O presente que temos e o futuro que nos espera – Por que defender o SUS?

Por Isabela Soares Santo e Stephan Sperling*

Existe um pesadelo na vida dos brasileiros: quem tem plano privado de saúde faz de tudo para mantê-lo, e quem não tem, sonha com um. Isto não precisa ser assim. O que as pessoas não perceberam é que quando se aposentarem ou ficarem desempregadas vão perder o plano porque não conseguirão mais pagar a mensalidade. E que quando usam o plano deixam de usar o SUS e, assim, de lutar pelo sistema que irá atendê-las, mais dia ou menos dia, isso se quisermos falar apenas da assistência à saúde, sabendo que o SUS oferta muito mais.

O SUS que temos não é o que foi proposto no modelo de um sistema público. Uma série de medidas e políticas que se contrapõem ao seu sucesso, que passam pelas recomendações de organismos internacionais; disputas sobre qual destinação do orçamento público; até mesmo no campo da gestão e da organização do sistema de saúde encontramos antagonistas. E é sobre essa disputa de projeto de sociedade que será preciso a população brasileira se debruçar para que o SUS possa vir a atingir todo o seu potencial de mudança das condições de saúde e de vida dos brasileiros, tal qual se observa nos sistemas públicos europeus.

Há alguns anos o Brasil está numa cada vez mais grave e profunda crise econômica, política, social e de valores/ideias. É nesse contexto que aumenta a pressão para diminuir a importância do que é de interesse público, numa de suas mais fortes traduções: o investimento público na proteção social e em especial na saúde, que vamos tratar aqui mostrando que austeridade não resolve a crise e que há outros caminhos possíveis para uma vida melhor para todos num Brasil mais forte.

O fato é que é nessa crise que a população mais sofre com saúde. Tanto os usuários como os trabalhadores. Estes trabalham com condições cada vez piores, com baixo ou nenhum apoio para atualizar sua capacitação, contratos de trabalho inadequados, salários insuficientes, poucos colegas para muito paciente, medicamento e material de trabalho faltando. Na prática os trabalhadores do SUS atuam como os verdadeiros heróis a saúde. E são nessas condições que ainda conseguem prover alguma atenção à saúde das pessoas que os procuram nas clínicas, Upas (unidades de pronto atendimento), emergências, hospitais.

A população, por sua vez, está sofrendo na pele e no lombo as consequências diretas da crise: todos estamos nos equilibrando no limiar do desespero com a depressão pela atual conjuntura brasileira de sensação de falta de perspectiva de melhoria, com familiar ou amigos desempregados, quando não se é o próprio que está desempregado, nosso poder aquisitivo caiu abruptamente.

E nesse momento que a população mais precisa, o governo optou por enfrentar a crise com a política de profundo corte do gasto social. Isso resultou no que a população encontra no seu cotidiano: as unidades do SUS estão oferecendo cada vez menos horas de serviço, profissionais disponíveis, materiais e medicamentos.

A população em sua grande parte já vive sem saneamento, com dificuldade para pagar a passagem do transporte para chegar à unidade de saúde, quando chega e não resolve seu problema no dia, muitas vezes inicia uma verdadeira peregrinação para usar os serviços do SUS, que só sabe como é quem faz ou nele trabalha. Busca-se ser atendido na incerteza se vai conseguir, na falta de um telefone para agendar o atendimento e depois confirmar. Depois de atendido começa a busca pela vaga para fazer o exame e/ou o corre para conseguir o medicamento e/ou o tratamento receitado. Quando encontra o local que possa fazer, invariavelmente vai para a lista de espera. E assim vai num ciclo vicioso que não era para ser assim.

Essa situação expõe a enorme diferença do SUS da realidade cotidiana das pessoas que o usam para com o SUS da Constituição Federal de 1988 e da legislação que o rege. O SUS foi concebido no modelo de um sistema universal de saúde para garantir maior eficiência, escala, qualidade e melhor desempenho. E a ciência já mostrou que há maior eficiência e efetividade das estratégicas e modelos de cuidado dos sistemas públicos universais.

Neste modelo, o direito à saúde é estabelecido para todos os cidadãos, num sistema organizado em rede, onde prevê-se uma atenção primária de saúde (APS) realizada perto da casa das pessoas, que atua como o primeiro contato da população, isto é, a porta de entrada no sistema, que atua como ordenadora do cuidado de saúde e garante o vínculo com o paciente.

O modelo proposto para o SUS pressupõe uma APS integrada na rede de serviços composta por ações desenvolvidas, políticas que as orientam, pessoas que executam as ações e os serviços, recursos tecnológicos, unidades de saúde interligadas e organizadas numa região.

Os pontos de rede são as unidades da administração pública, mas só funcionam como rede se estiverem de fato interligados, como fios de uma trama, que são as pessoas transitando, a comunicação, a logística, todos atuando numa região de saúde. A região de saúde, para funcionar, deveria contar com estrutura de planejamento própria e autonomia administrativa e financeira, tudo coordenado por uma autoridade sanitária da região, como nos países europeus que as pessoas que veem de perto voltam dizendo que lá o sistema público dá certo.

