Parto e nascimento: medicalizado e mercantilizado
O abuso das cesarianas no Brasil é um problema crônico e caracteriza-se como uma das mais importantes medicalizações do parto, mas, nem mesmo assim, até o presente momento, foi enfrentado de forma adequada pelo SUS. Comitês de morte materna, limites e taxas de partos cirúrgicos toleráveis foram algumas das estratégias tentadas além de outras ideias como as que advogam pela retirada do parto do ambiente hospitalar.
O recente debate imposto pelos planos de saúde sobre o custo adicional do parto tem clara relação com o problema do excesso das cesarianas no país e, ao mesmo tempo, reflete a lógica mercantil que rege o abandono que as mulheres vivenciam na hora do parto.
O fato das parturientes vinculadas aos planos privados de saúde não contarem com a garantia do atendimento ao parto pelos profissionais que acompanharam o pré-natal é resultado de uma negligência da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que não regulamentou sobre o tema, permitindo avançar o descompromisso dos profissionais que demandam receber “por fora” para garantir disponibilidade no momento do parto.
Efetivamente, o parto é um procedimento e, como tal, tem um custo para o profissional. Não obstante, deve ser garantida a presença do médico assistente do pré-natal sem que isso tenha custo adicional ao que os segurados já pagaram aos seus respectivos planos.
No contexto atual, a assistência prestada ao parto pelos planos de saúde ocorre por meio do plantonista da maternidade e, somente quando as mulheres gestantes pagam a taxa de chamada, elas podem ser assistidas por outro médico. Esta situação gera vulnerabilidade e risco para as mulheres parturientes que não contam no momento do parto, com o profissional que realizou o seu atendimento pré-natal. O médico que a atende, além da inexistência do vínculo de confiança essencial nesse momento da vida, desconhece detalhes acerca do curso da gravidez ou mesmo da sua situação de saúde, o que comprovadamente contribui para elevar taxas de cesáreas, morbidade e mortalidade materna.
A lógica que hoje prevalece deixa à cargo das mulheres buscar uma solução cuja alternativa única é aquela que ocorre por meio do pagamento adicional de taxas ao medico assistente. É o ônus que é pago pela segurada de um plano de saúde, para fazer valer uma condição que reduz o seu risco obstétrico pelos comprovados benefícios da presença do médico assistente do pré-natal no momento do parto.
A própria ANS, em tese, parece concordar com os benefícios do atendimento ao parto pelo profissional que realizou o acompanhamento pré-natal, ao afirmar que a mulher pode exigir que o parto seja feito pelo seu médico sem o pagamento de taxas adicionais. Aparentemente, a Agência entende que a mulher já pagou por isso, com o que concordaríamos integralmente. Mas as prestadoras não entendem assim e constrangem por solução para ampliar seus lucros negando-se a dispor de gastos adicionais com as parturientes.
A ANS defende, então, que, para cobrar taxas complementares, o contrato do plano deve prever tal cláusula, caso contrário, não podem cobrar. Nesta situação, a ANS demonstra já não ter compromisso com a qualidade do parto, a saúde das mulheres e ou preocupação com os riscos para a parturiente que vive essa insegurança no momento de parir. Fica explícito que a ANS fundamenta a sua manifestação técnica apenas num legalismo contratual, desconsiderando sua missão de uma Agência reguladora que deve contribuir para garantir a saúde.
No abandono do Estado e das suas instituições reguladoras, as mulheres sobrevivem, sofrem, angustiam-se, adoecem e até morrem sem que outra ética de cuidado se sobreponha àquela da mercantilização da saúde. O tratamento da saúde como mercadoria e a subsequente defesa dos interesses corporativos prevalece.
Foi nessa perspectiva que o Conselho Regional de Medicina do DF se adiantou e tomou posição favorável à criação e ao pagamento de mais uma taxa que chamou de “taxa de disponibilidade”, a qual seria cobrada das mulheres parturientes, pela decisão de serem atendidas por seus obstetras que acompanharam o pré-natal. O Conselho Federal apoiou a iniciativa.
Os Conselhos de Ética e Fiscalização do exercício profissional são autarquias criadas com a atribuição de fiscalizar o exercício profissional. Esta delegação do Estado, entretanto, não retira do Estado seu poder-dever de preservar a saúde e o interesse publico. Ou, ao menos, não deveria.
Tudo o que as mulheres demandam, em casos como este, é o que a boa prática da assistência obstétrica e o conhecimento científico sempre preconizou: que o médico que realizou o pré-natal acompanhe o momento do parto. Essa condição tem impacto positivo na saúde da mulher e do recém-nascido e, por isso, seria a decisão governamental esperada em tempos de prioridade presidencial à política da Rede Cegonha.
Sem enfrentar os interesses do corporativismo, o Ministério da Saude permitiu que o CRMDF normatizasse o assunto, editando a Resolução nº 340/2012. No documento, o conselho justifica o pagamento da taxa e cria o modelo do termo a ser firmado entre paciente e médico.
A perversa situação para as mulheres gestantes vem dividindo opiniões situadas entre o parecer favorável do Conselho Federal de Medicina (CFM), pacientes, associações de consumidores e operadoras de plano de saúde.
A ANS ainda não regulamentou o tema que, por suas repercussões sobre a saúde das mulheres, requer urgência. Mas qual regulamentação seria necessária para preservar a saúde e os direitos das mulheres? Um caminho eticamente defensável seria sustentar o direito ao produto adquirido dos Planos de Saúde, ou seja, a “saúde”.
Nessa perspectiva, não se podem admitir novas taxas e cobranças adicionais apenas para garantir, no parto, a óbvia presença dos profissionais que atenderam a paciente durante o pré-natal. Se houver pagamento a tais profissionais, que sejam feitos pelos planos, sem qualquer cobrança, direta ou indireta, às usuárias dos planos de saúde.
O grupo técnico criado para elaborar a proposta, a direção da ANS e o Ministro da Saúde não podem penalizar mais uma vez as famílias e as mulheres, cujo ônus com a saúde tem sido, no seu conjunto, bem maior que o gasto público. E a ANS e o governo não podem permitir que a mercantilização do parto implique em um risco a mais para a saúde e a vida das mulheres e recém nascidos brasileiros.