Os planos de saúde fazem o que querem, diz especialista Ligia Bahia ao jornal O Globo
O jornal O Globo deste domingo traz entrevista com a doutora em Saúde Pública, a médica Ligia Bahia, do Laboratório de Economia da Saúde da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Segundo ela, o preço dos planos de saúde é muito baixo no Brasil. Ela também conta sobre o ressarcimento que planos privados pagam ao SUS quando um paciente do sistema privado é atendido no público. “O valor dele é muito pequeno e dá um trabalho burocrático enorme para ser feito. Hoje há mais de 200 pessoas trabalhando nesse tal de ressarcimento. O número de internações em 2005 (último dado disponível pela ANS) foi de 173.332”. Veja a entrevista a seguir.
Os planos de saúde fazem o que querem”, diz especialista
Doutora em Saúde Pública, a médica Ligia Bahia, do Laboratório de Economia da Saúde da UFRJ, afirma que o preço dos planos de saúde é muito baixo no Brasil. E que, para mantê-los assim, as empresas descontam do valor o atendimento prestado pelo serviço público a seus próprios clientes. Senão o preço seria muito mais alto e não teríamos 25% da população atendida – diz, destacando que a expansão desse mercado se dá às custas do “livre trânsito entre o público e o privado”. Para Ligia, o ressarcimento desses atendimentos ao SUS foi sendo limitado por medidas da Agência Nacional de Saúde e, hoje, pela lei, apenas internações eletivas têm de ser reembolsadas. – A regulamentação do ressarcimento é um lixo – resume Ligia.
Como surgiu a ideia do ressarcimento ao Sistema Único de Saúde (SUS)?
LIGIA BAHIA: O ressarcimento nasceu de uma ideia inicial do Banco Mundial, para fazer um fundo para atendimento dos casos mais complexos. Complexidade leia-se caro. O Jatene (Adib Jatene, ex-ministro da Saúde) transformou essa ideia em ressarcimento ao SUS, achando que seria um recurso adicional para o sistema. Tem uma justiça contábil evidente. O problema é que nossa Constituição diz que a saúde é um direito de todos. Sistema universal atende rico. O problema do ressarcimento é que ele está muito judicializado. O Supremo Tribunal Federal ainda não decidiu qual é a posição dele. Enquanto isso, ninguém paga. As Unimeds vão entrando com ações nas instâncias inferio-res. A ideia original era de que o governo e o setor privado contribuissem, constituindo um fundo. A Colômbia adotou esse fundo, que é chamado de Solidariedade. O Brasil rejeitou essa ideia.
Como funciona?
LIGIA: Toda vez que um cliente de plano de saúde for atendido pela rede do SUS, é expedida uma Autorização de Internação Hospitalar, com o nome da pessoa. Esses dados são cruzados com o cadastro de beneficiários de planos de saúde. Existe um sistema que coteja essas informações. A ideia de Jatene era de um ressarcimento mais amplo. O que está em vigência hoje é só o ressarcimento na internação. E só na internação eletiva, não na de emergência.
A lei determina isso ou a operação que acabou sendo assim?
LIGIA: Isso foi por conta da regulamentação da lei 9656, de 1998, que restringiu o reembolso às inter-nações eletivas. O caso do Fábio Barreto (cineasta que sofreu acidente e recebeu o primeiro atendimento no Hospital Miguel Couto, público) está fora. O atendimento ambulatorial, hemodiálise, medicamentos de uso excepcional para doenças raras. Tudo isso está fora do ressarcimento. Hoje o SUS gasta R$ 2 bilhões por ano com medicamentos de uso excepcional. Com os da Aids gasta mais R$ 1 bilhão por ano. Está fora também o atendimento ambulatorial de câncer. Vários tratamentos como quimioterapia e radioterapia são ambulatoriais. São procedimentos que certamente as empresas empurram para cima do SUS.
O sistema de ressarcimento funciona?
LIGIA: O sistema de informação está super falho. Mas não sabemos quais os problemas. Isso não é divulgado. A lei entrou em vigor em 1998, mas por meio de medida provisória que já mudou a lei, restringindo esse ressarcimento. Ao longo do tempo, as medidas, foram 43, foram retirando o espírito da lei. Pelo lado das entidades médicas, científicas e dos consumidores, o objetivo era ampliar a cobertura. Para as empresas não era bem assim. As seguradoras, principalmente, queriam aprovar a entrada do capital estrangeiro e conseguiram. Outro objetivo era impor barreiras à entrada no mercado. A lei não é uma coisa pura, que a sociedade exigiu. Seria ingenuidade imaginar isso. Mesmo assim, ela saiu favorável do Congresso. Ela ficou pior administrativa-mente. Com as medidas da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar, criada para fiscalizar e regular os planos de saúde).
Essas medidas eram para regulamentar a lei?
LIGIA: Isso. A do ressarcimento foi a pior de todas. Sinceramente, ela é um lixo. Restringiu o reembolso a internações eletivas, quando a gente sabe que o mais comum é o atendimento de emergência e os ambulatoriais. Claro que há pressão das empresas contra o ressarcimento, principal-mente das Unimeds.
Por quê?
LIGIA: As Unimeds no interior usam muito o sistema público. É muito comum. Elas alegam que tem cobertura e que são os clientes que fazem essa opção.
Há outras barreiras ?
LIGIA: Do ponto de vista de preços também há problemas. Muitos médicos e hospitais preferem receber do SUS. O SUS paga melhor, não glosa (cortes na conta), paga em dia. Se conversar com o pessoal de transplante de fígado do Rio de janeiro, eles nem querem ouvir falar de plano de saúde. Se o paciente complicar, o plano exige autorização. Eles acham o SUS tudo de bom, o SUS paga bem, na conta deles inclusive. Por ser um procedimento de alta letalidade, todos estão olhando para o resultado deles. Eles têm que apresentar taxa de letalidade mais baixa. Por que fazer pelo plano, se está tudo bem pelo SUS? A mesma coisa na hemodiálise. Quem é dono de clínica de hemodiálise não quer saber de plano de saúde. O ideal era ter o cartão SUS. Com cartão está resolvido o problema. Saberíamos a trajetória. Não é só uma ida. São várias idas e vindas. Não temos a informação da saúde do indivíduo e nem do ressarcimento devido.