Entretanto, desde sua criação o SUS e toda a proteção social brasileira não recebem o investimento previsto na Constituição. E mesmo assim, com todo o boicote aos direitos sociais, sua implantação resultou no que vimos após 30 anos (pelo menos até 2015), que são imensas melhoras nas condições de saúde e de vida da população: diminuição da população que vivia na pobreza e na miséria, importante aumento da escolaridade média do brasileiro (medida em anos de estudo) e diminuição do analfabetismo, aumento da expectativa de vida, do número de idosos e da população em idade ativa, com diminuição da fecundidade, configurando a transição demográfica brasileira. Também foi verificada queda nos indicadores de Taxa de Mortalidade Materna, Taxa de Desnutrição Infantil e Taxa de Mortalidade Infantil.

Especificamente no campo da atenção à saúde, observamos: importante expansão da oferta da APS, diminuição da ocorrência de doenças infecto contagiosas, aumento da prevenção e do controle do HIV/Aids, entre diversas outras realizações do SUS, como atendimento a urgência e emergência, realização de transplantes desde os de rim e córnea, que são mais simples e baratos, até o de fígado, extremamente custoso e complexo.

Essas mudanças não são coincidências, mas resultam da criação da Seguridade Social na Constituição Federal de 1988, que estabelece os direitos sociais e orçamento público para que sejam implementados. E aí vem o pulo do gato que os governantes estão desconsiderando no enfrentamento da crise econômica: os gastos sociais são investimentos. Estudos do IPEA, órgão do próprio governo federal , mostram que o PIB cresce a cada R$1,00 gasto com saúde, educação, Benefício da Prestação Continuada, Programa Bolsa Família, Regime Geral da Previdência Social e despesas com pessoal. Ao contrário de pagamento de juros da dívida e subsídios, que geram perda do PIB.

O que está sendo feito no país é o oposto do que a ciência e a experiência nos demais países mostram como solução para resolver a crise. É a política de austeridade fiscal que corta justamente os gastos sociais, reduzindo fortemente o investimento público na proteção social e diminuindo o alcance dos direitos sociais.

As mudanças decorrentes desta política já podem ser observadas nas ruas, é gritante o agravamento dos problemas sociais em praticamente todo território nacional, com aumento a olhos vistos da violência, dos moradores de rua, nos novos miseráveis que vemos pedindo esmola com a mesma roupa que ainda procuram emprego, piora da saúde mental, depressão e ansiedade, aumento da taxa de suicídio sobretudo nos menores de 65 anos, redução das pessoas que autoavaliam seu estado de saúde como bom, aumento de doenças infecciosas e das crônicas não transmissíveis, retorno de doenças que haviam sido erradicadas, como vimos com o sarampo no ano passado.

Esses são efeitos esperados da política de austeridade fiscal pela experiência com os países onde foi implantada após a crise de 2008. Há vasta literatura científica que mostra que aconteceram justamente isso. E agora estamos vivenciando-os no Brasil. E para piorar o cenário, a ciência também mostra que a política de austeridade afeta desproporcionalmente mais os mais vulnerabilizados. Ora, isso num Brasil que tem uma das piores desigualdades do mundo pode ter efeitos explosivos para o curto prazo e, sobretudo para a perspectiva de futuro nosso, de nossos filhos e netos.

E devemos sair dessa moto contínua de destruição do futuro do país. A crise impõe a necessidade de maior exigência de qualidade e eficiência da proteção social e do seu potencial de contribuir positivamente para o desenvolvimento econômico do país, justamente para poder sair da crise. Um primeiro caminho para isso é pela retomada do investimento na saúde e na educação pública de forma articulada aos problemas da cidade, que é onde praticamente todas as pessoas vão estar morando nos próximos anos, como mostram as projeções populacionais e os movimentos migratórios internos no Brasil.

E a primeira medida tem que tratar de garantir investimento para (1) um saneamento que é condição indispensável no combate ao aedes e consequente enfrentamento das arbovirores como dengue, chikungunya e zika e (2) creche de qualidade para todas as crianças, isto é, creche universal, que garante o desenvolvimento do ser humano desde a primeira infância e ao mesmo tempo a manutenção do emprego das mulheres que em 2015 chefiavam quase 30 milhões das famílias brasileiras, sendo que mais de 11 milhões destas mulheres viviam sozinhas com seus filhos, configurando o que chamamos de famílias monoparentais, mais fragilizadas e vulnerabilizadas.

