O que a cracolândia diz sobre todos nós

Site Viomundo – 23/01/2012
por Fernando Sepe

“Ao vencedor as batatas” – Machado de Assis

Podemos dizer que uma das trilhas abertas mais interessantes do pensamento de Marx foi demonstrar como os acontecimentos e fenômenos que surgem cotidianamente no seio das sociedades burguesas e são tratadas como desvios contingentes à norma e, portanto, passíveis de serem abolidas da sociedade através de sua melhoria, na verdade seriam produtos necessários e imanentes ao próprio sistema. Ou seja, criminalidade, guerras, crises e quebras do sistema econômico, podem ser entendidas não como acidentes, pequenos problemas contingentes de funcionamento da sociedade, mas sim, como aquilo que é absolutamente necessário e consequência direta da própria estrutura social, acontecimentos que explicitam a verdade das contradições imanentes à manutenção do sistema. O que é uma perspectiva interessante, pois nos leva a um tipo de análise político-social que parte exatamente desses excessos, dessas quebras e problemas para questionar aquilo que entendemos como funcionamento normal do dito social.

Isso é bem próximo do insight básico freudiano que nos mostrava como a chave para o psiquismo humano era dado nos sonhos, nos lapsos linguísticos, nos sintomas neuróticos, nas quebras, no comportamento taxado de patológico. Talvez devido a essa proximidade entre ambos os sistemas, Lacan que foi um leitor atento tanto de Freud, quanto de Marx, dizia que fora Marx quem na verdade tinha inventado o sintoma como algo simbólico que é chave para um verdadeiro entendimento do real.

Partindo dessa perspectiva, poderíamos nos questionar sobre o significado da cracolândia há tantos anos incrustada bem no coração da maior cidade do país. Pois ela é exatamente uma infeliz e trágica junção entre o campo da exclusão social e da patologia mental. Um núcleo duro de miséria no centro de São Paulo, um conglomerado dos “excluídos dos excluídos”, um sintoma do nosso sistema. Frente uma situação como essa, a fantasia ideológica surge como mecanismo de defesa àquilo que não se quer ver.

O viciado em crack será então tratado como uma anomalia do sistema, como uma exceção, um objeto exterior ao seu bom funcionamento e, portanto, passível de intervenção militar e médica. Mas o que exatamente uma intervenção truculenta visa retirar da frente de nossos olhos?

Como todos sabemos, São Paulo é a “grande cidade” da oportunidade e da concretização do sonho brasileiro cosmopolita. Uma cidade onde “tudo acontece”, que “nunca dorme”, onde todas as necessidades de gozo podem ser concretizadas na “night” (“uma das melhores do mundo!”). Além disso, ela é a “locomotiva” desse enorme país emergente que é o Brasil, seu poderoso e democrático centro econômico. Sim, uma cidade de diversidade, a mais “multicultural” do Brasil, lugar onde toda cena da cultura acontece. Ela não é tão bonita quanto Rio de Janeiro, nem tão festiva quanto Salvador, mas isso porque ela é feita de gente que trabalha muito, que leva grande parte da economia do país para frente. “Tudo isso” é São Paulo. E muito mais, é claro.

Pois há também uma fantasia com a qual o paulistano se identifica. Esse fantasma do trabalhador – do homem de bem – que, por ter dinheiro, fruto suado do trabalho, tem o mérito e o direito ao gozo que a cidade pode propiciar. Por isso, não há problema que os serviços sejam extremamente caros, pois é exatamente “O preço” a marca que distingue o vencedor do derrotado. Em São Paulo, a fratura social gigantesca se individualiza em posturas que cada vez mais valorizam a distância que o dinheiro, os objetos e lugares de luxo assinalam entre uma elite e um populacho. O interessante é notar como a necessidade de gozo é mercantilizada e articulada com a classe social e os objetos-fetiches disponíveis a cada uma delas, seguindo uma lógica da desagregação, da desigualdade e do privilégio.

