O mundo privado invade o público
Por Celio Levyman
A Folha de S.Paulo, em matéria de Laura Capriglione e Lucca Rossi, com box de análise feita por Hélio Schwartzman, abordou uma questão mais do que importante na edição de 7 de maio: “No HC, paciente com plano de saúde é VIP”. Não é novidade, mas mostra que as coisas estão se acentuando, com perigosas implicações no conluio entre o público e o privado na área da Saúde, que nos remetem até mesmo a indagar a constitucionalidade de várias coisas e perguntar: se não é algo novo, se está se acentuando, por que a imprensa noticia de quando em vez e se cala nos editoriais e na marcação de posição? Vamos por partes.
O Hospital das Clínicas é o maior complexo hospitalar do país e a instituição de ensino e pesquisa anexa à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. É referência em ensino e pesquisa, mas também em assistência de qualidade. Os alunos da FMUSP tinham seu treinamento prático na Santa Casa até o HC ser construído por Adhemar de Barros. Como não poderia deixar de ser, apesar de nominalmente ser o “Hospital das Clínicas da FMUSP”, sua administração era diretamente ligada à Casa Civil do governo do estado. Evidentemente que os professores da FMUSP tinham voz ativa, mas o Poder Executivo decidia as coisas. Não se tratava de exclusividade do HC; por exemplo, o Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE), quando criado pela então governador Jânio Quadros, era autarquia vinculada à Secretaria da Administração.
O PAS, grosseiro e arrivista
Apenas no final dos anos 1980 esse tipo de coisa foi corrigida, passando o HC a ser realmente dirigido pela FMUSP e, assim como o HSPE, vinculado à Secretária estadual da Saúde. O turning point, evidentemente, foi a Constituição de 1988, que celebrou o mote “Saúde é direito de todos e dever do Estado”. Como o SUS, instituído pela chamada Constituição Cidadã, municipalizava os serviços de saúde públicos, órgãos federais, como o Inamps, foram extintos e seus equipamentos e pessoal transferidos para a esfera estadual. Aliás, a questão do que deve ser de alçada dos governos estaduais e municipais não ficou claramente definida com a lei que regulamentou o SUS, especialmente a destinação e divisão da verba destinada ao setor, prevista na Emenda Constitucional 29, até hoje empacada e sem votação no Congresso.
Além de proclamar o direito universal à Saúde e que esse é dever do Estado, o texto legal claramente informa que instituições privadas podem participar da Saúde Pública apenas de modo complementar – o melhor exemplo são as Santas Casas, instituições filantrópicas que são as que mais atendem os usuários do SUS. O mundo não é tão bonito assim e as leis são interpretadas de acordo com interesses os mais variados, como todos sabemos.
Dessa maneira, já no início dos anos 1990 começou um movimento, inicialmente restrito à Prefeitura de São Paulo. Havia a intenção de entregar a gestão dos hospitais municipais para entidades de classe, como a Associação Paulista de Medicina e o Cremesp, por exemplo. Os esforços realizados para concretizar essas ideias não vingaram e o então prefeito, Paulo Maluf, optou por criar o Plano de Assistência à Saúde, o PAS, verdadeira privatização do sistema público municipal de saúde, grosseiro e arrivista, que mereceria mais de um livro para ser explicado com maiores detalhes. Foram criadas pseudo-cooperativas, sem qualquer espécie de processo licitatório, e os próprios municipais entregues às mesmas, que recebiam verba mensal (do bolso dos contribuintes, claro…) para gerenciar as coisas. Tudo foi tão complicado que se mensurou estatisticamente a queda dos casos de maior complexidade atendidos pela Prefeitura, assim como da qualidade, até a inconstitucionalidade desses atos (em brilhante sentença liminar do então presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Yussef Cahali), ações dos Ministérios Públicos Estadual, Federal e do Trabalho; autuações aos montes da Delegacia Regional do Trabalho, processos no Cremesp e assim por diante, além de ações populares. Mas praticamente nada prosperou, dada a possibilidade de haver sempre recursos, além de uma óbvia interferência política. E morreu gente por causa desse sistema! Inquéritos policiais foram abertos, mas nunca concluídos.
