Os reféns da casa-grande

Presos a uma agenda moralista, o PT e o PSDB evitam o debate maduro de ideias e consomem-se em acusações mútuas de corrupção, como o escândalo dos trens em São Paulo e o “mensalão”

Miguel Martins, Rodrigo Martins | Carta Capital

A história repete-se como farsa. A frase de Karl Marx, bastante desbotada pelo uso, nunca fez tanto sentido no Brasil. Nas últimas semanas, influenciada pelas prisões dos condenados no “mensalão” e pelas trocas de acusações entre petistas e tucanos por conta do escândalo dos trens em São Paulo, a política nacional parece mergulhada em um “mar de lama”. O termo aqui não é gratuito. “Mar de lama” foi uma expressão bastante explorada no auge da até então mais ferrenha disputa pelo poder no País em tempos de eleições livres, protagonizada pelo PTB de Getúlio Vargas e a UDN de Carlos Lacerda. O resultado, ninguém há de duvidar, não poderia ter sido pior: duas décadas de uma ditadura que nos tirou dos trilhos da modernidade.

Em 2014, ano de eleição presidencial, a polarização PT-PSDB completará 20 anos. Embora o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, e a ex-senadora Marina Silva se apresentem como uma terceira via, nada indica, por ora, mudanças no embate nas urnas. Se assim for, a dicotomia petista-tucana terá perdurado mais do que a velha rinha PTB-UDN do século passado.

Como ontem, o atual duelo escora-se em um pilar que fez, faz e sempre fará mal à democracia, a criminalização da política. Com cada vez menos diferenças ideológicas e, em grande medida, trancafiados em uma armadilha montada pelo poder real, permanente, entre eles a mídia, as duas legendas têm aceitado a pauta. O PSDB, por falta de um programa de governo e uma vã esperança de voltar ao poder por meio do discurso moralista. O PT, pela incapacidade de exorcizar seus fantasmas internos, admitir eventuais erros e enfrentar as forças que procuraram fazer seus escândalos parecerem maiores e mais graves do que realmente são, ainda que merecedores de punições dentro das regras republicanas.

O pugilato moral é ruim para as duas forças. Uma vitória por pontos não acrescenta muito se, no fim das contas, a plateia vaia os contendores no ringue. E é o que tem ocorrido, relata o cientista político Marcos Coimbra à página 49: “Quem lida com pesquisas de opinião, particularmente as qualitativas, vê avolumar-se o contingente de eleitores que mostram odiar alguma coisa ou tudo na política. Não a simples desaprovação ou rejeição, o desgostar de alguém ou de um partido. Mas o ódio”.

A desilusão atinge até mesmo habituados ao jogo político. “Não vejo diferença na proposta político-econômica dos presidenciáveis. Nenhum deles discute mudanças estruturais”, lamenta o economista Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES. “A corrupção está enraizada no País, mas o problema é a inexistência de diferenças significativas entre os partidos. O eleitorado percebe que a sucessão presidencial não vai colocar o Brasil em pauta.”

O novo cavalo de batalha é a investigação do cartel do Metrô e dos trens em São Paulo, delatado pela Siemens. Além da empresa alemã, gigantes do setor de transportes, como a francesa Alstom, a canadense Bombardier e a espanhola CAF são suspeitas de manipular licitações do governo paulista, sob o comando dos tucanos há 19 anos. São sólidos os indícios de pagamento de propina a agentes públicos, além de uma denúncia anônima sobre supostos repasses para o caixa 2 do PSDB.

Edson Aparecido, secretário da Casa Civil do governador Geraldo Alckmin, e o deputado federal Arnaldo Jardim (PPS-SP), sempre na órbita dos tucanos, são apontados no documento entre os receptores de propina. O texto cita ainda o secretário de Desenvolvimento Econômico, Rodrigo Garcia (DEM), o secretário de Transportes Metropolitanos, Jurandir Fernandes, e os parlamentares tucanos José Aníbal e Aloysio Nunes como partícipes na trama, devido ao “estreito relacionamento” com o consultor Arthur Teixeira, suposto operador do esquema.

