Pequenas vítimas de governos corruptos e armados
Correio Braziliense – 28/08/2012
Estudo de universidade americana vincula o mau uso de verbas públicas e a militarização a altas taxas de mortalidade infantil em 148 países. Os piores cenários estão na África. O Brasil aparece em uma posição mediana no ranking elaborado
Aquela história de que a corrupção, literalmente, mata está longe de ser força de expressão ou exagero dos militantes sociais mais exaltados. Uma pesquisa desenvolvida na Universidade de Cincinnati, nos Estados Unidos, analisou dados de 148 países durante o período de 12 anos e provou, em números, que as nações que apresentam uma forte militarização pretoriana e governos corruptos sofrem com elevadas taxas de mortalidade de crianças abaixo de 5 anos. No ranking, os cinco piores índices foram todos de países africanos: Serra Leoa, Nigéria, Congo-Brazzaville, República Democrática do Congo e Chade. Já as menores taxas de mortalidade de crianças relacionadas à forma de governança ficaram com Cingapura, conhecida por ser a nação menos corrupta da Ásia, seguida da Coreia do Sul, da Finlândia, da Ilha Chipre e da Áustria.
O Brasil foi um dos analisados e ficou com uma pontuação mediana referente à administração dos recursos públicos e à qualidade de vida da população. Apesar de ter alcançado os índices de redução de mortalidade infantil (crianças com até 1 ano) definidos pelas metas dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU, a corrupção na saúde desviou R$ 2,8 bilhões nos últimos nove anos, de acordo com a Controladoria-Geral da União (CGU). O valor é referente aos 3.522 processos de Tomadas de Contas Especiais (TCEs) instaurados pelo Ministério da Saúde.
As TCEs são processos de ressarcimento aos cofres públicos de recursos aplicados de forma irregular ou não justificados. Elas representam a última instância de penalização, após esgotadas todas as medidas administrativas para a reparação do dano ao erário provocado por prefeituras, entidades sem fins lucrativos, autarquias públicas, entre outras instituições. E isso tudo representa somente os desvios que chegaram ao conhecimento público.
Embora seja senso comum que a corrupção e a militarização exercem um considerável impacto na sociedade civil, essa é a primeira vez que um estudo busca a relação entre os dois fatores e o número de morte entre crianças. “Eu foquei nas taxas de mortalidade de menores de 5 anos porque é uma boa indicação de como as nações se importam com o seu povo”, explica o sociólogo Steve Carlton-Ford, autor do artigo. Segundo avaliação realizada pela ONU em 1980, a mortalidade na infância relaciona-se direta e obviamente com o bem-estar humano, mostrando-se como indicador relativamente sensível do nível e da distribuição das condições de vida de uma população.
Por sua vez, o indicador principal para medir os níveis de bem-estar infantil é a taxa de mortalidade dos menores 5 anos.
Isso se deve à uma variedade de fatores, entre eles a saúde nutricional das mães; a disponibilidade, o uso e a qualidade dos serviços de saúde maternoinfantil; o rendimento e a disponibilidade de alimentos na família; o fornecimento de água potável e o saneamento básico; bem como toda a segurança do ambiente da criança.
Para traçar a relação entre os três fatores, Carlton-Ford explica que controlou a evolução do Produto Interno Bruto (PIB) das 148 nações e cruzou esses números a um outro indicador que mostra o quão democrático é cada governo. Além disso, o sociólogo analisou se o país estava envolvido em algum conflito armado durante o período estudado. “Não é possível ter 100% de certeza quanto à relação, mas os efeitos da corrupção e da militarização são muito fortes em outros importantes fatores conhecidos por influenciar na mortalidade de menores de 5 anos”, defende Carlton-Ford.
A lógica, portanto, é que todo o dinheiro desviado ou mal empregado deixa de ser aplicado em alguma importante política pública, como programas de erradicação de doenças endêmicas, de saneamento básico, de atenção primária à saúde e preventivos contra alcoolismo. No Brasil, as duas pastas com mais processos de TCEs encaminhados ao Tribunal de Contas da União são relativas ao Ministério da Saúde, seguido do Ministério da Educação. O dado mostra que os dois órgãos são potencialmente os mais suscetíveis à corrupção.
