária da gravidez em três causais. 

Foram projetados 3.000 casos por ano quando o projeto da Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) foi discutido no Congresso. Este 23 de setembro, já se passaram três anos desde que a Lei da IVG foi publicada no Diário Oficial e o número de casos anuais desde aquela data, quando começou a ser implementada, está muito distante do que se previa. 

Segundo dados oficiais do MINSAL (Ministério da Saúde), de setembro de 2017 a junho de 2020, apenas 1.813 pessoas constituíram alguma das três causas que permitem interromper uma gravidez: quando a vida da mãe esteja em risco, o feto seja incompatível com a vida extrauterina ou tenha sido produto de estupro. 79% menos do que fora projetado para cada ano.

Ainda se encontram múltiplas barreiras para que meninas e mulheres tenham acesso a essa provisão de saúde essencial e humanitária, desde que ela começou a ser implementada, há três anos. O elevado número de objetores de consciência, uma grande desinformação sobre a Lei da IVG por parte do pessoal médico e a falta de estoque de medicamentos que permitem interromper a gravidez, são alguns dos problemas que a sua implementação tem apresentado.

De acordo com dados divulgados pelo Ministério da Saúde, as cifras acumuladas entre 2017 e o reportado até junho de 2020 mostram que 1.524 mulheres decidiram interromper a gravidez. Destas, 577 o fizeram porque suas vidas estavam em perigo, 674 porque o feto era inviável e 273 por causa de estupro. Esta última, a menor de todas, é a causa que apresenta a maior objeção de consciência. Cerca de 50% dos médicos se recusam a realizar o aborto pela terceira causal. 

Diante de qualquer observação, é desumano forçar uma mulher ou menina a continuar uma gravidez resultante de estupro. No entanto, no nosso país, as estatísticas do INE (Instituto Nacional de Estatísticas do Chile) mostram que em 2019, 649 meninas entre 10 e 13 anos ingressaram em programas de atenção pré-natal, enquanto apenas 27 garotas com menos de 14 anos puderam constituir causal de estupro no mesmo período, o equivalente a 4,16% dos casos notificados pelo Ministério.

Além do acima exposto, a Lei 21.030/17 criou um mecanismo de proteção para meninas menores de 14 anos que não tinham o apoio de sua família ou adulto responsável. A Autorização Judicial Substitutiva atende em casos graves e urgentes quando há uma violação dos direitos das meninas e elas podem ter acesso a um aborto legal em 48 horas. Porém, de acordo com dados do Poder Judiciário, até março de 2020, foram solicitadas apenas cinco autorizações judiciais substitutivas, das quais três foram negadas e duas não foram admitidas para processamento.

Assim, o elevado número de meninas vítimas de violação e o baixo número de constituições de causais são indicadores do impacto da objeção de consciência individual e institucional, a negligência por parte das instituições encarregadas de implementar este serviço e o grave descumprimento, por parte do governo, na fiscalização e garantia dos insumos e recursos necessários à sua execução.

Em tempos de pandemia da covid-19, várias organizações chilenas e latino-americanas estão monitorando o acesso ao aborto e estamos alertando que desde março deste ano, no Chile, os suprimentos básicos para a interrupção voluntária da gravidez não foram distribuídos em unidades de saúde pública. Da mesma forma, em nossa Segunda Pesquisa de Acesso à Saúde Sexual e Reprodutiva nos Tempos de Covid, das pessoas que indicaram ter enfrentado alguma barreira de acesso a esses serviços, 74% não conseguiram acessar aos anticoncepcionais, tão necessários para evitar gravidezes indesejadas. Ha algumas semanas o problema se agudizou quando foi revelado que uma remessa defeituosa de pílulas anticoncepcionais havia sido entregue a usuárias em unidades de saúde públicas. De acordo com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), tudo isso é alarmante: poderia se traduzir em mais de 18.000 gravidezes não desejadas e cerca de 8.500 abortos inseguros.

Na implementação de uma política social, o governo é o primeiro responsável e um ator fundamental no processo de fiscalização e controle. O enfraquecimento que a Lei da IVG teve é evidente. Na agenda de gênero do atual governo, preocupa a pouca importância dada a essa lei. Deve ser prioridade garantir todos os benefícios de saúde que visam salvaguardar a vida de meninas e mulheres. É imprescindível que o novo Departamento de Direitos Humanos e Gênero do MINSAL instrua todos os prestadores de saúde a habilitarem os canais de telesaúde para atender casos da Lei da IVG. Também é urgente que o fornecimento de Misopostrol e Mifepristona seja garantido, sejam reforçadas as capacitações de profissionais de saúde e se limite a objeção de consciência. Estamos enfrentando uma crise que exige respostas imediatas, para que os custos não sejam mais pagos por meninas e mulheres.

Neste 28 de setembro, em Chile, nos juntamos ao apelo pela descriminalização total do aborto em inúmeras atividades de norte a sul do país!


Este artigo foi publicado originalmente em espanhol, sob o título “A 3 años de la IVE: Las mujeres aún no podemos acceder a un aborto legal en Chile” no El Mostrador. A tradução para o espanhol foi feita por Carla Gisele Batista.