A denúncia é atribuída a Everton Rheinheimer, ex-diretor da Siemens. Embora não assuma a autoria, sobretudo após assinar um acordo de delação premiada, fontes ligadas à investigação confirmaram a CartaCapital ser ele o autor do documento apócrifo.
Todos os políticos citados negam qualquer ilegalidade, e acusam o PT de forjar a denúncia na tentativa de incriminá-los. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, admitiu ter recebido em maio o documento das mãos do petista Simão Pedro, secretário de Serviços do prefeito Fernando Haddad, e repassado o material à Polícia Federal. “Não há nada sendo investigado a partir de denúncia anônima. Já existia o inquérito”, afirmou o ministro.

 

A inclusão do documento nos autos do inquérito gerou, porém, uma virulenta reação dos caciques tucanos. Os políticos citados chamaram o ministro de “farsante”, “aloprado” e “irresponsável”. O senador Aécio Neves, presidenciável tucano, assumiu a linha de frente na defesa dos colegas: “Acho que ele perdeu as condições de ser o coordenador dessas investigações como ministro da Justiça, pelo açodamento nesse processo”. Uma representação pede à Procuradoria-Geral da República que apure eventual prática de improbidade administrativa de Cardozo.

Há muito em jogo. Ao delatar o cartel, a Siemens escancarou os meandros de um esquema que pode ter superfaturado em até 30% vários contratos com o Metrô e a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). O prejuízo aos cofres públicos é estimado em mais de 570 milhões de reais. O valor é quase oito vezes superior ao total de recursos supostamente desviados do Banco do Brasil (73,8 milhões) para abastecer o “mensalão” petista, fonte de dinheiro público identificada no esquema, segundo a versão consagrada na condenação do Supremo Tribunal Federal. Além do acerto ilícito entre empresas do cartel, a PF deparou-se com provas de pagamento de propina a agentes públicos.

É o caso de João Roberto Zaniboni, ex-diretor da CPTM nos governos de Mario Covas e Geraldo Alckmin. No início de novembro, a Justiça da Suíça comunicou às autoridades brasileiras sua condenação, naquele país, por lavagem de dinheiro. Entre os bens confiscados, há 836 mil dólares em uma conta no Credit Suisse de Zurique. Parte dessa soma, 255,8 mil dólares, foi transferida por Arthur Teixeira. Os suíços acreditam que o dinheiro era fruto de propina paga pela Alstom, mas chegaram a desistir do caso por falta de colaboração das autoridades brasileiras. Dormitava no gabinete do procurador Rodrigo De Grandis, desde 2011, um pedido para a tomada de depoimento de suspeitos. Por conta de “uma falha administrativa”, o pedido foi arquivado em uma pasta errada.

Após a quebra do sigilo fiscal da Focco Tecnologia e Engenharia, empresa da qual Zaniboni foi sócio, a PF identificou depósitos da Alstom que somam 2 milhões de reais, além de 8,5 milhões pagos pelo governo paulista por serviços de consultoria. A empresa pertence a outro ex-diretor da CPTM: Ademir de Araújo.

As suspeitas de formação de cartel tampouco são novas. Conforme CartaCapital revelou em 2009, as combinações ilícitas foram denunciadas por um ex-diretor da Siemens naquele mesmo ano. Um documento com o modus operandi do esquema foi apresentado ao Ministério Público Federal pelo deputado estadual petista Roberto Felício, que tomou conhecimento do relato do executivo. Para lavar o dinheiro ilícito, as empresas do cartel usariam os serviços de Arthur Teixeira e Sergio Meira Teixeira, donos das empresas Procint Projetos e Consultoria Internacional e Constech Assessoria e Consultoria Internacional, apontadas pelo informante como responsáveis por duas offshore no Uruguai.

As companhias são suspeitas de intermediar o pagamento de propina. À época, dois contratos firmados pela Siemens com as offshore uruguaias, e apresentados ao procurador De Grandis, comprovavam a relação entre as empresas. Com a quebra dos sigilos fiscal e bancário, hoje a PF sabe que apenas a Procint movimentou mais de 37,5 milhões de reais entre 2002 e 2011. Ao menos 14,5 milhões são recursos depositados por empresas do suposto cartel, como Alstom, Bombardier, CAF, Siemens e MGE.
Arthur Teixeira não atendeu aos pedidos de entrevista de CartaCapital. Seu sócio faleceu em 2011. Ao jornal O Estado de S. Paulo, o dono da Procint negou que os depósitos de clientes seriam decorrentes de pagamento de propina ou de serviços fictícios. A transferência feita para a conta de Zaniboni na Suíça seria a remuneração de uma consultoria “informal” feita por ele.

