Pelo direito ao futuro da população em situação de rua

Entre avanços e retrocessos: Cebes Debate analisa o impacto do neoliberalismo e a necessidade de políticas públicas mais eficazes neste Dia Nacional da Luta e do Luto da População em Situação de Rua

O processo histórico brasileiro, marcado por profundas desigualdades sociais e pela concentração de riquezas, é uma marca profunda que contribuiu e contribui diretamente para o aumento da população em situação de rua. Estimativa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), de 2022, indicam que a população em situação de rua já superou 281 mil. A quantidade de pessoas empurradas para as ruas é um reflexo direto do capitalismo, especialmente em sua versão neoliberal, que segue exacerbando desigualdades ao priorizar o lucro e a acumulação de riqueza em detrimento dos direitos sociais básicos. A falta de moradia reflete a ausência de políticas públicas eficazes e o desmonte do Estado de bem-estar social.

Para aprofundar esta discussão, o Cebes (Centro Brasileiro de Estudo de Saúde) recebeu, nesta segunda-feira, 19/8, ativistas e pesquisadores no programa Cebes Debates. A data marca o Dia Nacional da Luta e do Luto da População em Situação de Rua, quando há 20 anos agentes públicos assassinaram sete pessoas em situação de rua em São Paulo, episódio trágico de nossa história conhecido como Massacre da Sé.

O debate contou com a participação de Vanilson Torres, coordenador do Movimento Nacional da População em situação de Rua – MNPR (RN e Região Nordeste) e conselheiro nacional de Saúde (CNS), e Tânia Ramos, secretária-executiva da Pastoral Nacional do Povo da Rua e integrante do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (CIAMP-Rua). A vice-presidente do Cebes, Lenaura Lobato, e a secretária-executiva Giovanna Cinacchi, pesquisadora e militante junto à População em Situação de Rua, mediaram o debate.

Em 2023, o governo federal lançou o plano “Plano Ruas Visíveis – Pelo direito ao futuro da população em situação de rua” com investimento de quase R$ 1 bilhão. A ideia do plano é a efetivação da Política Nacional para a População em Situação de Rua, no entanto, os desafios ainda se mostram muito grandes. Para Vanilson é importante que alguns questionamentos sejam feitos nestes momento, já que nem todas as propostas apresentadas por entidades representativas da população de rua foram atendidas e ainda é nítido o quanto direitos fundamentais continuam sendo negligenciados pela ausência de políticas públicas estruturantes. “O Ruas Visíveis está muito aquém das nossas necessidades, essa é a grande verdade. A gente não visualiza avanços concretos, pois existem projetos sendo criados que não contemplam todos os estados. Nossa avaliação, enquanto movimento, é que a forma como esse plano está sendo conduzido não contempla as nossas necessidades”, apontou Vanilson.

Vanilson, formado em “Rualogia” — as vivências e convivências, experiências vividas nas ruas e conhecimento de mundo –, lembrou das diversas violações de direitos que ocorrem diariamente na vida da população em situação de rua, como o impedimento de entrar com carrinho e animal de estimação em abrigos. Para o ativista, falta diálogo entre as políticas públicas e quem vive a realidade das ruas. A destinação dos recursos, já escassos, para as chamadas “comunidades terapêuticas” agrava as violações de direitos. “É difícil para nós, nesse viés de luta por direitos, ver nossos corpos e mentes sendo aprisionados dentro desses locais que já têm subsídios fortíssimos. São políticas feitas dentro do gabinete, de cima para baixo, porque quando não conseguem nos matar, tentam nos aprisionar. Mas a gente segue na luta!”.

O capitalismo é um modelo econômico que não só agrava a pobreza como também desumaniza aqueles que não se encaixam na lógica do mercado, tratando-os como descartáveis. Ao longo da história, o Brasil vem reproduzindo um sistema que, ao invés de combater as desigualdades, as aprofunda, relegando uma parcela crescente da população à situação de rua. Essa dinâmica revela a face mais brutal do capitalismo, que transforma a vida em mercadoria e desconsidera o valor intrínseco do ser humano, perpetuando ciclos de exclusão e violência.

