O povo quer mais política social, mais democracia e menos polícia

RENATO NUCCI JR. | Correio da Cidadania

O Estado capitalista brasileiro, incapaz de oferecer saída popular e progressista à crise social em curso, enveredou pelo caminho do recrudescimento das ações policiais como meio de conter protestos considerados violentos. O governo Dilma, associado aos seus parceiros Alckmin em São Paulo e Cabral no Rio de Janeiro, propôs um pacto destinado a contê-los. Pretendendo fazer com que os manifestantes voltem a temer a polícia, querem recuperar a autoridade pública acentuando as penas contra quem agredir policiais ou praticar atos de vandalismo contra o patrimônio público ou privado. Trata-se de reação a dois fatos recentes, ambos inseridos no contexto da nova conjuntura política e social aberta com as manifestações de junho.

A primeira é a de responder a agressão sofrida pelo coronel Reynaldo Simões Rossi, da PM paulista, em manifestação convocada pelo Movimento Passe Livre em 25 de outubro. Referido militar é o mesmo que em 13 de junho comandou a tropa de choque na bárbara repressão aos manifestantes e população paulistana. A presidenta Dilma, manifestando uma indignação seletiva, pois em nenhum momento repreendeu as ações violentas da polícia contra os manifestantes, solidarizou-se com o coronel e classificou a ação dos manifestantes como ato de “barbárie”, acusando-os inclusive de “fascistas”.

A segunda é a de responder à indignação popular causada pelo assassinato do jovem Douglas Martins Rodrigues, de 17 anos, em uma abordagem policial na capital paulista, dois dias após o espancamento do coronel Rossi. Revoltados, os moradores da região onde morava o jovem reagiram queimando ônibus, carros, destruindo agências bancárias e fechando a rodovia Fernão Dias, principal eixo de ligação entre São Paulo e Belo Horizonte. Nesse caso, Dilma manifestou sua solidariedade à família de Douglas e lamentou a morte do jovem, culpando a “violência cotidiana”, mas sem apontar seus principais responsáveis, o Estado e a polícia militar. Tampouco classificou o caso, mais um entre tantos outros a vitimar jovens pobres, como um ato de barbárie e de fascismo.

A tentativa de punir mais duramente os atos considerados violentos, como destruição de patrimônio público ou privado e a agressão a policiais, é uma maneira de tentar conter os protestos onde os manifestantes realizem ações mais radicalizadas. Ao mesmo tempo, aumentar as penas nos casos de violência praticada por manifestantes contra policiais, tratando-os como vítimas indefesas, servirá exclusivamente para lhes conferir maior arbitrariedade e violência contra a população.

Todavia, os governos em todas as esferas estão pouco preocupados com isso. A grande burguesia brasileira, através de seus políticos profissionais em seus mais diferentes vernizes ideológicos, blindou o Estado à pressão dos trabalhadores e da maioria da população. Os governos têm funcionado prioritariamente para atender as demandas e interesses do grande capital monopolista. Aos trabalhadores, como política geral de apassivamento, restam migalhas, seja na forma de políticas compensatórias, seja na forma de um endividamento familiar que sustenta o consumo de eletroeletrônicos e de automóveis novos e seminovos. Quanto às políticas públicas de caráter universal em áreas de interesse popular, como saúde e educação, por exemplo, são relegadas e cada vez mais desmontadas para justificar sua privatização.

O problema para a burguesia brasileira é que essa política de apassivamento chegou ao seu limite. As massas populares que saem às ruas desde junho deram um basta coletivo a essa política, que não se resume a uma forma específica de governo, mas a uma forma de ação do Estado. As massas demonstraram querer uma ação mais positiva do Estado, no sentido de ampliar e garantir direitos universais. Os cartazes que se proliferaram à época da Copa das Confederações pedindo “Escolas e hospitais com padrão Fifa”, em alusão aos gastos exorbitantes com a reforma de estádios, evidenciam as expectativas populares em torno de um projeto “reformista forte”. Ou seja, de um projeto de reformas sociais capazes de aplicar os direitos já consagrados em lei, mas tornados letra morta, além de ampliá-los, mesmo ao custo de grandes confrontações políticas com as classes dominantes.