Em 2011, dois anos após as primeiras denúncias, o então deputado estadual Simão Pedro encaminhou ao MP paulista novas informações repassadas pelo informante da Siemens. Entre elas, uma carta anônima enviada ao ombudsman da empresa alemã, na qual é relatado o pagamento de propina a agentes públicos no Brasil. Tanto a cópia do e-mail original, em inglês, como uma tradução em português foram repassadas aos promotores paulistas.

Novas cópias foram anexadas recentemente ao inquérito da PF. Os tucanos acusam Simão Pedro de ter acrescentado trechos inexistentes na tradução, para envolver o PSDB nas denúncias. “As duas versões dessa carta endereçada ao ombudsman da Siemens estão com o Ministério Público há anos”, defende-se o petista.

O documento que cita nominalmente políticos tucanos é outro, mais recente. Não tem assinatura, mas foi datado: “17/04/2013”. Nesta peça, o denunciante anônimo diz ter se reunido anteriormente com os promotores Valter Santin, Silvio Marques e Beatriz de Oliveira para dar mais detalhes do cartel.

Simão Pedro acompanhou o informante para essa conversa no Ministério Público de São Paulo em 2012, versão confirmada pelos promotores paulistas. “O denunciante estava com medo de depor. Queria garantias”, lembra Marques. “Não havia indícios suficientes para justificar quebras de sigilo ou interceptação telefônica”, emenda Beatriz de Oliveira.

O petista alega que as informações repassadas a Cardozo não diferem muito do exposto aos promotores anteriormente. “Procurei colaborar de todas as formas possíveis. Na Assembleia Legislativa, tentei diversas vezes emplacar uma CPI.”

Com a identidade exposta pela mídia, Rheinheimer evita jornalistas. Divulgou apenas uma nota oficial na sexta-feira 22, na qual informa que o documento atribuído a ele “é, na verdade, anônimo.” Segundo o executivo, o material devassado e as informações publicadas foram distorcidos e “não condizem com a realidade”. Foi a senha para a cúpula tucana partir para a ofensiva e classificar a denúncia como uma fraude de “aloprados petistas”.

A nota não confirma nem desmente a autoria do documento, alertam fontes ligadas a Rheinheimer. O documento continua a ser, como sempre foi, uma peça sem assinatura. Quanto às “distorções”, o denunciante queixou-se a interlocutores do uso de trechos fora do contexto em meio à intestina disputa política entre PT e PSDB.

Citado na denúncia e considerado um dos principais articuladores políticos do governador paulista, Edson Aparecido nega ter relações com Arthur Teixeira e insiste na tese da fraude. “Esse ex-diretor da Siemens já desmentiu tudo”, afirma. “Isso vai ao encontro da delação premiada feita em São Paulo e Brasília, na qual ele não cita nenhum nome”, emenda, sem explicar como pôde consultar o acordo sigiloso. Segundo a Lei nº 12.850, de 2013, um colaborador da Justiça não pode ter a identidade revelada. O acesso aos autos é restrito ao juiz, ao MP e ao delegado de polícia. O acordo de delação premiada, por sinal, está apartado do inquérito. Só deve ser revelado após a apresentação da denúncia à Justiça.

 

Um dos mais exaltados com a denúncia anônima é o senador Aloysio Nunes. Ele admite relações profissionais com a Procint, mas nega qualquer ilegalidade. Seu nome acabou, porém, atrelado a outro investigado. Desta vez, por uma testemunha identificada: Edna Flores, ex-secretária do consultor Jorge Fagali Neto.

Em 2009, a Justiça de São Paulo determinou o bloqueio de uma conta na Suíça atribuída a Fagali Neto, sob suspeita de receber recursos ilegais da Alstom. Os depósitos somaram mais de 10,5 milhões de dólares no Banque Safdié de Genebra até setembro de 2003, segundo o Ministério Público da Suíça.

