PEC Emergencial e Saúde: novas formas para antigos ataques

Análise publicada originalmente no Boletim do Observatório de Análise Política em Saúde – edição n°33 – janeiro/fevereiro de 2021

A atenção de defensores/as do Sistema Único de Saúde (SUS) se voltou novamente para a PEC 186/2019, mais conhecida como PEC Emergencial. Em tramitação no Senado, a PEC propõe a desvinculação dos orçamentos da saúde e da educação. Na prática, governos federal, estaduais e municipais deixam de ter um valor mínimo obrigatório para investimento nas duas áreas. É mais uma iniciativa do Poder Legislativo avaliada como ataque e caminho para o retrocesso no âmbito do direito à saúde.

A desvinculação dos orçamentos tem sido colocada como condição para o retorno do auxílio emergencial pago a brasileiros/as entre os meses de abril e dezembro de 2020. Inicialmente com parcelas de R$600 por mês (até R$1200 por família), pagas nos meses de abril a agosto, o auxílio foi reduzido pela metade, com pagamento de R$300 nos meses de setembro a dezembro. A retomada do auxílio voltado para famílias pobres que mais sofrem os impactos socioeconômicos da pandemia, atualmente em discussão no Senado, prevê o pagamento de quatro parcelas de R$250 nos meses de março a junho deste ano.

A votação da PEC, estimada inicialmente para o dia 25 de fevereiro, foi adiada após pressão de entidades e da oposição no Congresso Nacional contra a desvinculação dos orçamentos da saúde e da educação. Em manifesto, mais de 50 entidades das duas áreas pedem que a desvinculação saia da pauta e que a Constituição seja respeitada.

A tentativa de condicionar a aprovação desta PEC ao retorno do auxílio emergencial, medida tão necessária para proteger milhões de brasileiros desempregados ou sobrevivendo no mercado informal, é indevida e absurda, pois a ausência de garantia de recursos para a saúde e educação lhes rouba o futuro. A PEC 186 não é socialmente aceitável e esconde a falta de vontade política de buscar outras saídas, inclusive a taxação das grandes fortunas, caminho trilhado por outros países”, criticam.

PEC 186

A proposta inicial da PEC 186/2019, apresentada em novembro de 2019 como parte do Plano Mais Brasil e prioridade do governo para aprovação pelo Congresso Nacional, prevê a instituição de mecanismos de ajuste fiscal para redução de despesas obrigatórias.

O texto original contempla medidas temporárias (vigentes por dois anos) e permanentes, como a alocação de recursos para pagamento de dívidas públicas em caso de excesso de arrecadação ou superávit financeiro.

A iniciativa também impõe algumas vedações, entre elas a criação de novas despesas obrigatórias e criação de cargo, emprego, função ou alteração de estrutura de carreira que provoque aumento de despesa.

Leia mais:

Boletim OAPS sobre Plano Mais Brasil: aborda as três Propostas de Emenda à Constituição (PECs) elaboradas pela equipe econômica do governo de Jair Bolsonaro e apresentadas ao Congresso Nacional em novembro de 2019, entre elas a PEC Emergencial (186).

Nas mãos do relator – o senador Márcio Bittar (MDB) – desde novembro de 2019, a matéria foi encaminhada ao plenário do Senado Federal em fevereiro deste ano e virou o centro das atenções ao ser pautada como condição para viabilizar a retomada do auxílio emergencial.

O parecer apresentado pelo relator na forma de substitutivo, no último dia 22 de fevereiro, propôs um protocolo de responsabilidade fiscal e uma cláusula de calamidade para manutenção do auxílio em 2021. Previu também que as despesas com este pagamento não fossem consideradas para fins de apuração da meta fiscal e contempladas através de crédito extraordinário.

A proposição também pretendia revogar dispositivos da Constituição Federal de 1988 que asseguram percentuais mínimos de repasse para a saúde e a educação nos três níveis da federação. Em outras palavras, a ideia era acabar com os pisos constitucionais para as duas áreas. Atualmente, por conta da Emenda 95 (Teto de Gastos), a Constituição determina que a União destine para os dois setores os mesmos recursos do ano anterior, atualizados pela inflação. O percentual mínimo para os Estados é de 12% (saúde) e 25% (educação) e, para os Municípios, de 15% (saúde) e 25% (educação).

