Os enormes desafios do Governo Dilma Rousseff e a 14ª Conferência Nacional de Saúde
Ricardo Menezes*
Coincidindo com a vigorosa campanha popular pela aprovação das reformas de base durante o governo Jango Goulart, em 1963 realizou-se a 3ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), a primeira realizada depois da criação do Ministério da Saúde dez anos antes.
O ministro da Saúde do governo João Goulart, Wilson Fadul, ao abrir essa Conferência, apresentou um arrojado e crítico diagnóstico da organização sanitária brasileira – analisando de modo integrado a Saúde Pública e a rede de assistência médica individual privada e pública, ou seja, sinalizando para a necessidade de integração de atividades preventivas e curativas nas unidades de saúde. Além disso, alertou que os problemas de saúde não se resolvem divorciados da realidade social, propugnou a integração dos programas de saúde no plano geral de desenvolvimento econômico, defendeu o incentivo à pesquisa visando à correta solução dos problemas peculiares ao nosso meio, tratou do estímulo à formação de pessoal técnico que atendesse a demanda dos programas assistenciais e destacou a importância do fortalecimento da indústria farmacêutica estatal em face da desnacionalização do parque farmacêutico nacional. Ao final do seu discurso o ministro assim se manifestou:
“Meus senhores: A serena convicção de que somente os povos ricos desfrutam de padrões de saúde satisfatórios e de que a pobreza e o desenvolvimento fraudam os melhores esforços para se atingir aquele objetivo, leva-nos a saudar no advento das reformas de base por que luta o governo do presidente João Goulart, o instrumento indispensável ao êxito da missão que nos cabe da defesa da saúde do povo brasileiro.”
Pela primeira vez na nossa história um governo, e um presidente, se comprometia em investir no campo da Saúde de uma perspectiva democrático- popular.
O golpe militar de 1964 enterrou as reformas de base, junto com a pretensão de implantar-se um plano nacional de saúde assentado na solidariedade social, conforme eram concebidos pelas forças democráticas, populares, socialistas e libertárias.
Durante o Regime Militar (1964-1985) foram realizadas quatro Conferências Nacionais de Saúde – em 1967, 1975, 1977 e 1980 – cujos partícipes eram membros da burocracia sanitária. A 7ª CNS, realizada já no contexto da abertura lenta, gradual e segura, contou com 400 participantes. Além dos quadros técnicos das burocracias estatais, bem como de outros órgãos públicos do setor saúde, também compareceram representantes do clero, parlamentares de comissões da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. A ampliação da participação nessa Conferência para além da burocracia sanitária, embora sem incorporar representantes de movimentos e entidades populares, era o sinal dos tempos – determinado pelas inseparáveis crises política e de legitimidade do Regime Militar, a da previdência social e a da política de saúde nacional.
Já no período de democratização do país, de 17 a 21 de março de 1986, realizou-se a 8ª CNS, em meio à participação popular e à efervescência e mobilização políticas cuja melhor narrativa encontra-se na própria introdução do Relatório Final da Conferência:
“O presente relatório final reflete um processo de discussão, que iniciado nas pré-conferências preparatórias estaduais e municipais, culminou com a participação, na 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), de mais de 4.000 pessoas, dentre as quais 1.000 delegados. Este processo materializou-se nos textos, debates, mesas-redondas, trabalhos de grupos e seus relatórios, resultando neste documento aprovado na plenária final da Conferência.
As plenárias da 8ª CNS contaram com a participação efetiva de quase todas as instituições que atuam no setor, assim como daquelas representativas da sociedade civil, dos grupos profissionais e dos partidos políticos.
O documento apresentado para aprovação em plenária era o relato consolidado das discussões havidas durante três dias, nos 135 grupos de trabalho (38 de delegados e 97 de participantes), onde foram discutidos os temas: Saúde como Direito, Reformulação do Sistema Nacional de Saúde e Financiamento Setorial”.
