Perdas e ganhos na consulta pública sobre as PDP
Por Reinaldo Guimarães*
O pilar conceitual básico da política de desenvolvimento produtivo no campo da saúde sediada no MS reza que a ampliação do acesso a produtos industriais no âmbito do SUS e o desenvolvimento industrial do setor de saúde são objetivos não somente conciliáveis, mas potencialmente sinérgicos.
A primeira demonstração concreta desse fato se deu em 2007 ao longo do processo de licenciamento compulsório do ARV Efavirenz. Ali, ao lado do país ter lançado mão de uma flexibilidade dos acordos TRIPS decorrente de uma posição inflexível em termos de redução de preços por parte do fabricante do medicamento (barreira à ampliação de acesso), a Fiocruz (Farmanguinhos) e o MS entenderam que o licenciamento abria uma janela para a capacitação nacional na produção do ARV (desenvolvimento industrial). Para isso, foi estruturado um consórcio de três empresas nacionais capaz de fornecer o princípio ativo para que Farmanguinhos pudesse formular o produto acabado.
O compromisso dos quatro entes envolvidos era o de fornecer ao SUS o medicamento, a tempo e a hora, por um preço inferior àquele que a empresa detentora da patente não havia aceitado na frustrada negociação com o MS. Durante cerca de um ano, enquanto se desenvolviam os processos de desenvolvimento e produção locais, o MS adquiriu, com a interveniência da OMS, o produto genérico indiano.
Deve ser ressaltado que o preço deste, em desfavor de uma economia imediata, era inferior ao preço estabelecido nas negociações entre o MS e Farmanguinhos. Essa assimetria decorria tanto das economias de escala adquiridas pelo fabricante indiano, quanto pela necessidade do pagamento de royalties por parte do SUS ao detentor da patente que havia sido objeto do licenciamento compulsório. Ao relatar esses fatos, quero recuperar três aspectos seminais da política para projetá-los na atualidade.
Em primeiro lugar, ressalto a decisão política do gestor federal de então, expresso na figura do ministro José Gomes Temporão que, com a adesão irrestrita do presidente Lula, entendeu a necessidade de levar a cabo essa iniciativa pioneira de sinergia entre a ampliação do acesso e capacitação tecnológica e produtiva das instituições pública e privadas envolvidas, mesmo que à custa de um diferimento temporal da economia financeira por parte do SUS.
Em segundo lugar, ressalto a relevância da política de assistência farmacêutica do SUS em sua modalidade de aquisição centralizada de medicamentos elencados para PDP’s.
ARV’s são, de modo geral, adquiridos direta e integralmente pelo MS e essa modalidade de aquisição é essencial para o sucesso das mesmas. O corolário desse fato é que a centralização da compra de medicamentos adquiridos de modo descentralizado foi e deve continuar a ser um requisito obrigatório das PDP’s. Uma das condições de sucesso do licenciamento compulsório com produção local foi a orientação dos caminhos da centralização da compra do medicamento, que devemos ao Departamento de Assistência Farmacêutica do MS.
Lateralmente, devo lembrar que seus dirigentes de então colaboravam com a construção da política de desenvolvimento produtivo e, em seu devido tempo, também estiveram na mesa de negociação da compra do genérico nacional, pelos preços estabelecidos na PDP. Faço essa referência para enfatizar esse papel central da assistência farmacêutica no MS na construção daquele pilar conceitual que mencionei no início. Eles é que foram a ligação entre a discussão do preço (acesso) e da produção local (desenvolvimento e capacitação industrial).
Em terceiro lugar, ressalto que o licenciamento compulsório do Efavirenz demonstrou a possibilidade de desenvolvimento e produção locais efetivos de uma molécula que até então não entrava nos projetos das empresas. Em outros termos, demonstrou a força da utilização da capacidade de compra do Estado brasileiro no estímulo ao desenvolvimento tecnológico e à produção industrial em saúde. E também sinalizou, na raiz da política das PDP ?s, que esses efetivos desenvolvimento e produção locais são essenciais para que essa política possa vicejar de modo saudável. Caso contrário, repetiremos experiências passadas (CEME, p. ex.) que, embora muito bem intencionadas, não se perenizaram.
Em 13 de agosto passado o ministro Arthur Chioro fez publicar a Consulta Pública n0 8, relativa à iniciativa de redefinir diretrizes e critérios atinentes aos produtos estratégicos para o SUS e às PDP’s. Minha leitura da minuta de portaria objeto da consulta é que ela é uma reação a uma esdrúxula acusação midiático-eleitoral que tratou de supostas “liberalidades” na construção das parcerias que atingiram seu ponto de máxima no caso envolvendo uma empresa privada (Labogen) e o Laboratório Farmacêutico da Marinha para a produção do Citrato de Sildenafila.
A portaria tem pontos positivos, mormente aqueles que recuperam procedimentos vigentes na origem das PDP’s, nomeadamente a ênfase no diálogo exclusivo do MS com os laboratórios oficiais e a necessidade do estabelecimento de um acordo entre esses laboratórios e os parceiros privados antes da implementação da parceria. Lembro que numa das últimas reuniões do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECIS), foram anunciadas PDP’s onde o status do parceiro privado era “a definir”.