Após pressões, adiamento e discussões sobre o fatiamento da proposta , o Plenário do Senado aprovou em primeiro turno, no dia 03 de março, o texto-base da PEC. Esta versão limita o pagamento do auxílio emergencial a um custo total de R$ 44 bilhões e deixa de fora a supressão dos pisos mínimos da saúde e da educação, além do fim dos repasses do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

A votação no Senado, em segundo turno, foi realizada no dia 04 de março. Com a aprovação, a PEC Emergencial seguiu para a Câmara dos Deputados, ainda sem definição de valor e duração do novo auxílio.

Reações da oposição e da sociedade civil

As reações contrárias à proposta de dar um fim aos pisos constitucionais para a saúde e educação, fundamentais para retirada desse item no texto da PEC, vieram em forma de mobilização da sociedade civil, parlamentares de oposição no Congresso, pesquisadores/as e especialistas. Para Ana Costa, diretora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), professora da pós-graduação da Escola Superior de Ciências da Saúde e pesquisadora do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS), a aprovação da PEC 186 foi transformada em chantagem pelo governo federal:

Mais uma vez o governo recupera a chamada PEC Emergencial e a submete ao Congresso Nacional transformando sua aprovação em chantagem para liberação do auxílio emergencial, sobre o qual existe um amplo consenso quanto à importância e necessidade como condição de controle da pandemia. Desta vez, a PEC ressurge exibindo crueldade aperfeiçoada contra trabalhadores, no padrão regular adotado pelo neoliberalismo, que aproveita as crises para avançar nas suas intenções e propostas perversas. Nesse caso, no seu recheio, a PEC traz medidas que aprofundam os efeitos colaterais da pandemia, em particular para os trabalhadores e desempregados. A desconstitucionalização dos investimentos em saúde proposta é imoral considerando apenas a situação que o povo brasileiro vem sendo sacrificado, pagando com vidas as consequências de um governo errante e genocida”, avalia a médica sanitarista.

Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, Paulo Kliass também classifica como “chantagem” a tentativa de colocar a aprovação da PEC 186 como contrapartida para o restabelecimento do auxílio. Para ele, o governo aproveitou a brecha para retomar o processo descrito pelo ministro Paulo Guedes como 3 Ds – desobrigar, desvincular e desindexar:

Na verdade, trata-se de mais uma tentativa de rasgar os dispositivos fundamentais da política de bem-estar ainda presentes na Constituição de 1988. Os 3 ‘D’s de fato almejados por ele, porém, são outros. Trata-se de destruir, demolir e desmontar. […] Guedes pretende deixar armada uma bomba atômica para destruir a capacidade dos governos oferecerem à população esses serviços públicos fundamentais. Ocorre que não há justificativa para que essa demolição seja colocada como pré-condição para que o auxílio seja restabelecido”. Leia o texto completo aqui

Além de mal recebida por pesquisadores/as e especialistas no assunto, a medida também não agradou à população em geral. Pelo menos é o que indica o resultado de uma consulta pública disponível no site do Senado, que revela a falta de popularidade da proposição entre a sociedade. Um total de 7.737 pessoas manifestaram apoio à PEC, enquanto 291.128 registraram voto contrário, equivalente a 97,4% de reprovação.

As críticas e o repúdio à proposta também estão presentes em notas, cartas abertas, mobilizações nas redes sociais e manifestos, como o já citado anteriormente, assinado por mais de 50 entidades das áreas de saúde e educação.

