Pesquisadoras falam sobre aprimoramento dos critérios de prioridade para a vacinação contra a Covid-19

Pesquisadoras falam sobre a Nota Técnica Aprimoramento dos Critérios de Prioridade para a Vacinação contra a Covid-19. Entrevista de Danielle Monteiro com Isabela Santos e Maria Juliana Corrêa publicada originalmente no portal da ENSP/Fiocruz.

Instituições de Saúde Coletiva publicaram, nesta segunda-feira (2/08), uma nota técnica defendendo o aprimoramento dos critérios de prioridade para a vacinação contra a Covid-19. No documento, eles destacam que a cobertura vacinal está baixa e em velocidade lenta para a gravidade da situação. Diante da escassez de vacinas, é fundamental, segundo os autores, reduzir a carga da doença e a velocidade da geração de novas variantes do vírus. Por esse motivo, segundo eles, torna-se necessária a avaliação do impacto dos critérios de vacinação adotados para os devidos aprimoramentos.

Sendo assim, eles defendem a implantação de um plano capaz de vacinar de imediato as pessoas mais expostas ao risco de se contaminarem. “Para mitigar a transmissão e disseminação coletiva do SARS-CoV-2, recomenda-se adotar imediatamente o critério de EXPOSIÇÃO, que atinge coletivos das pessoas mais expostas, isto é, as populações vulnerabilizadas e os trabalhadores em atividade presencial. Para tanto, a vacinação deve ser prioritária considerando o critério de exposição”, alertam. 

As pesquisadoras da Escola, que participaram da elaboração da nota técnica, Isabela Santos e Maria Juliana Corrêa, contaram ao Informe ENSP como foi construído o documento e falaram sobre a importância da revisão dos critérios de prioridade da vacinação. “A Rede de Informações e Comunicação sobre exposição ao SARS-CoV-2 em trabalhadores e trabalhadoras no Brasil (Rede Trabalhadores & Covid-19) se estruturou a partir da concepção da exposição em trabalhadores defendida na nota, como prioridade de ação. Inclusive, adotamos classificação de risco por grupo ocupacional da Osha (Agência do Departamento do Trabalho dos Estados Unido), desde o lançamento do projeto em maio de 2020.  Então, é com satisfação que a Rede Trabalhadores & Covid-19 subscreve essa nota sobre critérios de vacinação”, destaca Juliana, que é  uma das coordenadoras da Rede.

Confira, a seguir, a entrevista:

Como foi construído o documento?

Juliana: A necessidade de construção da nota sobre revisão dos critérios de vacinação partiu de duas perspectivas: em primeiro lugar, da oportunidade de compartilhar o espaço participativo do Cebes, local de debate e análise crítica sobre Saúde Coletiva e pandemia, realizada por três pesquisadores: dra Maria Juliana Moura Corrêa (epidemiologista-pesquisadora colaboradora ENSP/Fiocruz), dra Isabela Soares Santos (pesquisadora em Saúde Pública ENSP/Fiocruz) e dr. Heleno Rodrigues Corrêa Filho (epidemiologista-pesquisador aposentado da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e colaborador UnB), que vivenciam essa experiência crítica com base no conhecimento científico. A segunda perspectiva se deu a partir das inquietações sobre os critérios definidos e sua insuficiência para impactar nos indicadores de Saúde frente ao desafio de controle da transmissibilidade do SARS-COV-2, com base na análise dos conceitos de medidas da ciência da epidemiologia, assim como nos dados atuais sobre mortalidade por Covid-19 em grupos ocupacionais e as disparidades sociais no Brasil.

Para a construção da nota, inicialmente foi estabelecido consenso conceitual e ação estratégica de impacto, formato do documento e, por último, o processo de debate e escuta de lideranças, pesquisadores e entidades representativas da Saúde Coletiva no Brasil, além de coleta de apoios.

Isabela: Pessoalmente, comecei a conceber a ideia de fazer algo sobre o tema muito antes desse documento em si. Teve uma chave influenciadora que foi disparada, ainda em janeiro deste ano, quando toda a mídia brasileira e até parte da europeia passavam a ideia de que os jovens “levavam Covid-19” para seus familiares, que eram os culpados dos adoecimentos e mortes de seus avós etc. Isso aconteceu com a segunda onda da pandemia na Europa e com a variante P.1 no Brasil. 

No Brasil, a quase totalidade dos jovens está na rua trabalhando para sobreviver, seja por si, seja para suas famílias. Eles também são vítimas e estão em uma fase psicológica muito difícil, de ainda frágil estrutura psíquica, para enfrentar as condições tão adversas da sociedade brasileira, que os tornam vulneráveis. Para completar, os jovens e adolescentes compõem as faixas etárias mais populosas da nossa população. Ou seja, responsabilizá-los foi cruel e também expôs a incapacidade de a sociedade brasileira ver o outro como parte de si, da própria sociedade, o que é fundamental do ponto de vista da solidariedade e também para podermos enfrentar nossos problemas.

Os jovens vão continuar trabalhando com ou sem pandemia, pois são os mais fortes fisicamente das famílias brasileiras, o que faz muita diferença em um país em que menos de 10% da população é rica ou de classe média. Os jovens e os adultos mais novos compõem a grande parte da massa de trabalhadores do Brasil: são as pessoas que estão na linha de frente da manutenção das cidades, que entregam as mercadorias em moto, em bicicleta e a pé, trabalham no comércio, nos caixas de supermercados e comércio em geral, postos de gasolina, fazem a limpeza, segurança, telemarketing (em salas fechadas), além daqueles que trabalham nas obras de construção etc. Isso os que, de alguma forma, se encontram em alguma ocupação. Temos, ainda, os milhões de jovens que fazem bico a fim de sobreviver e precisam continuar fazendo, pois o enfrentamento da pandemia no Brasil não lhes apoiou para sobreviverem em casa ou trabalhando com transporte seguro e com condições adequadas de trabalho, do ponto de vista da segurança da contaminação. Os estudos que levantamos mostram que essas pessoas estão sendo as mais acometidas pela contaminação do novo coronavírus.

