O novo SUS da Dilma
“É um mercado que está organizado de modo predatório e suicida, com seus três agentes em guerra aberta atualmente”, escreve a jornalista Ana D’Angelo. Artigo foi publicado no Correio Braziliense.
O setor de planos de saúde tende a se tornar uma fonte crescente de problemas, que já atingem a classe média e ameaçam estender para todos os brasileiros o drama até então restrito ao Sistema Único de Saúde (SUS). Consequência saudável do crescimento econômico e da ascensão à classe C de milhões de pessoas que estavam na base da pirâmide social, o número de usuários quase dobrou nos últimos 10 anos, passando de 34 milhões para 62 milhões de beneficiários, se contarmos todas as modalidades de planos. Ter um convênio é o benefício almejado por 90% dos empregados e é cada vez mais oferecido pelas empresas.
O problema é que a rede assistencial de médicos e hospitais não cresceu na mesma proporção. Pior: as associações médicas denunciam que tem havido um encolhimento. A continuidade do crescimento econômico só vai aumentar a adesão de novos beneficiários ao sistema. Hoje, o setor já movimenta mais recursos que o SUS. Em 2010, a receita das operadoras atingiu R$ 74 bilhões para atender 25% da população, enquanto o sistema público recebeu R$ 68 bilhões de recursos para os 75% restantes.
Apesar desse faturamento maior, há um gargalo na demanda, pois a rede que atende não está dando conta, o que tem prejudicado o atendimento e gerado reclamações que já envolvem todas as classes sociais. Mesmo hospitais de referência das elites nas principais cidades brasileiras têm dificuldades para atender à crescente demanda.
E, em casa em que falta pão, todo mundo reclama e todo mundo tem razão. As operadoras se queixam dos custos crescentes e do rol de procedimentos que têm de cumprir, sempre em expansão. As pequenas operadoras estão enfrentando problemas econômicos e financeiros e um mercado que caminha para a maior concentração. Os prestadores de serviço, com destaque para os médicos, reclamam da mísera remuneração e ameaçam com movimentos grevistas.
O usuário, que tem a despesa adicional a honrar no fim de cada mês — a mensalidade, muitas vezes reajustada com índices superiores à inflação oficial, caso dos contratos individuais —, se frustra quando não consegue usar os serviços nos momentos de maior necessidade. Houve até cliente que foi atendido mais rapidamente pelo SUS do que pela operadora. É um mercado que está organizado de modo predatório e suicida, com seus três agentes em guerra aberta atualmente.
Burocracia e ineficiência
O órgão público encarregado de colocar ordem no setor, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), não conseguiu mudar esse quadro. “Estamos vivendo uma crise”, afirmou o médico e historiador econômico Eduardo Perillo. A agência reguladora é mais conhecida pelo que deixa de fazer em favor dos consumidores. É uma estrutura pesada e burocrática. Sua origem, em 2000, explica parte de sua ineficiência atual.
A cidade escolhida para ser a sede foi o Rio de Janeiro, distante do governo central e das grandes operadoras, que estão em São Paulo. Uma piada que corre é que a sede foi parar no bairro carioca da Glória pela proximidade das barcas que levam até Niterói, onde moraria a primeira diretoria. Perillo lembra que foram utilizados manuais de procedimento do antigo Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) da década de 1970, que, por sua vez, herdaram a estrutura das antigas Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs) e dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), do governo Getúlio Vargas. “Tínhamos um papel em branco para escrever e optou-se por resgatar um processo burocrático do Estado Novo, da Era Vargas”, resume Perillo.
Além disso, há dentro da agência, historicamente, um grande conflito entre os grupos que os próprios servidores da casa consideram como da captura pelo mercado ou pelos políticos, que vivem em guerra permanente, deixando de lado os interesses do usuário. E isso vem de longe. “É hora de sentar e rever o que está sendo feito”, avisa Perillo.
Pedra no sapato
Órgãos de defesa do consumidor reconhecem que o quadro de pessoal da ANS é bom e qualificado, mas isso não impede que o resultado em seu conjunto seja ruim. Houve iniciativas positivas, como a definição de uma agenda regulatória e com abertura para maior participação, mas não foram suficientes para reverter o conflito autofágico do mercado.
Como informou o Correio na última quinta-feira, as novas medidas anunciadas pela agência, que fixam prazos máximos para consultas, tende a ficar no papel, pois a ANS não terá meios de fazê-las valer. Na área de fiscalização, ninguém paga multa, pois as operadoras apresentam recursos continuados até que haja prescrição.
Até hoje, os problemas de saúde no Brasil são fundamentalmente dos pobres. A morte silenciosa sem assistência nos corredores dos hospitais do SUS ocorre de forma fragmentada. Mas a deficiência no atendimento médico-hospitalar está atingindo também as classes média e alta em frequência suficiente para ganhar a repercussão que a tirará da fila dos pobres do SUS. Virará problema da elite. Com isso, vai se tornar uma pedra no sapato da presidente Dilma Rousseff na área social.
Ana d”Angelo é repórter de economia
Correio Braziliense – (24/07/2011)