Em nota, a Andes – Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior considerou a medida como “uma atrocidade” e chamou a atenção para os impactos na vida dos/as sevidores/as públicos/as: “Para manter-se no poder, ele [Jair Bolsonaro] precisa mostrar sua fidelidade ao mercado financeiro e é neste contexto que o endurecimento das regras de ajuste fiscal ocorre. Ao invés de taxar as grandes fortunas e reativar os investimentos públicos para gerar emprego e renda, além de vacinar em massa nossa população, Bolsonaro ataca o(a)s servidore(a)s público(a)s e pretende desestruturar a rede pública de saúde e educação, prejudicando o(a)s brasileiro(a)s mais pobres”.

Os nove governadores do Nordeste também publicaram nota contrária à PEC, apontando que a vacinação em massa da população, o fortalecimento do SUS para suportar o agravamento da crise sanitária e a viabilização do auxílio emergencial devem ser prioridades. “No momento em que vivenciamos um agravamento da crise sanitária, em que milhares de famílias brasileiras choram a perda de entes queridos, em que milhões de brasileiras e brasileiros desempregados e desamparados clamam pelo auxílio do Estado brasileiro, consideramos que não cabe ao Parlamento protagonizar um processo desconstituinte dos direitos sociais, sob o pretexto de viabilizar o retorno do auxílio emergencial“.

A Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e mais 80 entidades religiosas e da sociedade civil se posicionaram contra a proposta, que representa um “retrocesso radical”. “O Legislativo como guardião da democracia não pode aceitar chantagens, utilizando o Auxílio Emergencial, tão necessário, como justificativa para passar um projeto que desobriga o Estado com as políticas públicas basilares para a construção de uma sociedade mais justa”, afirmam em nota pública.

No Congresso, parlamentares de oposição se articularam para evitar a tramitação acelerada da PEC, sem passar pelas comissões; para a votação de um requerimento que desagrega o trecho do texto que dispõe sobre o auxílio, transformando-o em um projeto à parte; para pedir a renovação do benefício nos mesmos moldes de 2020, com a manutenção de parcelas de R$600; e para que o Plenário analise um destaque que prevê a retirada do limite para pagamento do auxílio emergencial.

Economista e assessor técnico do Senado Federal, Bruno Moretti fez uma análise da PEC 186. A avaliação aponta a redução da parcela da população que poderá ser beneficiada pelo auxílio justamente no ano em que a pandemia de Covid-19 atinge seu pior momento no país; a priorização do governo pelo controle da dívida pública enquanto outros países têm optado por não cortar investimentos durante a crise, mesmo com piora dos resultados fiscais; o foco em desobrigar o Estado de investir em diversos setores; e o direcionamento de recursos para a amortização de dívida.

Oito pontos críticos da proposta indicados pelo economista:

  1. Só é assegurado pagamento de auxílio emergencial residual, que deverá ter valores e cobertura menores, excluindo cerca de 30 milhões de pessoas do acesso ao auxílio;
  2. A PEC não prevê que outras despesas para combate à pandemia e seus efeitos poderão ser executadas fora das regras fiscais (SUS, Pronampe, Programa de Manutenção do Emprego e da Renda, entre outros);
  3. Previsão de gatilhos para conter gastos de entes subnacionais quando despesas correntes atingirem 95% das receitas correntes. Os gatilhos também poderão ser ativados se a despesa corrente superar 85% da receita corrente, o que deverá abranger diversos estados;
  4. Introdução de mais uma regra fiscal, estabelecendo limite da dívida. Adotado certo patamar (previsto em lei), governo tomaria diversas providências de contenção de gastos e privatizações. As regras fiscais modernas, adotadas em diversos países, preveem aumento de dívida e piora dos resultados fiscais em momentos de crise, evitando corte de investimentos que agravariam a crise;
  5. Antecipação dos gatilhos do Teto de Gastos da União para a LOA [Lei Orçamentária Anual], quando 95% das despesas sujeitas ao teto forem obrigatórias. É uma espécie de “teto dentro do teto” que autorizaria medidas de austeridade já na LOA, mesmo que o teto esteja sendo cumprido. Assim, não poderia, por exemplo, reajustar salários de profissionais de saúde e educação, sequer para repor inflação. Também não poderia criar despesa obrigatória, por exemplo, para financiar leitos de UTI-COVID. Por fim, impediria valorização real do salário mínimo;
  6. Prevê desvinculação de receitas de fundos públicos. Cria exceção, mantendo a vinculação a alguns fundos como FNDCT e fundos da área de segurança pública, no entanto, mantém a desvinculação para fundos como Fundo Nacional de Cultura, Fundo Social (50% dos recursos do Fundo são destinados à educação, considerando Fundeb, mas também outras despesas), Fundo Nacional do Meio Ambiente e fundos de Direitos Humanos. Diante das pressões pela redução da despesa pelo teto de gastos, o fim das vinculações tende a afetar diversos setores e as receitas antes vinculadas serão destinadas ao resultado primário e à amortização da dívida;
  7. Reconhecido o estado de calamidade, autoriza utilização dos superávits financeiros para combater a pandemia, mas também para amortização de dívida (o que implicará desvinculação do estoque de recursos de diversos fundos, canalizando-o para o pagamento de dívida). Além disso, se houver reconhecimento da calamidade, vedações para a União, como proibição de reajustes de servidores, valem para o exercício da calamidade e mais dois exercícios;
  8. O plano de redução de benefícios tributários pode afetar cadeias produtivas relevantes, com impacto negativo sobre o PIB e o emprego. Por exemplo, a indústria química e de tecnologia de informação e comunicação.

