O lugar das Câmaras Municipais

Valor Econômico – 02/08/2012

Resolvi me submeter a um teste. Convido o leitor a fazer o mesmo. Durante alguns minutos me dispus a escrever em um papel o nome de todos os vereadores da cidade onde resido (Rio de Janeiro). Lembrei de quatro nomes. Um deles estava errado; listei um vereador de muitos mandatos que não havia sido eleito em 2008. Sequer lembrava que a atual presidente do Flamengo é vereadora. Como acompanho a política municipal, fiquei desapontado com a minha performance. Mesmo que saiba que ela, provavelmente, é muito melhor do que a da maioria das pessoas.

O que aplacou a minha decepção é que já li algumas livros sobre a fragilidade da memória humana. Lembramos de coisas triviais e esquecemos de fatos fundamentais. Esquecemos completamente de tópicos aos quais dedicamos horas estudando e mal conseguimos resumir o enredo de um livro meses depois que ele foi lido. Mas neste caso, não creio que estivesse diante de mais um exemplo de falha do meu sistema cognitivo. De fato, prestamos muito pouca atenção ao que acontece no legislativo, particularmente no âmbito municipal.

Não conheço pesquisas sistemáticas com a avaliação dos cidadãos sobre o trabalho realizado pelas câmaras de vereadores. Mas minha impressão é que o interesse pela atividade dos legislativos municipais é cada vez menor. Deixo mais duas perguntas para o leitor: Qual foi o projeto mais importante para a sua cidade votado na câmara dos vereadores durante esta legislatura? Você tem notícia de alguma proposição do Executivo que tenha sido rejeitada pelos vereadores de sua cidade? (um esclarecimento: não soube responder a nenhuma das duas questões).

Fortalecimento do Executivo esvaziou Casas

As raras pesquisas feitas pelos cientistas sociais e as reportagens que volta e meia aparecem na imprensa convergem na descrição que fazem do trabalho das câmaras municipais. O Executivo tem o controle quase absoluto da “grande agenda”, restando aos vereadores, quase sempre, o lugar da “pequena política”: o trabalho de atendimento a segmentos específicos do eleitorado, as homenagens, as indicações ao Executivo, as leis de reduzido alcance. Claro que existem os vereadores dedicados às tarefas legislativas clássicas e à fiscalização do Executivo, mas eles são minoritários.

Quem tem dúvida a respeito do lugar da representação dos “pequenos interesses” no âmbito local basta aguardar o inicio do horário eleitoral gratuito. A cada eleição os candidatos parecem fazer apelos a clientelas mais específicas, se dispondo a representar interesses cada vez mais particulares. Aos tradicionais representantes de bairros e das corporações, se somaram os nomes ligado a todo tipo de ofício, de diferentes segmentos econômicos, esportivos e de identidade. É sintomático que raramente um candidato faça menção ao seu partido político durante o horário eleitoral.

Um trabalho cuidadoso pode nos ajudar a avaliar como as atribuições das Câmaras Municipais mudaram ao longo da história (é importante lembrar que, criadas ainda na Colônia, elas são as instituições mais antigas do sistema representativo brasileiro). Mas minha impressão é que o esvaziamento dos legislativos locais está associada ao quadro mais geral de fortalecimento do Executivo na política brasileira a partir de 1988. Particularmente nos municípios, este fortalecimento está associado ao lugar que as prefeituras passaram a desempenhar na implementação de políticas públicas na área de saúde, educação e assistência. Isso sem falar na dependência financeira que muitas delas passaram a ter em relação aos repasses de recursos federais.

Neste quadro de lento esvaziamento dos legislativos municipais, dois fatos chamam à atenção. O primeiro foi a aprovação, em 2009, de uma Emenda Constitucional que estabeleceu o número máximo de vereadores, segundo às população de cada cidade. Os legisladores se esmeraram e criaram 24 faixas diferente. Para cada uma delas foi definido um número máximo de vereadores; as cidades abaixo de 15 mil habitantes, por exemplo, podem ter no máximo nove vereadores. Cabe à Câmara Municipal definir o número de vereadores que a cidade terá. Não consegui obter os dados oficiais com o total de postos criados, mas de acordo com um levantamento preliminar feito no começo de julho, o número de novos vereadores chegava à 5.070. Claro que os impactos fiscais desta ampliação demorarão ainda mais para serem conhecidos.

Chama a atenção ainda o fato de as Câmaras Municipais praticamente não terem sido mencionadas nas intermináveis discussões sobre reforma política feitas ao longo da última década e meia no país. As diversas propostas de adoção de um novo sistema eleitoral, por exemplo, se concentraram exclusivamente na eleição de deputados federais. E sempre seguindo a premissa, ao meu ver, equivocada, de que o mesmo sistema eleitoral utilizado nas eleições para representantes nacionais deve ser replicado nos estados e municípios. Por que mesmo?

Não tenho nenhuma ilusão com relação a possibilidade de que se volte a falar de reforma do sistema eleitoral nos próximos anos. Mas apesar desta descrença, creio que é fundamental uma profunda discussão sobre os legislativos municipais. Entre os temas que merecem uma discussão aprofundada estão: a introdução de um novo sistema eleitoral (por exemplo, um sistema majoritário-distrital nos pequenos municípios e um sistema que combinasse distritos e representação proporcional nas maiores cidades); a simplificação do sistema bizantino para definição do número de vereadores de cada cidade (com suspensão da prerrogativa de as próprias Câmaras definirem o número de vereadores da cidade); a associação permanente (e explícita) entre os subsídios recebidos pelos vereadores e o tamanho da Câmara Municipal.

Jairo Nicolau é professor de ciência política da UFRJ, autor de “Eleições no Brasil: do Império aos dias atuais” (Zahar, no prelo) e colunista convidado do “Valor”. Humberto Saccomandi volta a escrever em setembro.