Além disso, ainda no campo dos avanços normativos, registrem-se os dispositivos que procuram garantir o desenvolvimento e a produção locais dos produtos envolvidos nas PDP’s e a formalização de instâncias técnicas e deliberativas envolvidas na sua aprovação. Entretanto, no artigo 13, que trata da elaboração da proposta de projeto de PDP realizado por instituição pública, fica faltando uma orientação mais determinada aos laboratórios oficiais. Este tem sido um dos momentos cruciais na formação das parcerias.
Acredito que seria de ajuda aos mesmos a determinação de que no processo de seleção do parceiro privado, a escolha realizada pela instituição pública devesse recair sobre empresa privada detentora de unidade fabril com produção local regular já estabelecida.
Considero que o ponto mais negativo da portaria está no seu artigo 53, que trata dos critérios que devem presidir a aquisição dos produtos inscritos nas PDP’s pelo SUS. Nesse artigo, se anuncia a independência entre o disposto nos dois compromissos estabelecidos entre as partes no desenvolvimento do processo da PDP – (1) o termo de compromisso entre o parceiro público e o MS, e; (2) o contrato entre o parceiro público e parceiro privado – e a negociação para a aquisição dos produtos pelo SUS. Ora, se a portaria especifica o que deve conter o termo de compromisso entre o MS e o laboratório público, inclusive em termos de prazos e preços, bem como determina que esse termo seja aprovado em duas instâncias, uma técnica e outra política, como então pode ser aberta a possibilidade de fazer desse termo de compromisso letra morta no momento em que uma PDP, através do laboratório público, apresenta-se para fornecer seu produto ao SUS, momento que, aliás, é também o anúncio de seu bem sucedido resultado? Não faz qualquer sentido.
Como já mencionei anteriormente, na rememoração da PDP do Efavirenz, a centralização da compra de produto candidato à PDP é requisito essencial ao estabelecimento da mesma. No artigo 6o da portaria, esse pré-requisito é relativizado quando menciona a centralização da compra apenas como uma possibilidade, devendo ser negociada com a Comissão Intergestora Tripartite. São relevantes as obrigações do MS com a estrutura do SUS e a necessidade do cumprimento de seus compromissos de gestão democrática. Mas deve ficar claro que sem a centralização da compra, por mais estratégico que seja o produto não será possível estabelecer uma PDP com ele.
Em certos aspectos, a minuta de portaria é bastante minuciosa e, dentre esses, estão descritos, em seu artigo 24, os critérios de desempate para as propostas de projeto das PDP’s. A despeito do cuidado em elencar critérios, senti falta da menção ao desenvolvimento local e autóctone do núcleo tecnológico do produto da PDP como elemento discriminante entre propostas. Em outros termos: haverá parcerias nas quais uma tecnologia é comprada e absorvida; e haverá outras onde a tecnologia é desenvolvida localmente. Ambas as modalidades são aceitáveis, mas a segunda a meu ver deve ser estimulada.
Da mesma forma, me parece correto que o prazo para a internalização da tecnologia seja um critério para o desempate. Mas creio que estaria melhor se, além do prazo, fosse mencionada uma avaliação da qualidade da tecnologia, incluída aí a sua atualidade. Afinal de contas, não é segredo que tecnologias mais perto da obsolescência são oferecidas com maior generosidade por seus detentores, embora a médio e longo prazo a sua absorção possa tornar-se inócua e geradora de prejuízos.
Finalizo estas notas com um comentário de caráter geral. A minha observação inicial de que o espírito da minuta da portaria que está posta em consulta pública é o de reagir a uma armadilha midiática sobre uma não concretizada PDP se reforça ao perceber que em sua maior parte ela trata de “arrumar a casa”. Isto é, ela procura organizar o MS para melhor gerir os processos envolvidos nas PDP’s: “da porta para dentro”.
Entretanto, as PDP’s, bem como toda a política de desenvolvimento produtivo no campo da saúde, desde o seu início, tem sido uma obra que, embora liderada pelo MS (e também pelo BNDES no plano de sua inserção nas políticas industriais), conta com a participação de outros organismos, governamentais ou não. Daí que talvez haja a necessidade de arrumar também a casa da política “da porta para fora”.
Em outros termos, ajustar a participação tanto da comunidade de saúde (SUS, comunidade científica e tecnológica), quanto da comunidade empresarial para suportar a política. Creio que durante o olho do furacão midiático, essas comunidades contribuíram para cerrar fileiras em defesa da política e, caso haja a abertura de portas institucionais para que se elas se expressem, não hesitarão em continuar a fazê-lo.
Por um lado, vejo que uma dinamização do Fórum de Articulação do GECIS enquanto fórum de debate da política pode contribuir para isso. E, num plano mais permanente, acredito que a construção de mecanismos de acompanhamento que contem com a participação ativa dessas comunidades podem ser muito importantes, inclusive em ações profiláticas contra outros arreganhos midiáticos.
*Reinaldo Guimarães é médico, vice-presidente da ABIFINA e membro da Comissão de Ciência e Tecnologia da Abrasco
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