Até então, a burguesia brasileira respondia aos movimentos mais organizados e combativos, descontentes com as migalhas ofertadas pelas políticas de apassivamento vigentes, com a repressão policial e criminalização do protesto popular. Como suporte a essa política, os meios capitalistas de comunicação, distorcendo as reais intenções dos movimentos populares, agiam para colocar contra eles a maioria da população. Isoladas, suas ações eram vistas como inoportunas por vastas camadas da população, que as consideravam como um estorvo à ordem pública, recebendo mirrado apoio e despertando pouca simpatia.

Desde junho, porém, a situação mudou. Os desmandos da vida política nacional, a completa submissão do Estado aos interesses do grande capital, a falta de políticas públicas de caráter universal, a exploração desbragada sofrida pelos trabalhadores, as injustiças sociais, os privilégios garantidos aos criminosos de “colarinho branco” etc. fizeram esgotar a paciência da maioria da população. Restrita inicialmente à luta pela redução nas tarifas de transporte público, extrapolou para demandas sociais e políticas mais amplas, ficando claro que a luta não era apenas pelos 20 centavos.

A violenta repressão policial sofrida pelos manifestantes paulistas em 13 de junho despertou grande simpatia popular e se tornou a catalisadora de toda a insatisfação social vivida resignadamente por anos. O direito a protestar, se não recebe em alguns casos efusivo apoio, tornou-se, ao menos, mais tolerado. Esse fato demonstra que parcelas crescentes da população não mais admitem viverem em uma sociedade que lhes garante parcos e precários direitos, cujo único retorno recebido do Estado quando protestam contra essa situação resume-se a balas de borracha e gás de pimenta. Em outras palavras, as massas populares querem mais política e menos polícia.

Contudo, o Estado capitalista e seus gerentes governamentais, pouco importa o verniz ideológico de seus partidos, não querem compreender essa situação. E são incapazes de fazê-lo, não por ignorância ou cegueira política, mas porque ampliar os direitos sociais reclamados pela população nas manifestações significa atingir os interesses das classes dominantes a quem eles protegem com lealdade canina. O atual ciclo de acumulação capitalista em curso no Brasil requer uma completa submissão do Estado aos interesses do grande capital monopolista. Nesse sentido, com manifestações populares cobrando do Estado a efetiva garantia de direitos sociais inscritos na Constituição Federal de 1988 (CF/88), a burguesia e os seus gerenciadores têm, em um plano imediato, dois caminhos: cooptar as lideranças que emergem dessas lutas ou manter a velha e cada vez mais desgastada tática da repressão policial e judicial.

O primeiro caminho se torna inaplicável dada a inexistência de um vetor político organizado e facilmente identificado, com influência de massa suficiente para canalizar toda a insatisfação social rumo a sua institucionalização. As vitórias populares obtidas a partir das manifestações de junho, mesmo parciais, foram alcançadas com as massas nas ruas sem que nenhum centro político as convocasse. A peculiaridade do atual ciclo de lutas populares iniciado em junho tem como uma de suas marcas a falta de uma organização política que centralize, organize e convoque as mobilizações. Não estamos aqui a cultuar o espontaneísmo e criticando a forma-partido, tão em voga nos dias atuais. Trata-se apenas de constatar o espírito que reina entre as massas populares que se mobilizam, demonstrando as dificuldades colocadas à burguesia e ao Estado para cooptar o movimento e desmobilizá-lo.

O segundo caminho, o da repressão policial e da criminalização das lutas, continua sendo o mais empregado. Porém, não atinge mais os efeitos esperados. Repetimos: parcelas crescentes das massas populares perderam o medo da polícia e adotam formas de protesto cada vez mais radicalizadas. Em suma, a paciência do povo se esgotou e as bombas de efeito moral lançadas pela polícia não intimidam mais. Pelas ruas brasileiras desfila uma juventude destemida, que encara corajosamente policiais bem armados e treinados. Desde junho, uma juventude proletária, desencantada com as promessas furadas de um país próspero e promissor, indignada com as injustiças sociais e a aviltante desigualdade social brasileira, perdeu o medo da polícia e adota formas de protesto com um grau de radicalidade ao qual estávamos desacostumados.