Existem inúmeras medidas mais detalhadas, mas trouxemos essas como prioritárias porque influenciam as condições imediatas de saúde e de vida da população e, no médio prazo, contribuem ao desenvolvimento do país pelo emprego gerado, além de, no longo prazo, de sustentabilidade econômica da própria seguridade social, uma vez que uma maior parte da população terá bons empregos e, portanto, estará contribuindo de forma contínua à seguridade social. Este modelo de investimento em creches públicas universais foi implantado na Dinamarca em 1984 como enfrentamento à pobreza e já faz algumas décadas que se observa no que resultou.

A solução passa também por construir uma política pública que articule os serviços da proteção social de modo que potencialize os espaços urbanos e desafogue as grandes cidades, garantindo a oferta dos serviços nas cidades médias como estímulo para e desenvolvimento de mercado de trabalho e migrações para territórios com maior perspectiva de qualidade de vida. Parte dessa construção não precisa ser com novos investimentos, ao contrário, pode ser realizada ao realocar a oferta de determinados serviços públicos de forma a otimizar o seu uso articulado entre os diferentes setores no espaço urbano e, ao mesmo tempo, otimizar seu acesso e uso, que muitas vezes está aquém do seu potencial. No caso da saúde se observa a oferta de serviços de saúde tem uma distribuição espacial que se repete ao longo dos anos, reforça a desigualdade regional no país e beneficia os grupos populacionais mais favorecidos, ao passo que afeta negativamente os mais vulnerabilizados e isso precisa ser corrigido se o objetivo é maior eficiência do gasto e qualidade da saúde que a população brasileira deve ter.

Assim, quando se afirma a necessidade de democratizar o espaço urbano, ou quando se questiona para quê e para quem as cidades são construídas, questões que parecem difíceis de compreender, ao olharmos para a realidade da saúde da população fica evidente o que se quer dizer: a forma como organizamos nossa cidade e a forma de se andar e viver nela implica diretamente a forma com que concentramos ou distribuímos oportunidades de cuidado (UBS, pronto-socorros, áreas verdes, cinemas, teatros), como também a forma com quem concentramos ou distribuímos doenças e adoecimentos (marginalização das pessoas, militarização das periferias, diminuição no número de integrações e linhas de ônibus). Isto é, as cidades não podem ser enxergadas como algo estático no tempo, quase como se fosse natural haver bairros, como o Jardins Paulistano em São Paulo, com IDH e esperança de vida similares a de países europeus, e bairros como o Cantinho do Céu, periférico, que luta para ter seu número de postos de saúde aumentado (ou não reduzido). É preciso reconhecer que cidade é um sistema vivo, e se tem alguém ganhando muito mais recurso, alguém está perdendo direitos. E saúde. A cidade é por natureza dinâmica e num sistema vivo é preciso distribuir os recursos de forma equitativa.

O Sistema Único de Saúde, entendido como mais que uma série de serviços e políticas para assistência à saúde, mas um verdadeiro projeto civilizatório para o Brasil, deve permitir toda uma crítica da realidade social e, por isso mesmo, auxiliar com propostas para modificar a sociedade. Apenas um Sistema Público Universal, financiado e assegurado pelo Estado, que tenha capilaridade nacional e compromisso primeiro com a vida e com a dignidade da vida das pessoas, pode promover mudanças neste sentido. O setor privado, nacional ou internacionalmente, não conseguiu estabelecer-se como uma rede integrada de serviços e políticas que possa atender a toda complexidade de vida das pessoas. Seu orçamento dependente de subvenções públicas, sua estratégia de mercado, cada vez mais financeirizada, sua segmentação de atenção à saúde entre consumidores e beneficiários do setor público, sua dependência das redes do SUS, o tornam incompetente para protagonizar as mudanças de que o Brasil necessita.

Na história de todos países os direitos e políticas sociais abrangentes sempre foram implantados com as correspondentes mobilizações e lutas populares, como ocorrido na Alemanha no século XIX e depois no século XX no México e na Rússia.

É urgente que cada um de nós se organize em associações de bairro, conselhos municipais e distritais de saúde, em instâncias de articulação da sociedade civil com o poder público, instigue as defensorias públicas, o que for possível a cada um, para que atuemos para demandar a efetivação dos nossos direitos sociais em propostas consistentes para os nossos municípios. Essas propostas vão compor a base do projeto dos planos municipais, os quais deverão nos garantam saúde nos moldes dos sistemas públicos universais, articulada às demais políticas sociais como educação, assistência social, com possibilidade de mobilidade dentro das cidades, meio ambiente saudável, num modelo urbanístico que nos atenda com qualidade de vida e contribua para o desenvolvimento local e nacional, num projeto viável de ser gestado pelo Estado e operado pela administração pública.

Se somos as pessoas que moram ou vamos morar nas cidades, a construção de uma saída para atual situação do país passa pela nossa interferência no que vai acontecer no plano local.

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Isabela Soares Santo, pesquisadora de Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e membro do Conselho Consultivo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).

Stephan Sperling, médico de Família e Comunidade Preceptor de Ensino da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e Diretor Executivo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).