Os maiores obstáculos no caminho do movimento sanitário

Roberto Passos Nogueira

Fonte: Blog Saúde com Dilma

O que impede hoje que tenhamos um movimento sanitário forte, extenso e coeso?

Esta pergunta deveria ser posta em discussão continuamente em nossos fóruns. Não basta saber falar dos problemas do sistema de saúde se não sabemos identificar o que impede o movimento sanitário de progredir.

Aqui pretendo fornecer algumas indicações sobre aquilo que considero os obstáculos mais importantes que estamos enfrentando no contexto atual de retomada do movimento. Divido os obstáculos em três tipos: 1) de conhecimento; 2) de concepção de objetivos; 3) de condução política.

O obstáculo do conhecimento tem a ver, em primeiro lugar, com o que acontece no campo da saúde coletiva, a qual foi tomada, desde a gênese do movimento nos anos 1970, como constituindo seu fundamento teórico. Sem lugar a dúvidas, a saúde coletiva é hoje um campo disciplinar totalmente fragmentado em ramos e especialidades. Por exemplo, quem trata de políticas de saúde ou de recursos humanos no SUS pouco entende de financiamento da seguridade social; ou quem trata do sistema da seguridade social pouco entende de políticas ambientais, para não falar de epidemiologia, com seu destaque acadêmico muito especial.

Essa referência à fragmentação do conhecimento na saúde coletiva não representa uma novidade. Ela tem sido debatida nos encontros da ABRASCO, sobretudo em relação ao papel e ao futuro dos seus Grupos de Trabalho (GTs). Por outro lado, o fato de que o campo de conhecimento da saúde coletiva tenha se tornado amplo e diversificado, bem como dotado de forte institucionalização acadêmica, não constitui por si um problema, mas, pelo contrário, reflete um resultado positivo associado aos objetivos de avanço e consolidação das políticas de Ciência e Tecnologia no país.

O que surge como obstáculo aparece em outro plano, que é o das políticas da sociedade civil, ou seja, das políticas dos movimentos. Há uma dificuldade em transformar a enorme riqueza e diversidade desses conhecimentos em indicações para a ação política. Por que isto acontece? Porque carecemos de um número suficiente de intelectuais orgânicos que façam a mediação entre os conhecimentos acumulados na saúde coletiva e os objetivos do movimento sanitário. Naturalmente, não se pode esperar que todo professor ou pesquisador de saúde coletiva transforme-se num intelectual orgânico. Isto seria uma exigência absurda. Mas há um fato facilmente constatável: não temos intelectuais orgânicos em número suficiente para transformar esse conhecimento em combustível para a atuação política junto ao movimento sanitário e outros movimentos sociais.

Outro obstáculo dessa mesma natureza situa-se no lado dos jovens militantes. A juventude do movimento sanitário ultimamente vem crescendo em número e em entusiasmo para o combate político. Ela representa o fermento da mudança, ainda quando nem todos tenham tido a oportunidade de receber formação adequada no campo da saúde coletiva, com conteúdos críticos e oportunos. Resta saber se tal formação pode advir dos cursos usuais de saúde coletiva, cujo conteúdo está hoje despolitizado, ou se, ao contrário, precisamos de novas e renovadoras vias de formação. Minha opinião é que precisamos de inovações pedagógicas que combinem o incentivo a uma aguerrida ação política com conhecimentos adequados. A graduação em saúde coletiva que começa a ser alastrada pelas diversas regiões do país precisaria ser avaliada nesta perspectiva.

O segundo tipo de obstáculo é a dificuldade de conectar os objetivos e estratégias setoriais da saúde em relação ao conjunto dos problemas da sociedade e da economia.

O movimento sanitário tem entidades de interesse geral, mas pode e deve englobar entidades que atuam em torno a temas específicos como recursos humanos ou saúde da família. Mas, no seu conjunto, o movimento precisa amadurecer o debate sobre questões mais amplas, que estejam para além do SUS e do próprio setor saúde.

Pode-se indagar, neste sentido, o que o movimento sanitário tem a dizer sobre a relação entre saúde e algumas questões fundamentais como o processo de desenvolvimento sustentável, a ser cumprido com o devido respeito ao meio ambiente. Ou ainda, se outro tipo de sociedade, ainda é possível de ser pensada e aspirada amplamente pelos movimentos sociais.

Neste sentido, cabe identificar a questão-chave que faz a ligação entre a saúde e a transformação político-social da nação brasileira. Ainda é relevante a questão democrática e da participação social, tal como o movimento sanitário a formulou no início dos anos 1980? Ou a questão-chave é a possibilidade política de construir um Estado de Bem-Estar, forte e estável entre nós? Possivelmente, essas duas questões deveriam ser combinadas de alguma maneira, já que elas não se excluem logicamente. Muitas outras questões poderiam entrar aqui de tal modo a conformar os itens de uma agenda sobre saúde e sociedade, saúde e democracia. Quero dizer com isto que o movimento sanitário precisa voltar a pensar um projeto de nação e para tanto deve ter mais ousadia ao definir sua agenda de debate.

Finalmente, cabe uma menção ao modo de condução política do movimento. Que obstáculo é este? Consiste em admitir que o movimento sanitário tenha objetivos e estratégias bem específicas, mas que são, na verdade, próprias de um ou outro grupo político que atua no movimento.

O caráter do movimento, no entanto, é o de uma frente ampla suprapartidária que se encontra na contingência de acolher continuadas divergências, evitando, assim, o afastamento de possíveis adesões, particularmente importantes neste momento de retomada. Portanto, o movimento sanitário não pode ter uma coesão de monobloco, o que, aliás, nunca o teve em outras fases de sua história. Muitos avanços e conquistas foram feitos sem que houvesse consenso completo.

Em conclusão, tendo em vista os muitos anos de ativismo que estão à nossa frente, a condução política do movimento deve sempre manter a preocupação em não forjar consensos artificiais acerca de uma multiplicidade de questões menores, a fim de conquistar o que tem mais relevância estratégica e um consenso efetivo.