O uso espúrio do conceito de determinantes sociais da saúde

por Marco Akerman (FSP/USP) e Samuel J Moysés (PUCPR/UFPR) em artigo originalmente publicado no Le Monde Diplomatique Brasil

Os determinantes sociais da saúde compreendem “as condições em que as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem”, e que são “moldadas pela distribuição de dinheiro, poder e recursos”. Portanto, sabemos do impacto exercido por condições materiais de vida, incluindo emprego e renda, sobre a saúde das pessoas.

Nelson Teich, no seu discurso de posse como ministro da Saúde, utilizou uma expressão que pode ter passado despercebida para muitos, em relação ao seu significado mais amplo, mas não para quem trabalha no campo da Saúde Coletiva. Em torno de 1min56 da gravação de seu discurso ele cita en passant o conceito de determinantes sociais da saúde (DSS). Ele diz:

[…]uma discussão na área de saúde que são os determinantes sociais da saúde… o que traz saúde para uma sociedade… um deles é cuidado em saúde…, mas ainda os outros… você tem estabilidade econômica, educação entre outros… e uma coisa importante do desenvolvimento econômico é que ele arrasta as outras coisas… quanto mais desenvolvido economicamente um país, mais você investe em educação, mais você investe em saúde, mais você tem recurso para ajudar a sociedade […]”.

O novo ministro é médico de formação, com especialização em Oncologia e “Health Economics for Health Care Professionals”. Tais credenciais não o fazem, necessariamente, um expert na área transdisciplinar e multiprofissional da Saúde Coletiva, em que o conceito de DSS é amplamente conhecido e utilizado. Formuladores de políticas e gestores/tomadores de decisão em sistemas de saúde, no Brasil ou no exterior, utilizam cada vez mais a linguagem relacionada aos DSS, talvez como um escudo retórico, em suas estratégias economicistas visando “otimizar” os custos da atenção em saúde e exercer controles gerenciais restritivos no setor público e/ou privado. Porém, o conceito usado deste modo é frequentemente embaralhado e mal compreendido, tornando-o conflitante e confuso. Os fãs de Wittgenstein diriam que “é assim que um tipo de linguagem funciona: o significado das palavras está em seu uso1.

Uma constatação mais grave é que, não raro, este embaralhamento é feito de modo proposital, para gerar um efeito já cientificamente estudado. A agnotologia é o estudo da “fabricação” coletiva da ignorância. Esta ignorância é produzida ou mantida em diversos contextos, por meio de mecanismos variados, tais como negligência deliberada ou seletividade cultural ou política 2.

Sim, sabemos em nossa área da Saúde Coletiva que, sinteticamente, os determinantes sociais da saúde compreendem “as condições em que as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem”, e que são “moldadas pela distribuição de dinheiro, poder e recursos3. Portanto, sabemos do impacto exercido por condições materiais de vida, incluindo emprego e renda, sobre a saúde das pessoas.

Mais considerações sobre o conceito

Não obstante (e o óbice aqui é crucial), há muitas outras considerações que devem ser assumidas, explicitamente ou subliminarmente, quando se faz um uso consciente e responsável do conceito de DSS. Os determinantes operam em vários níveis: fatores estruturais subjacentes, como a política macroeconômica de um país; políticas públicas de educação, habitação, previdência social dentre outras; e contextos culturais e institucionais mais amplos que moldam a distribuição de recursos na sociedade e a posição social das pessoas dentro dela. Em outras palavras, se os fatores de risco explicam as causas das doenças nos indivíduos, os DSS explicam a distribuição das doenças na população.

Esses fatores estruturais, por sua vez, condicionam e modulam outros fatores, influenciando condições de vida e trabalho e, em última instância, o acesso a dinheiro para comprar comida, dentre outros recursos básicos, que definem as circunstâncias da vida cotidiana das pessoas. As interações desses fatores impactam na saúde individual e coletiva, mas sobretudo nas iniquidades em saúde. Iniquidade já foi denominada como a “nossa mais grave doença4.

As iniquidades (que não são simplesmente diferenças naturais, mas desigualdades injustas e evitáveis mediante políticas afirmativas e redistributivas), por sua vez, geram gradientes ou diferenças sistemáticas no processo saúde-doença entre pessoas e grupos sociais5. O que o recém-empossado ministro, mesmo que compreendesse, provavelmente jamais citaria – pois se diz “totalmente alinhado com o presidente” – é que inúmeras políticas que podem ser definidas como estruturantes, porque impactam a qualidade de vida e situação de saúde, e que são parte do repertório dos DSS, têm sido duramente penalizadas. Primeiro, foram implementadas e apoiadas pelo atual establishment em governo anterior e, agora, são inteiramente parte de uma agenda governamental em nome da “austeridade”. E já está suficientemente estabelecido na literatura especializada que medidas de austeridade, aplicadas com a métrica economicista – por exemplo, deprimindo investimentos sociais e aplicando tributação regressiva –, impactam de modo letal os grupos sociais mais vulneráveis ou fragilizados, algo que se observa não somente em países pobres como também em sociedades da abundância (para poucos)6.

São exatamente tais políticas, tais como as implementadas recentemente no Brasil, inclusive com cortes expressivos nos orçamentos públicos para a seguridade social (previdência, saúde, assistência social), a educação, a cultura, o meio ambiente ou a ciência e tecnologia, que produzem enorme sobrecarga de iniquidades sociais, refletidas em doenças e morte precoce. Basta que seja citada a Emenda Constitucional 95/16, em pleno vigor e apoiada pelo atual governo. Então, sob o véu do discurso do ministro, é preciso trazer à luz do sol tropical, todas as inconsistências previsíveis em sua condução da política de saúde. Porque o seu discurso, mesmo que fosse possível em uma solenidade de posse, jamais incorporaria na intencionalidade e na projeção de sua agenda futura, os fundamentos dos DSS e a prevenção das nefastas implicações que aprofundarão as iniquidades, o sofrimento e a desesperança de milhões de brasileiros.