De acordo com Guilherme Haehling, diretor executivo da ONG Amarribo, que combate à corrupção no Brasil, sempre que a organização realiza fiscalizações nos 221 municípios brasileiros onde atua, é constatado um alto índice de corrupção na saúde, com desvio de recursos em todos os setores. “Toda a vez que a gente pega algum desvio, ele está na saúde ou na merenda escolar. Isso é bem recorrente porque envolve compras diárias, de rotina, são setores em que as prefeituras têm de investir muito dinheiro”, avalia. Segundo ele, os governos não têm controle de seu estoque, o que facilita, por exemplo, compras e transações irregulares de medicamentos e outros recursos materiais. Haehling reforça que a corrupção na educação e na saúde atinge, principalmente, a população de baixa renda, que não tem dinheiro para pagar um plano de saúde particular ou um ensino privado.
Gastos por soldado
De acordo com Carlton-Ford, os dados sobre corrupção nos países foram fornecidos pelo Banco Mundial, já as taxas de mortalidade de crianças com até 5 anos vieram do Unicef. Para avaliar o grau de pretorianismo em cada sociedade, ele calculou a quantidade de dinheiro gasto por soldado em razão do PIB per capita, que funciona como média para indicar se a distribuição das riquezas produzidas no país entre seus cidadão se dá de forma desigual ou justa. “Portanto, o valor “um” significa que o governo gastou uma média por soldado igual ao seu PIB per capita”, explica o pesquisador. No caso do Brasil, as despesas militares variaram em torno de 1,6% de seu PIB, o que significa uma pontuação média. O autor complementa que menos de 1% da população ativa brasileira serve ao Exército.
Com relação à mortalidade na infância, o Ministério da Saúde afirma que, nos últimos 10 anos, o número tem caído sensivelmente. Em 1990, a cada mil nascidos vivos, 53% morriam antes de completar 5 anos. Em 2010, a taxa caiu para 18,9%. Entre as principais causa de óbito nessa faixa etária estão os transtornos respiratórios e cardiovasculares, as complicações na gravidez e no trabalho de parto, além de infecções específicas do período perinatal.
“O Brasil tem sido exemplo de uma experiência vistosa na redução de mortalidade na infância. Nossa realidade hoje é muito diferente da de 10 anos atrás. E uma das causas é a mudança de modelo à assistência à saúde, com a opção de partir para a estratégia de saúde na família”, defende Cristina Albuquerque, coordenadora do Programa de Sobrevivência e Desenvolvimento Infantil da Unicef no Brasil. Apesar dos avanços, Albuquerque ressalta que o país ainda possui muitos desafios, principalmente com os indígenas, cuja taxa de mortalidade infantil ainda está no patamar de 41,9% a cada mil nascidos vivos.
A coordenadora enfatiza ainda que, de uma maneira geral, qualquer país em que a corrupção impera terá dificuldades em garantir os direitos plenos da população. “E isso reflete diretamente na criança. O processo democrático no Brasil evoluiu e continua, em um caminho sem volta. Temos os tribunais de contas que desvelam a corrupção e trabalham pelo ressarcimento aos cofres públicos. Temos arcabouço jurídico e constitucional que permite a evolução dos mecanismos de transparência”, avalia.
Sobre os R$ 2,8 bilhões que a corrupção no Brasil se empenhou em desviar da saúde nos últimos nove anos, o Ministério da Saúde informou que há um reforço de medidas adotadas para aprimorar a gestão e otimizar o uso de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS). “Medidas como compra centralizada de produtos estratégicos, negociação direta do ministério com fornecedores e adoção de bancos de preços internacionais geraram economia de R$ 1,7 bilhão nos gastos com a compra de medicamentos e insumos em 2011 em comparação a 2010”, esclarece a pasta, em nota. Ainda de acordo com o ministério, outra medida tomada foi o reforço no controle sobre repasses federais. “Em junho de 2011, por meio de decreto presidencial, os municípios passaram a receber verbas por meio de contas específicas e a movimentar o dinheiro da saúde apenas por meios eletrônicos.”
Investimento dispensável
A guarda pretoriana tem origem no Império Romano e representava o grupo de legionários experientes encarregados da proteção do praetorium, parte central do acampamento de uma legião romana, onde ficavam instalados os oficiais. Com a tomada do poder por Otaviano, transformou-se na guarda pessoal do imperador. Atualmente, o termo refere-se a um gasto desnecessário que um país destina à militarização e, normalmente, está presente de forma mais forte em governos autocráticos.