A chamada “dupla porta”
Na ocasião, como seria lógico, os políticos do PT e do PSDB juntaram-se às entidades de classe dos profissionais de saúde e de representantes da sociedade para combater o tão falado PAS. O próprio governo estadual paulista colaborava em muitas coisas na chamada luta contra o PAS. Ocorre que, insidiosamente, no auge da movimentação contra o plano malufista, o governo federal – de FHC – faz aprovar o projeto de lei que institui as chamadas organizações sociais de saúde, as OSS.A atenção acabava sendo dada à questão paulistana, e pouca atenção se prestou à nova legislação. Eis que Mario Covas inaugura nove novos hospitais estaduais em São Paulo: equipados, nenhum deles teve concurso público ou coisa semelhante. A gestão dos mesmos foi entregue a entidades privadas, as OSS. Demorou para cair a ficha, mas logo se percebeu que não eram cooperativas como as de amigos de Maluf, mas ligadas a entidades hospitalares ou de ensino respeitáveis, porém escolhidas pelo governo, sem nenhum critério. Admitiam os funcionários por seleção, por breve entrevista e análise de currículo, e os mesmos eram contratados via CLT. E o pior: a legislação não obrigava essas OSS a prestar contas de seus atos a ninguém, especialmente à sociedade. Verdadeiras caixas-pretas com dinheiro público.
O PAS acabou depois do governo Pitta, mas as OSS só fizeram se espraiar, atualmente atingindo não apenas os hospitais estaduais, mas também os municipais (e unidades básicas de saúde também). Embora haja clara diferença em relação à truculência e grosseria das pseudo-cooperativas malufistas, na análise um pouco mais detalhada se observa que na verdade é a mesma coisa. O tal dever do Estado em relação à Saúde e a participação suplementar da iniciativa privada, intocáveis constitucionalmente, foram deixados de lado – o governo simplesmente acaba assinando um atestado de incompetência para gerir a Saúde e entrega os prédios, equipamentos e dinheiro para uma entidade privada, mesmo que ligada a instituições de aparente notabilidade, gerir dinheiro, pessoal e demais aspectos. E sem obrigação de mostrar a ninguém o que fazem com o dinheiro público.
Esse tipo de coisa começou provavelmente ainda na década de 1970, quando foi inaugurado o Instituto do Coração (Incor) do HC da FMUSP, gerenciado por uma entidade privada, a Fundação E.J. Zerbini. Alguns anos após, quase todo o restante do complexo HC também passava a admitir planos de saúde e particulares, via Fundação Faculdade de Medicina. E daí nasceu a chamada “dupla porta”, citada na reportagem da Folha.
Entidades médicas pedem reajuste que os planos negam
Durante vários anos, saíram muitos artigos assinados na Folha e no Estadão pela dupla de médicos Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternak, e outros de José Aristodemo Pinotti. Amato é professor emérito, titular aposentado de infectologia da FMUSP, foi secretário estadual da Saúde e superintendente do HC. Jacyr sempre foi muito ligado a ele, também é infectologista e participou da direção do hospital. Já Pinotti, falecido, foi professor titular de ginecologia da FMUSP, secretário estadual da Saúde, deputado federal e, antes disso, professor titular e reitor da Unicamp. Escreveram muitos e muitos textos contrários à “dupla porta”, em favor do SUS, sem contaminação pelos planos privados, a favor de um HC inteiramente gerido e mantido com dinheiro público. Mas apesar de serem bastante conhecidos e influentes, seus protestos foram em vão e, como a reportagem mostra, a tendência é ainda a de aumentar a participação dos convênios no HC.
