O parto roubado é um conceito político de resistência
Por Fátima Oliveira/ Jornal O Tempo
O parto é um evento e uma construção social. Parir é ato fisiológico que pertence à mulher. Não é um ato médico ou de obstetriz. O parto é cercado de ritos, rituais e crendices, conforme a cultura. “Assistir ao parto” é respeitar a sua natureza biológica, social, cultural e espiritual. As parteiras tradicionais, sabiamente, não dizem que “fazem parto”, mas que “assistem a parto”! Notaram a diferença?
A assistência ao parto tem recebido influências culturais diversas e incorporado procedimentos tecnológicos invasivos ou não, aspectos patentes de medicalização, e uma gama de intervenções/controles externos. Não esquecendo que a medicalização é um poder político, há: 1) parto sem tecnologias invasivas; e 2) parto medicalizado: com ou sem hospitalização e com ou sem uso de tecnologias invasivas (drogas e outros procedimentos).
Parto normal não é sinônimo de parto desmedicalizado. Parto domiciliar nem sempre é sinônimo de parto normal. É senso comum que, em trabalho de parto, temos uma “mulher em sofrimento” e as pressões sociais, psicológicas e culturais da dor e do sofrimento favorecem a medicalização.
Assistir ao parto exige competência técnica, humanística e ética. Vale para obstetras, obstetrizes e parteiras tradicionais, igualmente. Independentemente da cultura, e em respeito a cada cultura, a exigência ética geral relativa ao parto consiste em acolher a sua natureza fisiológica e combater a violência institucional e profissional. Cesariana salva vida, mas a indicação abusiva viola direitos humanos, violenta e mata!
O Brasil exibe 55% de cesáreas, quando a OMS recomenda até 15%; na rede privada são 84%. Logo, a maioria delas integra o altar dos partos roubados – aqueles em que o poder médico, a arrogância e a preguiça médicas não permitiram que acontecessem por via vaginal, naturalmente. Se há uma profissão que não combina com preguiça é a medicina! Cesáreas desnecessárias revelam uma única coisa: preguiça de assistir a partos!
O preâmbulo é uma tentativa de entender o acontecido em Torres (RS), na madrugada do último dia 1º, com o casal Adelir Carmen Lemos de Góes e Emerson Lovari, com um filho de 7 anos e uma filha de 2 anos, nascidos via cesarianas, que desejava que o terceiro parto fosse natural, mas foram intimados (com ordem judicial, aparato policial e o escambau!) a retornar ao Hospital Nossa Senhora dos Navegantes. Ordem judicial não se discute: cumpre-se, mesmo com indícios de violação aos direitos reprodutivos, que integram os direitos humanos, como aparenta ser o caso de Torres!
Havia uma indicação médica de cesariana, quando Adelir, com 42 semanas de gravidez, esteve no hospital, dia 31 passado, com lombalgia e dores no baixo ventre, e recusou a cesariana, assinando desistência. A maternidade apresentou denúncia ao Ministério Público.
Acionado, o promotor Octavio Noronha, de posse exclusivamente de dados fornecidos pela maternidade (feto em posição podálica – em pé no útero; gestação avançada, na 42ª semana; gestante com duas cesarianas prévias) e imbuído da compreensão leiga de que medicina é matemática, em que 2+2 dá sempre 4 – há outras opiniões médicas que desconsideram os dados como indicação de cesárea –, acionou a Justiça por medidas protetivas da gestante e do feto e antecipação de tutela. Adelir foi escoltada por nove policiais para a maternidade. Nasceu Yuja, de cesariana!
A judicialização da atenção obstétrica e neonatal está na praça. O que fazer? Prontuário médico fala, deve ser periciado com rigor!