O Congresso contra a saúde?

Convidada pelo OAPS para comentar a tramitação da PEC 186 no Congresso Nacional, diante dos interesses da saúde e do SUS, Ana Costa lembra que a iniciativa agrega duas outras PECs – a 187 e 188 – que, por sua vez, promovem duas drásticas reformas na Constituição de 1988: “A PEC 188, que ficou conhecida como do ‘pacto federativo’, inviabiliza as políticas sociais no país, acabando com a vinculação de recursos financeiros, eliminando os pisos mínimos constitucionais para a Saúde e a Educação. O texto não vacilou ao apresentar sem pudor como alternativa o que chamaram de vinculação acoplada, o que, na prática, promove e estimula uma perversa disputa por recursos entre os dois setores”.

A diretora do Cebes pondera que, apesar da retirada da desvinculação dos orçamentos da saúde e da educação, a proposta ainda constitui um “pacote maldoso”: “Mediante a forte pressão política que colocou sob risco a sua aprovação prioritária para o projeto político do governo, fundamentado na política econômica de Paulo Guedes, o relator senador Márcio Bittar (MDB-AC) abriu mão do corte de 25% dos salários do funcionalismo e do fim da vinculação, ou seja, os repasses obrigatórios para a saúde e educação. Por outro lado, manteve a suspensão do reajuste dos servidores públicos e a revisão dos benefícios fiscais. Apesar do recuo e ajuste do texto originalmente proposto, ainda assim o texto constitui um pacote maldoso”.

Sobre as articulações no Congresso, Ana Costa alerta: “O que acho importante nesse contexto político é que o Centrão comanda o processo e, o caminho para Paulo Guedes, apesar da força política de seus patrões da Faria Lima, não está tão fácil. O Centrão se criou e sobrevive nesse movimento de levar vantagem e não negocia barato. Muita água correrá ainda!“.

ObservaCovid

O ObservaCovid – projeto Análise de Modelos e Estratégias de Vigilância em Saúde da Pandemia da Covid-19 (2020-2022) – tem analisado modelos, estratégias e ações de vigilância em saúde em diferentes níveis de atenção por meio de sete subprojetos e com uma ampla rede de pesquisadores e pesquisadoras. Desde agosto de 2020, os boletins da iniciativa divulgam dados sobre o desenvolvimento do projeto de pesquisa e seus resultados. Clique aqui e cadastre-se para receber as publicações por e-mail.

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Carla Domingues, epidemiologista com uma longa carreira no Ministério da Saúde, fala sobre a vacinação contra a Covid-19 e os índices de cobertura vacinal no Brasil. Ela foi coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI), responsável pela organização da política nacional de vacinação da população brasileira, de 2011 a 2019. Clique aqui e confira.