Esse tipo de fantasia social e individual tem uma força ideológica gigantesca e é pensamento dominante dentro da classe média e elite paulistana. Porém, o que elas realmente visam é mascarar as evidentes contradições do sistema social brasileiro. Nesse caso, São Paulo, como a maior cidade do país, se torna um lugar privilegiado para observar tais contradições e excessos, pois nela tudo é revelado como que por uma lente de aumento. Sim, pois o que não se diz é que os lugares comuns enumerados nos parágrafos anteriores apenas mascaram uma realidade social mutilada e desigual, assim como um estado de dor e sofrimento psíquico frente à impossibilidade de sentido e a desarticulação completa do desejo.

Realidade social atravessada de ponta a ponta por fraturas e lutas; uma cidade onde a educação é mercadoria e marca de uma clivagem social absurda; uma das mais preconceituosas do país vide os ataques contra gays na “multicultural” av. Paulista, vide os comentários separatistas e preconceituosos contra nordestinos que tomaram as redes sociais quando da eleição da presidente Dilma; uma cidade onde cultura também é mercadoria e das mais caras, apenas para privilegiados; enfim, uma cidade marcada, como todo país, por um gigantesco descompasso entre – por um lado – desenvolvimento econômico – por outro – distribuição de renda e educação.

Já no campo do sofrimento psíquico, vemos uma completa desarticulação do desejo. Não capazes de buscar o que querem devido às pressões e demandas de reconhecimento, de status, do imperativo de parecer um vencedor frente ao outro, as pessoas chafurdam em trabalhos cada vez mais desinteressantes, trabalhos sem nenhum sentido à vida, mas capazes de darem a possibilidade de um gozo a partir dos objetos-fetiches-mercadoria que o dinheiro propicia. O que se esquece de dizer, porém, é que esse gozo é SEMPRE insatisfatório, o que apenas revela o vazio da própria existência.

O imperativo de gozar o tempo todo articulado a necessidade de um trabalho desinteressante cria uma geração que apesar de parecer saudável, de sempre estar sorrindo nas redes sociais, de toda imagem de potência e vitória que passa, é uma geração ansiosa e deprimida, que já não acredita em nada, onde a única articulação do desejo se dá com objetos cada vez mais irrelevantes e transitórios, como as últimas “invenções da Apple”, ou com qualquer outro tipo de objeto-fetiche, principalmente dinheiro. Um gozo fantasma, rápido e insatisfatório, uma geração hedonista, onde o desejo foi capturado pelos simulacros do sucesso (a fetichização da imagem das celebridades, dos esportistas, etc) e dos objetos-mercadoria (que não à toa as mesmas celebridades são quem mais acesso têm a eles).

Ora, podemos ler a cracolândia como um sintoma maior dessas contradições existentes no campo social (o enorme descompasso entre crescimento econômico – educação e distribuição de renda) quanto do campo psíquico – a captura do desejo a partir da exigência do gozo articulado cada vez mais com imagens e objetos fetiches apenas disponíveis frente um regime de trabalho desinteressante. Pois, ao mesmo tempo em que a cracolândia marca a exclusão social, é também um campo dominado pelo sofrimento psíquico de pessoas que identificam seu desejo com o barato rápido, transitório e viciante do crack a ponto de não mais conseguirem exercer uma vontade livre e se perderem em um triste universo de gozo fantasmático.

A sociedade é responsável pelos usuários não porque isso é uma responsabilidade do politicamente correto. Mas sim, porque ele é sintoma maior de uma dinâmica própria as nossas sociedades hedonistas capitalistas pós-modernas. Voltando ao começo do texto, eu falava como o sintoma deve ser interpretado para então revelar a causa estrutural imanente ao próprio sistema. Mas apenas isso não basta. É Lacan quem diz que o fim do tratamento psicanalítico ocorre quando somos capazes de atravessar o fantasma e, de certa forma, nos identificar com o sintoma.

O que aqui, em nosso caso, quer dizer atravessar a fantasia ideológica brasileira de um país emergente, onde por milagre todas as contradições irão desaparecer com o crescimento econômico e, então, finalmente poderemos ser vencedores, gozando nessa terra abençoada e ensolarada ao som e à cadência do samba e do carnaval. Mas nesse mesmo movimento de atravessar o fantasma, é preciso se identificar com o sintoma. Reconhecendo nos excessos que “A cracolândia” e “O usuário” escancaram, a verdade sobre nós mesmos e sobre nossa realidade social.