As direções que geriram o HC/Incor sempre responderam às críticas de Amato e Pinotti, dentre outros, com o argumento de que os valores pagos pelo SUS são muito baixos, o que é verdade, que a verba destinada ao hospital pelo governo estadual também não dava conta e que os convênios tinham uma participação mínima no total dos atendimentos; que o aspecto financeiro, de pagarem mais, auxiliava a manter o padrão da instituição e, consequentemente, a financiar, por assim dizer, o atendimento ao SUS, que era igual ao dos pacientes de convênio.
Balela. Os convênios pagam mais que o SUS, é verdade, mas os valores continuam muito abaixo da crítica – recentemente houve mais um movimento pelo reajuste do que os planos pagam a médicos e prestadores de serviço. Há anos isso ocorre sem resultados práticos. Enquanto os planos de saúde cada vez cobram mais caro de usuários, empresas e indivíduos e aumentam os valores conforme a faixa etária mantém congelados valores de consultas, por exemplo, o atendimento básico mais simples de calcular – pagam uma média de R$ 20 reais por consulta, alguns pagando bem menos do que isso, mas nunca mais que R$ 40, com raríssimas exceções. E dizem não ter condições de arcar com o aumento desses valores. Embora muito caro todo mês, esse sistema de saúde suplementar atende atualmente a quase 50 milhões de brasileiros. E as entidades médicas pedem um reajuste – que tais planos negam – para a fortuna de R$ 60 reais!
A mídia parece apenas observar
Fica claro que é quase impossível hoje manter-se um consultório apenas com atendimento a planos de saúde. E mesmo os hospitais privados sofrem com os baixos valores e grande número de atendimentos, havendo até a piada de mau gosto de chamar os convênios de “SUS de quem tem emprego”. A esse ponto chegamos. Porém, quando há uma estrutura maior, internam-se pacientes, realizam-se exames complementares (misteriosamente mais bem pagos proporcionalmente pelos planos de saúde que as consultas) nesse mix, com uma administração mais eficiente, há um respiro financeiro maior. Mas para isso acontecer acaba por ser discriminada a população que tem apenas o SUS, sendo reais fatos descritos na imprensa como a demora de até anos para realizar um exame de alta complexidade ou cirurgia via SUS, enquanto através de convênios as coisas são muito mais rápidas, fast track.
Nos EUA praticamente não há atendimento público à Saúde. Mesmo a atual reforma proposta pelo governo Obama modifica várias coisas, mas o atendimento é feito em instituições privadas. Ocorre que no Brasil, além da cultura ser diferente, a enorme maioria de nossos patrícios ainda depende do SUS, não tendo como arcar com os custos de um plano de saúde. Daí a indignidade de situações como as descritas no HC. E o argumento de que muitos usuários da instituição vão lá pelo SUS mas possuem planos privados para justificar a “dupla porta” é um engodo, pois há legislação federal que permite o SUS ser ressarcido pelo atendimento de usuários de planos privados em instituições públicas. Mas essa cobrança não é feita.
É privatização da Saúde? Sim. Desrespeita a Constituição? Certamente. Cria categorias diferentes de pacientes em instituição pública? Claro. Mas tudo continua como está.
E matérias com a da Folha ora comentada são bem-vindas. Mas aonde estão os incisivos editoriais cobrando as coisas certas? E os demais instrumentos da mídia? A sociedade fica completamente apartada de tais decisões – e quem a protege? O Ministério Público, apesar de seus esforços, pouco consegue fazer. Os governos, de todos os partidos, são cúmplices em tudo isso. Entidades de classe não possuem poder suficiente para interferir decisivamente nessas questões. Cabe à imprensa denunciar, exibir, contestar, protestar – a sociedade fica indefesa se não há quem por ela lute, dada a desproporcionalidade dos poderes envolvidos. Mas a mídia, em perverso trocadilho com o que se faz aqui, parece apenas observar. E em termos de Saúde, observar sem nada fazer pode levar à morte, literalmente.
Fonte: Observatório da Imprensa (10/05/2011)