Tânia Ramos destacou que não é um momento de comemoração, mas sim de refletir e lutar. “Precisamos lembrar que o trabalho com a população de rua não é apenas com comida e cobertor, pois ela precisa de direitos, ela precisa que se escute o clamor que ela tem”. Ela lembrou a trajetória da Pastoral Nacional do Povo na Rua na cidade do Rio de Janeiro e de outros movimentos ajudaram na criação do Decreto 7.053 2009, que Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento. “De lá para cá a gente vem ajudando na luta junto com a população em situação de rua e com os catadores de materiais recicláveis. Para nós foi muito estranho quando veio a assinatura do Ruas Visíveis, pois foi de um dia para o outro e a gente não sabia”.

A secretária da pastoral lembrou que desde 2009 o Rio de Janeiro não conseguiu instituir o CIAMP (Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política da População em Situação de Rua). “A gente tem um vácuo muito grande, porque não é de interesse do poder público que seja instituído. Eles disseram que iria acontecer, devido ao retorno financeiro que poderia vir para o município, então a prefeitura disse que iria fazer o Ruas Visíveis e aceitariam o CIAMP, mas isso aconteceu há três meses e tínhamos o prazo de um mês para que o município pudesse efetuar. Aí vieram alterações e a parada para as eleições e nós voltamos à estaca zero”, explicou.

Para Tânia, estes entraves burocráticos acabam desarticulando os movimentos e impedindo que as políticas públicas realmente aconteçam. “A gente acredita que a luta da população de rua se dá a cada dia, e estamos aqui dizendo: é necessário que se olhe para a população de rua com políticas de emprego e renda e moradia. Isso é um caminho que se deve percorrer. É fundamental que a pessoa que está na rua esteja junto, assim como os movimentos sociais”.

Para pesquisadora e militante Giovanna Cinacchi, houve avanço com relação ao volume de novos documentos que tratam da causa, porém, ainda existe muito entrave para que estes planos se tornem realidade. “Temos uma dificuldade no plano prático, em conseguir a adesão dos municípios. Nós temos um decreto do executivo, mas não temos suporte do Congresso Nacional que consiga transformar isso em lei. Sabemos que a população em situação de rua só se torna visível quando ela incomoda alguém, por exemplo, quando, quando ocupa algum prédio”. Ela lembrou que a ausência de efetividade das políticas públicas também tem relação com o fato de que “é uma população que não dá voto”.

Com relação ao orçamento do Plano Ruas Visíveis, Giovanna avalia que é preciso entender qual a distribuição destes recursos. “Vanilson traz muito bem estas questões: quanto dinheiro está aplicado na habitação? Quanto dinheiro está aplicado na questão da violência institucional, que não era nem para acontecer…?”, questiona. O Ruas Visíveis é um plano que necessita da adesão de municípios para ser implementado, logo necessita que haja interesse político.

Preconceito estrutural, cultural e social – Vanilson avalia que os impedimentos e violências vividos pela população em situação de rua são em sua grande maioria frutos de preconceito e discriminações, assim como sofrem os povos originários e os quilombolas. “Quando a mídia sensacionalista nos trata como uma população perigosa, drogada, ou vagabunda, acontecem políticas reversas para nos aprisionar”. Dessa maneira, o acesso dessa população aos serviços básicos se torna difícil ou até inacessível.

“A gente vive violações todos os dias, inclusive com relação ao que são garantias constitucionais, como a moradia. Temos aí tanta gente sem casa e tanta casa sem gente”, criticou o ativista, que encerrou sua participação declamando um poema.

Políticas Públicas enquanto Direitos!
I
Estar em situação de rua
Não é opção como vc diz
é por ausência de políticas
que assolam nosso país
II
Queremos respeito sim
acesso a saúde, habitação
trabalho, emprego e renda
sou cidadã, sou cidadão
III
Nos tratam enquanto drogaditas
e dizem que é pátria acolhedora
saibam que quem está nas ruas
somos nós classe trabalhadora
IV
Chega de violência, aporofobia
descaso, violação e opressão
não somos seres descartáveis
Somos filhas e filhos da nação
V
As crises financeira e sanitária
impõe mais desigualdades sociais
povo com fome,dor, desemprego
a periferia pras ruas mais e mais
VI
Ter saúde “morando” na rua?
estudar sem ter pra onde voltar?
sou ser humano mas você não vê
só verá se tiver no meu lugar
VII
está nas ruas não é nada fácil
por isso só o que nos resta é lutar
nos organizando enquanto MNPR
pros avanços e melhorias chegar.

Autor: Vanilson Torres
Coordenação Nacional do MNPR
Conselheiro Nacional de Saúde pelo MNPR

O programa está disponível no canal do Cebes no Youtube.


Reportagem: Cebes/Fernanda Cunha