Os nós e a taquicardia imobilizadora do sistema de saúde do Brasil

“Taquicardia”, artigo de Ligia Bahia publicado em O Globo – 22/7/2013

Um sistema público de saúde, tal como qualquer área de política social, deve ser eficiente, equitativo e bem administrado. Sinteticamente, é uma combinação de impostos, contribuições sociais arrecadados e benefícios ofertados, tendo como objetivo a maximização das condições de saúde da população, por meio de uma quantidade adequada de ações preventivas e assistenciais qualificadas. A chave que abre a perspectiva efetiva de reverter o quadro de desigualdades na saúde não é apenas o aumento do número de médicos.

No Brasil, o sistema de saúde como um todo é ineficiente porque a maioria da população que o sustenta, inclusive o setor privado, com seus inúmeros e vultosos subsídios fiscais, tem menos acesso e usa menos serviços de saúde.

Enquanto a resposta à altura da radicalidade das manifestações das ruas reivindicando o SUS padrão Fifa for tentar gritar mais alto e não se disser com clareza a que saúde pública o governo se refere, não existirá espaço para diálogos produtivos. “Socializar” o ensino médico é uma medida decorrente do efetivo funcionamento de sistemas universais de saúde. O aumento na quantidade de médicos e a alocação de profissionais de saúde, inclusive estrangeiros, em regiões remotas e nas periferias das grandes cidades são tentativas meritórias para a redução das desigualdades, mas o fio conector para a resolução dos problemas é o SUS. Haverá mais médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, farmacêuticos e todos os demais profissionais de saúde, mais generalistas e melhor distribuição no território nacional de serviços e ações de saúde, se o SUS der certo.

Imaginar que a consciência solidária, humanista e “SUSista” possa ser cultivada em ambientes apropriados ao contato entre médicos e o povo, tal como este vive e sofre, e que daí derive uma revolução cultural, liderada por profissionais desaburguesados que ponham o sistema de saúde de cabeça para baixo, é puro idealismo. O heroísmo de David Capistrano, um dos formuladores do SUS, preso e torturado diversas vezes pelo regime militar, e a psicopatia assassina de médicos que voluntariamente participaram de supliciamentos não foram ensinados nas faculdades. Estudantes e profissionais de saúde não são diferentes das demais pessoas. Agem em função de contextos de trabalho que influenciam as inclinações favoráveis ou desfavoráveis à compreensão, à compaixão e comprometimento com os pacientes.

O modelo de formação dos médicos é determinado pela inserção profissional, e não o contrário. Nesse caso, é importante discernir quem vem primeiro, se o ovo ou a galinha, para evitar apresentar um juízo moral como política. A precedência do trabalho e as relações entre saber e fazer já foram estabelecidas em diversos estudos sobre ensino e prática profissional. Do jeito como está organizado o sistema de saúde, a proposta de prolongamento do curso médico conjugada ao fato de que a maioria dos postos de trabalho no Brasil está no setor privado significa que levaremos mais tempo e gastaremos mais recursos públicos para formar gente para atuar junto aos planos privados. A definição de conteúdos e prazos para a formação de profissionais de saúde é uma atividade de natureza eminentemente técnico-acadêmica, e não político-partidária.

A saúde já tem um pacto democraticamente estabelecido pela Constituição de 1988. O pacote Mais Médicos não é um pacto da saúde, e sim um embrulho, pós abandono da proposta de importação de médicos cubanos, que procura dar conta simultaneamente dos resultados de pesquisas de opinião que indicam queixas relacionadas com a falta de médicos na rede SUS, demandas de prefeitos de cidades do interior, especialmente das regiões Norte e Nordeste, e clamores por direitos sociais efetivos nas grandes cidades.

Até agora, a atuação do governo Dilma na saúde pode ser resumida como um conjunto de tentativas e erros. Primeiro veio o anúncio da construção de milhares de prédios, logo depois, na onda do aprimoramento da gestão, a colocação de câmeras nos hospitais diretamente ligadas ao Palácio do Planalto, e mais recentemente a decretação de prazos para o tratamento de pacientes com diagnóstico de neoplasias. Esses lampejos, não submetidos a qualquer fórum de discussão da saúde, foram insuficientes para refrear a insatisfação com a situação do sistema de saúde.

O Mais Médicos, graças às manifestações nas ruas, traz uma novidade: finalmente, o governo voltou a falar sobre o SUS, reconheceu que a saúde vai mal, que é preciso intervir para mudar e promete mexer no mercado de trabalho via aumento das vagas para residência médica. É uma agenda torta, mas qualquer iniciativa que mencione gente e SUS é melhor do que as medidas para a saúde baseadas só na engenharia civil ou na retórica gerencialista. Contudo, o “pacto da saúde” poderá causar muita agitação, mas deixará tudo exatamente no mesmo lugar, se o sujeito das intervenções estatais anti-SUS permanecer oculto.

A indicação, neste mês, de mais um integrante do quadro de uma empresa de planos privados de saúde para diretor da ANS foi apenas um equivoco ou as regras de jogo, completamente desfavoráveis ao SUS, permanecem as mesmas? Os nós da saúde não serão deslindados entre quatro paredes e muito menos por decreto. A polarização a favor ou contra proposições cumulativas e inócuas, lançadas de crise em crise, causam uma síndrome de taquicardia imobilizadora. Que tal inverter o fluxo do decisório? Seguir penando para conseguir audiências fechadas com a Presidência da Republica dá muito trabalho e não modifica o padrão ambíguo, ora estatizante, ora privatizante das reais políticas governamentais. É tempo de quem define os rumos do sistema de saúde comparecer a reuniões abertas organizadas por partidos políticos, entidades profissionais e de usuários.

Ligia Bahia é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro