O livro da psiquiatria: “Normalidade” encolhe cada vez mais
Site Viomundo – 27/02/2012
por Heloisa Villela, de Washington
Difícil passar batido por um artigo como o que vai abaixo. Seria possível pensar: “Falta de sorte dos norte-americanos e da maneira como eles diagnosticam e tratam as doenças mentais”. Porém, não é assim.
Com suas certezas científicas calcadas em ideias pré-concebidas sem referência biológica palpável, eles ditam regras para o mundo deles e para boa parte do restante da humanidade também. Os diagnósticos adotados aqui nos Estados Unidos são seguidos de perto, ou ao pé da letra, no Brasil e aplicados, como aqui, em massa. Essa é a questão: como traçar políticas públicas para essas doenças uma vez que cada indivíduo precisa ser visto e tratado como indivíduo.
Bem, aqui no Viomundo, já entrevistamos anteriormente o Dr. Allen Frances, Professor Emérito da Universidade Duke que foi co-Presidente da força tarefa que escreveu o DSM-IV, ou seja, a edição número quatro do livro de diagnósticos da psiquiatria americana.
Agora está sendo redigido o número cinco, o DSM 5. E o Dr. Frances está liderando uma campanha pela revisão mais criteriosa do documento. Ele sabe quais são as consequências de um trabalho pouco cuidadoso nessa área, para os Estados Unidos e boa parte do mundo. Aqui vai a tradução do último artigo do Dr. Frances.
Será que a imprensa pode salvar o DSM 5 dele mesmo?
Allen Frances, no Huffington Post em 15 de fevereiro de 2011
De repente o DSM 5 se tornou uma estrela na imprensa. Nas últimas três semanas, mais de 100 artigos e reportagens sobre o DSM 5 apareceram em grandes veículos em mais de uma dúzia de países. (Para uma amostragem representativa, veja o post de Suzy Chapman no Dx Revision Watch.)
A explosão de interesse começou com uma enxurrada quando o New York Times publicou duas longas matéria sobre o DSM 5 e três editoriais relacionados a ele, tudo em apenas alguns dias. Uma coletiva de imprensa em Londres, então, gerou a distribuição em larga escala de uma reportagem da Reuters e muitos outros artigos independentes. E, ao mesmo tempo, surgiram várias outras reportagens de outros jornalistas que também estavam trabalhando em suas próprias matérias sobre o DSM 5.
A crítica intensa do DSM 5 está apenas começando. Eu sei de ao menos outros 10 jornalistas que estão preparando trabalhos para publicação no futuro próximo. E muitos dos jornalistas que publicaram reportagens nas últimas semanas têm a intenção de continuar acompanhando essa história – ao menos até a publicação do DSM 5, e talvez além disso. Eles entendem que o DSM 5 é um documento de grandes consequências individuais e sociais – e que seu impacto e riscos precisam de uma exposição pública.
A cobertura da imprensa tem sido quase uniformemente devastadoramente negativa. Os dois temas mais comuns são 1) o DSM 5 vai expandir radicalmente os limites da psiquiatria, medicando a normalidade e levando a tratamentos prejudiciais desnecessários; e 2) as decisões do DSM 5 estão sendo feitas de forma arbitrária com base em contribuições limitadas e sem o apoio científico suficiente.
As propostas do DSM 5 que provocaram maior preocupação são mudanças de definição do autismo e a expansão da doença da depressão para incluir muito da tristeza normal.
A maior parte dos artigos contém pequenas imprecisões e às vezes dão ênfase a assuntos periféricos. E as propostas mais perigosas do DSM 5 acabam recendo pouca atenção.
Eu vou discutir em posts futuros como o DSM 5 vai agravar o exagero de diagnósticos de déficit de atenção e a super-prescrição de remédios antipsicóticos. Mas a imprensa percebeu os principais pontos direito e de alguma forma conseguiu falar dos riscos do DSM 5 de forma bem mais clara do que as pessoas que estão trabalhando nele.
Será que finalmente a Associação Americana de Psiquiatria (APA) vai dar ouvidos a este coro de críticas? Na última hora crucial, quando tudo mais tiver falhado, os jornalistas mundiais vão salvar o DSM 5 dele mesmo? O poder da caneta será maior do que as espessas paredes que até agora protegeram o DSM 5 da autocorreção? A força irresistível da imprensa poderá mover o antes imóvel DSM 5?
As respostas iniciais do DSM 5 não são encorajadoras – um caldo de imprecisões, enganações e declarações pouco convincentes que nunca atacam qualquer assunto de forma substantiva. E a APA provou anteriormente ser impressionantemente indiferente, obstinada e teimosa.
Nos dois últimos anos, o DSM 5 praticamente não fez mudanças em suas propostas – apesar de ter recebido uma variada gama de críticas. A APA também deu casualmente de ombros para a petição que se opõe a várias das propostas do DSM 5 e pede que elas sejam revistas por um painel científico independente.
O fato de a petição ter o apoio de 47 organizações diferentes e importantes de saúde mental parece não ter tido o menor peso. A APA também ignorou o plano de boicote do DSM 5 de muitos usuários que propõem substituí-lo pelo sistema alternativo de código ICD-10-CM (disponível, de graça, na internet).
Será que a publicidade negativa na imprensa resultará mais favorável para o DSM 5? Certamente, devemos ter esperança que sim – porque pouquíssimas opções estão disponíveis.
O DSM 5 continua dando apoio rígido a propostas realmente ruins que têm consequências não intencionais mas extremamente perigosas para a saúde pública. Um pequeno grupo de especialistas do DSM 5, sem contato com a realidade, está muito próximo de alcançar o que se pode chamar de um golpe radical – redefinir uma já muito ampla psiquiatria em detrimento de uma normalidade que encolhe rapidamente.
As muitas expressões de oposição de profissionais e do público que não fazem parte deste pequeno e hermeticamente fechado círculo foram quase completamente ignoradas.
Mas eu tenho alguma esperança de que essa barragem concentrada da imprensa possa ter sucesso onde outros esforços falharam. É justo dizer que o DSM 5 se tornou um objeto de piada do público em geral e dos profissionais. Talvez assim, por fim, estocado pela imprensa mundial, o DSM 5 terá que prestar atenção aos alertar unânimes de cautela.
Vamos torcer para que ele finalmente tenha caído em si e reduza os danos, rejeitando as piores propostas. Isso será um serviço à psiquiatria e, mais importante, ao futuro de nossos pacientes atuais.
Paradoxalmente, a cobertura terrivelmente embaraçosa que ele tem recebido da imprensa pode evitar, para o DSM 5 e para a APA, uma situação muito embaraçosa no futuro e, mais importante, evitar que milhares de pessoas, literalmente, sejam erroneamente rotuladas como doentes mentais e desnecessariamente expostas a medicamentos de risco.