Secretário de Transportes Metropo- litanos do governador Luiz Antonio Fleury Filho (PMDB) e irmão de José Jorge Fagali, ex-presidente do Metrô, o consultor recebia informações privilegiadas do engenheiro Pedro Benvenuto, secretário-executivo do Conselho Gestor do Programa de Parcerias Público-Privadas. Após a secretária Edna Flores apresentar os registros da troca de e-mails entre eles sobre investimentos do Metrô, Benvenuto pediu afastamento do cargo no fim de setembro de 2013. Duas semanas depois, daria mais detalhes sobre os negócios de Fagali Neto à PF.

A cada três meses o ex-patrão viajava para a Suíça, registra a secretária em seu depoimento, de 9 de outubro. Ainda de acordo com o relato, o consultor mantinha contato quase diário com o lobista Arthur Teixeira. Ele usava dinheiro em espécie, inclusive em malas, para pagar despesas. Antes das licitações, reunia-se com representantes de empresas como Tejofran, Bombardier e Mitsui “para ajustar previamente os valores”. A secretária diz ainda que as planilhas a ser apresentadas nos certames eram elaboradas e modificadas pelo grupo. De acordo com ela, “Fagali Neto trocava e-mails com Aloysio Nunes acerca das licitações no metrô”.

Nunes não respondeu aos pedidos de entrevista de CartaCapital. Na quarta-feira 27, conseguiu aprovar na Comissão de Ética do Senado um convite para Cardozo explicar suas “intervenções” no inquérito. O ministro da Justiça reagiu: “Acho lamentável que queiram transformar quem cumpre a lei em réu apenas pelo fato de que há uma investigação, obviamente existente desde 2008. A maior parte dos países atingidos por esse escândalo investigou e puniu os envolvidos. O Brasil caminha lentamente.”

A escalada de denúncias contra o PSDB é uma tentativa do PT de se proteger do impacto negativo do “mensalão”, acusam os tucanos. O deputado Sérgio Guerra, ex-presidente do PSDB, garante que seu partido evitará a exploração de casos de corrupção na campanha. “Não temos que eleitoralizar um assunto tratado no âmbito jurídico, seu fórum adequado.”

Parece uma posição sensata, avaliam cientistas políticos. “Nas eleições municipais de 2012, mesmo com o julgamento em evidência, o PT não perdeu votos. Os partidos não sofrem grandes abalos por conta de escândalos. Tampouco os casos de corrupção do PSDB devem alterar seu desempenho eleitoral”, garante Marcus Figueiredo, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Para o eleitorado, a corrupção não está associada a partidos específicos, mas ao sistema político brasileiro, observa Leonardo Avritzer, da Universidade Federal de Minas Gerais. “Os eleitores não percebem a existência de um partido mais corrupto do que o outro. Entre os menos informados, há a tendência de criticar toda a classe política. Os mais informados sabem que é uma questão complexa, ligada ao financiamento das campanhas políticas.”

Poucos duvidam, no entanto, que os escândalos devem ocupar um lugar privilegiado nos debates de 2014. Com a filiação de Marina Silva ao PSB, fala-se muito da possibilidade de a candidatura de Eduardo Campos representar uma terceira via, capaz de desmontar a previsibilidade dos ataques mútuos entre petistas e tucanos.

Para Avritzer, o crescimento do PSB pode levar ao deslocamento do espectro político para a esquerda, caso o partido consiga superar o PSDB como principal força de oposição. “Campos tem críticas ao governo federal, mas reconhece o legado de Lula.” Figueiredo discorda: “Ele disputa no campo da direita. Esforça-se por ter apoio da elite do Nordeste e busca aliados na Avenida Paulista”. Com uma virtude: distancia-se do denuncismo.

Apesar das promessas dos partidos e das análises dos especialistas, as duas últimas eleições presidenciais indicaram o contrário. Nelas, o discurso moralista, vazio, eclipsou qualquer debate sério de ideias. O udenismo venceu. Não nas urnas, mas no controle da agenda.