Após intensa luta política e ampla mobilização social, as proposições do Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde foram incorporadas à Constituição Federal (CF) de 1988 (Art. 196 a Art. 200, Seção II – Saúde, Capítulo II, Da Seguridade Social), sendo as mais marcantes o reconhecimento da saúde como direito social (Art.196) e a criação do Sistema Único de Saúde – SUS, público e universal (Art. 198).
Promulgada a CF de 1988, ato contínuo, deu-se o interdito político perpetrado pelas classes dominantes e seus agentes contra a implantação de um Sistema de Saúde público e universal no Brasil, gerando um movimento político-institucional contraditório em face, tanto da existência de profundas desigualdades e iniquidades sanitárias no país, quanto da existência de uma esquerda social difusa e de uma esquerda política impetuosa que paulatinamente foi se moderando.
Este movimento levou à implantação de uma espécie de sistema de saúde-sombra daquele previsto na norma constitucional, hoje, paradoxalmente, agente de inclusão social e produtor de desigualdades cada vez maiores em benefício de cerca de 25% da população (que também se utilizam de diversos serviços do SUS, afora os relacionados à saúde pública que só o SUS presta) e em desfavor de aproximados 75% da população brasileira que são usuários dos serviços do SUS de qualquer natureza.
Fundamental salientar que foi na vigência do sistema de saúde-sombra daquele previsto na norma constitucional que transcorreram as eleições de 2010, na qual a Saúde transformou-se ineditamente em pauta relevante do debate presidencial.
Há anos considerada, em diversas pesquisas, pelos brasileiros como a principal insuficiência administrativa de governos, nas últimas eleições para a presidência da República, a então candidata do Partido dos Trabalhadores (PT) reconheceu os concretos problemas de financiamento público e de gestão da Saúde, portanto, a necessidade de corrigi-los. Eleita, a presidenta Dilma Rousseff, já em seu discurso de posse, fez várias menções à Saúde, sendo mais significantes as seguintes:
“O Brasil optou, ao longo de sua história, por construir um estado provedor de serviços básicos e de previdência social pública. Isso significa custos elevados para toda a sociedade, mas significa também a garantia do alento da aposentadoria para todos e serviços de saúde e educação universais. Portanto, a melhoria dos serviços é também um imperativo de qualificação dos gastos governamentais”.
“Consolidar o Sistema Único de Saúde será outra grande prioridade do meu governo. Para isso, vou acompanhar pessoalmente o desenvolvimento desse setor tão essencial para o povo brasileiro. Quero ser a presidenta que consolidou o SUS, tornando-o um dos maiores e melhores sistemas de saúde pública do mundo.
O SUS deve ter como meta a solução real do problema que atinge a pessoa que o procura, com uso de todos os instrumentos de diagnóstico e tratamento disponíveis, tornando os medicamentos acessíveis a todos, além de fortalecer as políticas de prevenção e promoção da saúde. Vou usar a força do governo federal para acompanhar a qualidade do serviço prestado e o respeito ao usuário.
A formação e a presença de profissionais de saúde adequadamente distribuídos em todas as regiões do país será outra meta essencial ao bom funcionamento do sistema”.
Durante lançamento de programação voltada para a saúde da mulher e da criança, no mês de março do presente ano, a presidenta Dilma reafirmou seu compromisso com o Sistema de Saúde nacional, público e universal: “Temos que transformar o SUS num ótimo e grande sistema de saúde. A esse compromisso eu não renunciarei”.
Ou seja, pela segunda vez na nossa história um governo, e agora uma presidenta, se compromete em investir no campo da Saúde de uma perspectiva democrático-popular – para todos os brasileiros e todas as brasileiras.
Mas os lutadores sociais precisam estar rigorosamente atentos: atualmente, o desmonte do Sistema Único de Saúde é o principal objetivo de uma aliança entre conservadorismos de diversos matizes. A amplitude desse espectro conservador se espraia do conjunto da burguesia à subsumida indústria de equipamentos, produtos médicos e medicamentos, das empresas de planos e seguros de saúde privados a certos setores da categoria médica, dos meios de comunicação de massas à parcela das elites acadêmicas vinculadas ao mercado e entusiastas de soluções mercadistas para gerir a coisa pública, tais como: fundações de apoio em hospitais universitários estatais, organizações sociais (OS), organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP) e terceirizações as mais diversas.
