O SUS submerso no mar da ganância

Por Beth Barros

A Folha de São Paulo publicou em seu site, no dia 27/02/2013, a notícia de que a União quer ampliar acesso a planos de saúde e que o Governo tem negociado medidas com empresas do setor e já analisa redução de impostos e maior financiamento.

Para definir as condições do apoio governamental, vêm sendo realizadas reuniões, sob comando da Presidente da República, a última das quais, objeto da notícia, contou com a participação de cinco ministros de Estado, integrantes da área econômica, além de representantes do Bradesco, Qualicorp e Amil.

Se eu fosse mesmo uma Pollyana, como alguns acham que sou porque sigo defendendo um sistema universal de saúde, sob responsabilidade do Estado, para assegurar a todos os cidadãos o direito à saúde, poderia levantar umas hipóteses otimistas…. Como a de que a Presidente chamou a si a condução do debate para neutralizar o poder de interveniência dos interesses privados sobre a ANS, agencia responsável pela regulação do sistema suplementar. Mas o que tenho visto (de longe) acontecer com as politicas públicas em geral, com a de saúde e com o SUS, em particular, não me autoriza esse otimismo.

A existência de atividades privadas na área da saúde foi também assegurada no texto constitucional. Mas não há nenhum dever do Estado em assegurar a lucratividade dessas organizações. Ao contrário, o artigo 199 do texto constitucional coloca claramente que “é vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos”. No entanto, isto vem sendo feito há muito tempo, por meio de renúncia fiscal, subsídio invisível ao cidadão comum, como é o caso das deduções ao imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas e de isenções de contribuições sociais.

Estudos do IPEA mostram que em 2006 o gasto tributário decorrente de isenções na área da saúde já correspondia a 30%, quase um terço, do gasto com ações e serviços públicos de saúde realizado pelo Ministério da Saúde no mesmo ano. E nesse montante não está computado o custo assumido pelo SUS pelo atendimento às pessoas portadoras de planos e saúde, que deveria ser ressarcido pelas empresas e que muito raramente ocorre. Nada contra a existência de um setor privado. Mas que exista como privado, sem subsídio estatal.

A demanda por expansão dos planos privados se sustenta em uma falácia: a de que o acesso a planos de saúde significaria “desafogar” o SUS, que seria incapaz de oferecer uma atenção adequada no quadro de subfinanciamento que vive desde sua origem. Falácia com várias facetas.

Primeiro, porque desconsidera que o SUS responde por responsabilidades que os planos nem cogitam em assumir: desde as ações de vigilância sanitária, imunizações, até a realização de transplantes e a garantia de acesso a medicamentos.

Segundo, porque a expansão recente desse mercado mostra que nessas empresas o interesse em captar clientela não é acompanhado pelo esforço de assegurar a disponibilidade de rede assistencial compatível com a dimensão da população a ser coberta, o que acaba fazendo desaguar na rede assistencial do SUS os atendimentos.

E terceiro, porque a transferência de clientela para o SUS, sempre que o procedimento não é lucrativo,já ocorre há muito tempo, por meio de processos de microrregulação adotados pelas empresas (autorizações negadas ou postergadas, por exemplo). E não são os procedimentos mais complexos apenas: partos, atendimentos em cirurgia geral e clinica médica estão entre os mais frequentes, ainda que estejam previstos nos contratos como obrigação dos planos comercializados.

A dinâmica do mercado de saúde suplementar – concentração em grandes empresas, financeirização – nos mostra o quanto a rentabilidade se converteu em objetivo máximo dessas empresas. Seria ingênuo supor que essas práticas não vão se acentuar.

De outra perspectiva, também precisamos assegurar aos cidadãos um sistema público capaz de responder adequada e oportunamente às suas necessidades. É a única forma de desfazer outras falácias: a de que o sistema privado assegura assistência de melhor qualidade e a de que ter um plano de saúde constitui um signo de ascensão social.

Jairnilson Paim já nos alertou tempos atrás:“O futuro do SUS depende do que se faz hoje. O subfinanciamento público e os estímulos aos planos privados de saúde, inclusive ampliando o seu mercado mediante a inclusão de funcionários públicos e da chamada “classe C”, apontam para a reprodução de um SUS pobre para os pobres e complementar para o setor privado, sobretudo nos procedimentos de alto custo. As políticas racionalizadoras ora implementadas, embora relevantes, não são suficientes para renovar as esperanças por um sistema de saúde digno, democrático e de qualidade para todos os brasileiros.” (Cadernos de Saúde Pública, nº 28)

Tomara que agora possamos tomar como prioritária essa luta pela preservação do direito à saúde duramente conquistado em 1988. E que o consigamos logo, antes que o nos sobreseja lamentar a perda de uma conquista.