Passe livre, SUS e “Mais médicos”: o que fazer agora?

Paulo Capel Narvai *

Os significados das manifestações que ocorreram nos últimos meses em nossas cidades, questionando práticas e valores da cena brasileira contemporânea, permanecerão ainda por muito tempo instigando reflexões e interpretações, em vários campos. Desatados pela rejeição frontal ao aumento das tarifas de ônibus, esses questionamentos se direcionaram para a política econômica, as políticas sociais, notadamente a educação e a saúde e, sobretudo, nosso modus operandi relativo a como lidamos com o poder, ou seja, com a política.

Dentre outros aspectos, as manifestações colocaram no centro dos debates as distorções da representação da cidadania por meio dos partidos e a forma como são exercidos os poderesem nossa República, a ponto de, em resposta, se cogitar a convocação de uma Assembleia Constituinte, específica para uma “reforma política”. Em resumo, os manifestantes questionaram o que estamos fazendo com as conquistas derivadas das lutas democráticas contra a ditadura civil-militar e exigiram, como nunca havia sido feito desde as mobilizações pelas “Diretas Já”, o exercício de direitos sociais fixados na Constituição de 1988. O recado foi claro: não basta inscrever tais direitos na legislação, é preciso dar-lhes concretude no cotidiano.

Nesse contexto extremamente complexo, atenho-me, neste artigo, à saúde, uma vez que as manifestações promovidas pelo Movimento Passe Livre (MPL) lhe conferiram maior visibilidade pública. A saúde, que havia anos se mantinha restrita aos movimentos sociais e campanhas eleitorais, virou bandeira em faixas e cartazes e motivou cidadãos a gritarem por ela nas ruas e praças. Contudo, se o movimento social foi certeiro em identificar a saúde como um problema socialmente relevante, foi também genérico e ambíguo em suas proposições. Palavras de ordem como “Dinheiro pra Copa não, pra saúde e educação sim” ou “Queremos hospitais padrão Fifa” são importantes para indicar a preocupação com a saúde, mas contrapõem coisas bem diversas e não antagônicas diretamente (Copa e SUS, p.ex.). O já clássico “Enfia os 0,20 no SUS” não significa, necessariamente, a defesa do SUS. A defesa “da saúde”, genérica, também não significa a defesa “do SUS”. Tem-se a impressão, portanto, de que o modo como “a saúde”apareceu na pauta das manifestações requer, agora, tentar traduzir o sentimento dos manifestantes, e analisar suas implicações para a política pública de saúde.

O direito à saúde requer ir muito além do direito à assistência quando se está doente. Quem trabalha no setor saúde sabe que lida em seu dia-a-dia profissional contra as consequências, na vida das pessoas, da miséria, da ignorância, dos ambientes de trabalho insalubres e inseguros, de habitações precárias, de transportes públicos indecentes, enfim, de toda uma forma de organização social violenta e geradora de desigualdades brutais. Não obstante reconhecer tudo isso, é crucial, imprescindível, assegurar o acesso de todos aos cuidados de saúde de que necessitam. E não se consegue isso, não se viabiliza a assistência para todos, sem que médicos lhes sejam acessíveis. Isto não significa diminuir a importância do trabalho das equipes de saúde, de enfermeiros, e outros trabalhadores do setor.

As lutas pelo direito à saúde, impulsionadas positivamente pelos atos patrocinados pelo MPL, requerem, ora em diante, identificar quais são os entraves ao exercício desse direito, e que interesses devem ser contrariados para viabilizá-lo.

Após muitos anos adotando, sem sucesso, diferentes estratégias para que certos municípios do interior, e determinadas áreas de grandes cidades, pudessem contar com profissionais médicos, o Ministério da Saúde anunciou o programa “Mais Médicos”, com o objetivo de enfrentar o problema. Desde então se instalou um conflito com as entidades médicas, que se opuseram ferozmente à iniciativa federal, sob a alegação de que não há garantias de qualidade da formação de médicos estrangeiros a serem contratados, e de que o verdadeiro problema não é a falta de médicos, mas a qualidade dos serviços, a corrupção e a má gestão dos serviços públicos.

Embora seja inegável, sob qualquer ponto de vista, que há muitas dificuldades para conseguir acesso a médicos, em todos os cantos do país, as entidades insistem em que esses profissionais não estão em falta no Brasil. O que estaria levando a categoria médica, e suas lideranças, a se recusar a reconhecer algo que está à vista de todos? Por que interesses corporativossão dirigidos à colisão com o que é de evidente interesse público? Por que, enfim, estamos à beira de um conflito institucional grave, opondo médicos e autoridades públicas?

Tratando-se de um problema estrutural, por certo que ações emergenciais, como importar médicos – que, após seleção, já estão sendo contratados – não bastam para lidar com as causas dos problemas. Quais seriam essas causas?

O quadro atual resulta de vários fatores, dentre eles a pressão das entidades médicas nas últimas décadas contra a ampliação de vagas. Com menos médicos no mercado de trabalho, é maior a remuneração média desses profissionais, que se situam em vantagem competitiva no mercado de trabalho, inclusive o mercado público, nas esferas municipal, estadual e federal. Esta vantagem envolve também a relação remunerativa dos médicos com outros profissionais de saúde. Cabe assinalar, que as entidades médicas reivindicam uma Carreira “de Estado” (sic) para Médicos, mas não a Carreira Nacional do SUS, para todos os profissionais de saúde. Os médicos querem ser “de Estado”, mas não querem ser “do SUS”. O significado simbólico de ser “de Estado”, mas não ser “do SUS”, resta evidente – e expressa o que lideranças médicas pensam do SUS, e que tipo de relação querem ter com ele.
A posição médica contrária à abertura de mais vagas em cursos médicos de universidades públicas sempre teve decidido apoio dos proprietários de cursos privados. Os valores exorbitantes das mensalidades desses cursos destoam muito das de outros cursosda área da saúde. São desproporcionais e injustificáveis à luz do interesse público. Explicam-se apenas no contexto da transformação da educação em negócio. A “formação do preço” da educação-mercadoria é afetada de modo relevante pelo número de médicos no mercado de trabalho. Quanto menos médicos, mais altos os valores das mensalidades nos cursos privados de medicina. Resulta evidente que os interesses particulares da categoria médica vêm se aliando, historicamente, aos propósitos dos que comercializam a formação médica. Este é o problema estrutural a ser enfrentado, pois o corporativismo médico e o comércio da educação, ainda que emoldurados por falas edulcoradas e pomposas em defesa “da saúde pública” e “da qualidade da formação”, nada têm a ver com os direitos à educação e à saúde.

No conflito do “Mais Médicos” a sociedade encontra-se refém desses interesses, pois segue sem os médicos de que necessita e pagando preços extorsivos para formá-los. Para dar consequência às exigências das manifestações do inverno de 2013, é preciso avançar na institucionalização do SUS e fazer valer o interesse público.

(*)PAULO CAPEL NARVAI, 58, é professor titular e chefe do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

Publicado no Jornal do Professor,Ano II, número 9, setembro de 2013, página 2. Versão eletrônica em:
http://issuu.com/adufg/docs/jornal-9?e=6224795/4905395