Ressalte-se que tal aliança conta com forte presença na burocracia do Estado brasileiro – nas três esferas de poder –, forte presença nos governos municipais, estaduais e com presença, aqui e acolá, no governo federal, porém fora do âmbito do Ministério da Saúde.
Nestes termos, para tentar trilhar os rumos apontados na 8ª Conferência Nacional de Saúde e, assim, consolidar o SUS, o governo Dilma precisará contar com pujante apoio popular para se contrapor ao poderoso bloco de interesses que quer mercantilizar definitivamente o Sistema Único de Saúde: por um lado às expensas da privatização de equipamentos, serviços e ou recursos públicos e, por outro, da naturalização da institucionalização da desigualdade de acesso em função da possibilidade de pagar pelos serviços e da classe social na qual estão inseridas as pessoas.
A articulação de pujante apoio popular a que se referiu anteriormente precisaria se concentrar nos pontos que se seguem.
1. Organização de potente movimento político dos trabalhadores destinado a colocar em marcha, país afora, uma avalanche de solidariedade em prol da definitiva consolidação da política pública universal de saúde, vital para o bem-estar social e a defesa da vida da população brasileira.
2. Transformar a 14ª Conferência Nacional de Saúde em evento massivo que venha a ser um elemento de ruptura – e sinalizador de lutas sociais – em relação à prática discursiva liberal ou socioliberal. É preciso afirmar e reafirmar: política pública universal de saúde não se faz sem Estado e desenvolvimento social não se sustenta sem um sistema tributário progressivo, ou seja, aquele em que deve pagar mais tributo quem tem mais renda e detém mais patrimônio!
A senha da 14ª CNS combina sobremaneira com tais elementos de ruptura: Todos usam o SUS! SUS na seguridade social, política pública, patrimônio do povo brasileiro.
3. A 14ª CNS deveria aprovar uma campanha de massas didática para demonstrar à população brasileira:
a) que o Sistema de Saúde nacional, público e universal, o SUS, embora padeça de crônico subfinanciamento, se presta à maximalização da lucratividade da rede de assistência médica, odontológica e hospitalar vinculada às operadoras de planos e seguros de saúde privados, substituindo-a na oferta dos serviços de saúde complexos e de alto custo, que as operadoras por força de contratos deveriam prestar aos seus afiliados, sem que haja efetivo ressarcimento ao SUS pelos procedimentos realizados;
b) a imensa renúncia fiscal que a União vem patrocinando, a partir de 1990, na Saúde, em favor de estratos populacionais de renda média e alta, e
c) o impacto nocivo da denominada lei de responsabilidade fiscal sobre a organização do SUS. Ou seja: como a Saúde é campo intensivo em emprego de mão-de-obra, considerar os servidores desse campo para efeitos de cálculo da citada lei significa, na prática, introduzir elementos de sua inviabilização.
4. O Partido dos Trabalhadores (PT), agremiação política a qual é filiada a presidenta Dilma Rousseff, deveria aprovar no seu IV Congresso múltipla e diversificada campanha nacional de mobilização com a finalidade de apoiar medidas necessárias ao cumprimento do compromisso assumido com o povo brasileiro pela presidenta no seu discurso de posse: “Quero ser a presidenta que consolidou o SUS, tornando-o um dos maiores e melhores sistemas de saúde pública do mundo”.
* Ricardo Menezes é médico sanitarista e mestre em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. É militante do Partido dos Trabalhadores.
Fonte: Página 13 – Site da Articulação de Esquerda, Tendência Interna do Partido dos Trabalhadores (PT).
Disponível em: <http://pagina13.org.br/?p=9669>. Acesso em: 27 ago 2011.