O ministro apresenta um viés óbvio, confirmado pela sua carreira profissional, de privilegiar uma visão econômica pragmática e adotar uma postura afinada com o modelo biomédico (privatista) médico-centrado, que enxerga na saúde humana um produto de mercado. Ainda que fosse possível vislumbrar na sua trajetória alguma preocupação estrutural com DSS, isto igualmente seria enviesado para o recorte de indicadores de status social, renda, ou nível de ocupação com vistas ao retorno financeiro de investimentos em saúde. Nem será preciso aprofundar a análise sobre o vídeo polêmico, que viralizou na internet provocando interpretações polarizadas, em que ele disserta sobre “eficiência alocativa” e escolhas “inevitáveis7. Ali, o que é inegável é a postura do homo economicus neotaylorista e utilitarista, cujas raízes remontam a John Stuart Mill. Ademais, o que é preciso debater é que o sistema de crenças do homo economicus, baseado dentre outras coisas no autointeresse egotista, cupidez e perseguição incessante de lucro pode servir como uma causa do declínio mundial da confiança entre indivíduos e grupos sociais8.

Dentre as interpretações possíveis para o pensamento revelado pelo ministro, e atualmente recuperado em sua biografia intelectual, é que tais disposições pessoais podem plausivelmente degenerar para práticas sanitárias e de políticas públicas daninhas, sobretudo quando são impulsionadas por uma agenda de governo que se mostra ambígua em suas concepções humanitárias e decididamente ideológica, no que classifica genericamente como “guerra cultural” (negação da ciência, das instituições multilaterais como a Organização Mundial da Saúde, ou de ativismos por direitos humanos, para citar alguns exemplos). Essa agenda de guerra de espectro total, seja cultural seja híbrida, foi referenciada em obra clássica de Deleuze & Guattari, quando aludem9:

A análise de Paul Virilio parece-nos profundamente justa quando ele define o fascismo não pela noção de Estado totalitário, mas pela de Estado suicidário: a guerra dita total aparece aí menos como o empreendimento de um Estado do que de uma máquina de guerra que se apropria do Estado, fazendo passar através dele o fluxo de guerra absoluta que não terá outra saída senão o suicídio do próprio Estado”.

O corolário pode ser simplesmente o necroestado, a necropolítica – termo cunhado por Achille Mbembe10-, em que não se trata mais somente de inscrever corpos dentro de aparatos disciplinares, pois que o poder agora é dirigido através da criação de zonas de morte, em que a morte se torna o último exercício de dominação e a principal forma de resistência, em um sistema que pragmaticamente define os incluídos e os excluídos (inviáveis) que se deve “deixar morrer”. Não só porque o estado policial mata com sua máquina de guerra, mas porque deixa morrer pessoas com suas políticas de austeridade, iniquidade e exclusão.

Por outro lado, o discurso do ministro proferido para oncologistas, gravado em vídeo, já insinuava uma forma conhecida de cronofagia, que não só o roubo do sono, do tempo e das ideias que o sistema econômico no qual ele acredita impõe às pessoas, mas também o roubo do tempo de vida que resta aos mais velhos. Necropolítica e cronofagia compõem um coquetel igualmente mortífero em tempos de pandemia.

Referências

1. Alderwick, H. and L.M. Gottlieb, Meanings and Misunderstandings: A Social Determinants of Health Lexicon for Health Care Systems. Milbank Q, 2019. 97(2): p. 407-419.
2. Proctor, R.N. and L. Schiebinger, eds. Agnotology: The making and unmaking of ignorance. 2008, Stanford University Press. Stanford, California. 20 p.
3. World Health Organization, Commission on Social Determinants of Health. Closing the gap in a generation: health equity through action on the social determinants of health. [Published 2008]. Acessado em 19 de abril de 2020. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/43943/9789241563703_eng.pdf;jsessionid=365271ACE2052888542881700EEDCA8B?sequence=1
4. Buss, P.M. and A. Pellegrini Filho, Iniquidades em saúde no Brasil, nossa mais grave doença: comentários sobre o documento de referência e os trabalhos da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. Cadernos de Saúde Pública, 2006. 22(9): p. 2005-2008.
5. Marmot, M. and J.J. Allen, Social determinants of health equity. Am J Public Health, 2014. 104 Suppl 4: p. S517-9.
6. Stuckler, D., et al., Austerity and health: the impact in the UK and Europe. Eur J Public Health, 2017. 27(suppl_4): p. 18-21.
7. Instituto OncoGuia, Oncologia Brasil. 9º Fórum Nacional Oncoguia – Complexidade do Sistema de Saúde Brasileiro | Instituto Oncoguia. Acessado em 20 de abril de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=29hE_ONQ8bE
8. Xin, Z. and G. Liu, Homo economicus belief inhibits trust. PLoS One, 2013. 8(10): p. e76671.
9. Deleuze, G. and F. Guattari, Mil Platôs – Capitalismo e esquizofrenia (Vol. 3). 1996, Rio de Janeiro: Editora 34 Ltda. p. 105.
10. Mbembe, A., Necropolitics. 2019, Durham, North Carolina: Duke University Press. 224 p.