A grande burguesia brasileira e seus inquilinos nos palácios de governo se meteram em uma encalacrada. Blindaram o Estado brasileiro às pressões populares no sentido de efetivar os direitos sociais inscritos na CF/88, colocando-o a serviço exclusivo do processo de acumulação e reprodução capitalista. Seus políticos profissionais tornaram seus mandatos uma extensão dos seus negócios privados. Acreditaram demasiadamente nos mitos de um povo brasileiro pacífico e ordeiro, a quem bastava algumas migalhas para apassivá-lo. Aos movimentos mais organizados que insistiam em lutar, aos olhos dessa burguesia inoportunos aos seus interesses, bastava acionar o dispositivo policial para contê-los e sufocar o seu protesto.

Mas as coisas não funcionam mais assim e acentuar os mecanismos de criminalização do protesto social, como pretendem Dilma, Alckmin e Cabral, não surtirá os efeitos esperados. Servirá, tão somente, para acentuar o conflito social, gerando maior ressentimento social e tornando ainda mais claro para vastas parcelas da população o caráter profundamente reacionário do Estado capitalista brasileiro, cujo funcionamento está a serviço dos interesses do grande capital. Acentuando-se o conflito social, a burguesia poderia se atrever a enveredar pelo caminho ditatorial. Porém, não há clima para tal saída. As massas que saem às ruas querem mais democracia política e social e não engoliriam o discurso fácil que buscaria enquadrá-los como uma ameaça à ordem. A tentativa de construir um Estado policial claramente fascista como forma de conter o protesto social serviria para acentuar ainda mais o conflito, com resultados políticos imprevisíveis.

Outro caminho buscado pela burguesia brasileira e pelos diferentes governos é uma combinação de repressão e concessão. Sem abrir mão da violência policial, algumas concessões, parciais ou precárias, seriam feitas como forma de aplacar o descontentamento social. Em suma, empurrariam com a barriga o atual clima de insatisfação e mobilização populares, contando com o seu esfriamento.

Pegos de surpresa com as mobilizações, incapazes de responder satisfatoriamente às demandas populares, com os diferentes aparelhos e ramos do Estado desgastados e desprestigiados ante os olhos da população, o Estado fez algumas concessões ao longo dos protestos, visando resgatar sua credibilidade e acalmar as massas. O cancelamento no reajuste da tarifa em centenas de cidades, o arquivamento do projeto da “cura gay” em trâmite no Congresso, o arquivamento da PEC 37 (Projeto de Emenda Constitucional), que retirava do Ministério Público o poder de investigação, dentre outros, provam nosso argumento. Contudo, essas vitórias embalam novas lutas populares, demonstrando o quanto é complexa a atual conjuntura.

Cabe às forças revolucionárias, nessas circunstâncias, papel importantíssimo. O momento é oportuno às lutas e mobilizações populares e têm elas na atual conjuntura o papel de fustigar a burguesia e os governos. Parcelas significativas da população já se imbuíram da ideia de que a sua forma de fazer política não ocorre pelo voto, mas pela mobilização. Deve-se, portanto, incentivá-las, organizá-las, apresentar demandas concretas capazes de trazer vitórias ainda que parciais, pois mesmo as pequenas conquistas incentivam novas lutas. Estas servem, por sua vez, para mostrar a força do povo, bem como desvelar os segredos da exploração econômica e da dominação política do grande capital. Deve-se, também, repudiar veementemente todas as tentativas dos governos de turno em querer criminalizar as lutas ou reprimi-las. O Estado do capital, caracterizado pela defesa intransigente dos interesses burgueses e desrespeito aos direitos populares, não tem moral para exigir do povo trabalhador bom comportamento.

Representam as mobilizações, para o povo trabalhador, uma verdadeira escola, trazendo lições muito mais significativas do que a farsa de nossa democracia burguesa.

Renato Nucci Jr. é membro da Organização Comunista Arma da Crítica.