Eu passei o verão todo com uma sensação muito ruim, me sentindo só, mesmo porque não via quase ninguém defendendo os jovens. Eu ficava me imaginando jovem na atual conjuntura de alto risco de contaminação, associado ao desemprego e à crise política. Comecei a levar essa discussão nos grupos dos quais participo, do trabalho da Fiocruz, no de Saúde Pública do Cebes e no de urbanistas BRcidades. O incômodo era geral. Ao mesmo tempo, estávamos todos muito abalados com o contraste da força da nova variante do coronavírus e a mesma força do Governo Federal para que o enfrentamento ficasse descoordenado. Conhecendo o SUS, sabemos que esse enfrentamento poderia ter sido muito bem feito – e ainda pode. Bom, esse debate foi amadurecendo nos grupos. Foram os sanitaristas do campo da Saúde do Trabalhador e os urbanistas, principalmente, os que mais se moveram no sentido de transformar o incômodo em um debate estruturado, com levantamento dos estudos, que nos possibilitou a elaboração de uma versão inicial do documento entre maio e junho. Ao longo de junho, fizemos amplo trabalho de escuta de especialistas dos mais diferentes campos de conhecimento para, com muito diálogo, podermos aprimorar o documento. Ao longo de julho, iniciamos o debate com entidades da sociedade civil e seguimos o processo de aprimoramento do documento, até se tornar essa nota técnica, com recomendações claras e colocadas em um encadeamento de argumentação irrefutável, por ser baseada na realidade da sociedade brasileira. É uma recomendação de política pública de Saúde concreta e factível, feita a partir da perspectiva de quem vive na sociedade, na cidade, no bairro, no que chamamos de território.

Por que os critérios de prioridade para a vacinação precisam ser aprimorados?

Isabela: No Brasil, a velocidade da vacinação está muito mais lenta do que poderia. Atualmente, apenas 1 em cada 4 brasileiros está com esquema completo de vacina (24% da população). É uma cobertura muito baixa. A estratégia de vacinação começou corretamente, pelos mais idosos e com comorbidade, o que foi muito acertado porque a gravidade da Covid no nível individual dessas pessoas é inquestionável. Mas, uma vez vacinada essa parte da população, é preciso reabrir o debate de quais estratégias darão os melhores resultados, principalmente considerando o que falei anteriormente sobre as populações mais jovens e mais expostas serem as faixas etárias mais populosas no Brasil. 

A situação em que estamos hoje é a seguinte: por um lado, as novas variantes do vírus são geradas proporcionalmente à velocidade da circulação do vírus e, por outro lado, a falta de políticas públicas de enfrentamento à pandemia no Brasil não permite que as pessoas possam trabalhar presencialmente protegidas de se contaminarem. Então, é preciso, urgentemente, vacinar todas as pessoas que não têm alternativa de fazerem o isolamento físico, que são as mais propensas a se contaminarem, por uma questão humanitária em relação a essas pessoas e porque são elas que vão manter a cadeia de transmissão ao continuarem trabalhando presencialmente. Esse movimento forma um ciclo vicioso de circulação do vírus, que já sabemos que acarretará em outras variantes em pouco tempo. Então, além do uso das estratégias que dão resultado, como uso de máscaras de qualidade e isolamento físico, urge também avançar na estratégia da vacina: aumentar a velocidade da vacinação e também garantir que essas pessoas que mencionamos acima sejam vacinadas o quanto antes. 

Mas, esse é um debate doído, pois a estrutura de nossa sociedade resulta, praticamente, das mesmas subdivisões da época colonial, se observarmos tanto a variável renda, como raça. Os esforços que a elite brasileira faz para se manter elite não têm sido em vão. Há séculos, tem dado certo, sendo visível também na pandemia como essa desigualdade se reproduz. Até hoje, é comum entrarmos em um ambiente em que o gerente tem máscara PFF2, o atendente com a cirúrgica ou duas de pano e o entregador do estabelecimento com uma de pano. E se você falar sobre isso nesse ambiente, vai causar um constrangimento geral, como se a máscara fosse a cor da roupa íntima, e não uma estratégia que poderia ser muito mais efetiva, se adotada de forma correta, também com responsabilidade coletiva, e não exclusivamente individual. Não dá para continuarmos achando que é cada um por si, não é? Já temos prova suficiente que não dá certo. Nunca deu e nunca dará.

Juliana: Os critérios de prioridade para a vacinação precisam ser aprimorados devido à necessidade de controle mais imediato e rigoroso para diminuir a transmissão do coronavírus na população. Portanto, é necessária ação direcionada aos locais onde ocorre maior número de pessoas infectadas e maior exposição em relação aos de menor risco, especialmente porque a quantidade disponível de vacinas não tem sido suficiente para uma ágil vacinação em massa da população. Quanto mais tempo levarmos para controlar essas fontes de exposição, maior será a cadeia de disseminação do vírus e, consequentemente, das novas variantes, com sucessivas ondas da Covid-19.

Representa sair da lógica individual para o critério populacional e dos territórios com maior prevalência, para que se tenha uma ação de impacto por área geográfica, com potencial de constituir o que vem sendo chamado, pelo grupo do Instituto Polis, em SP, de “bolhas de imunidade”, que definimos na nota como “coletivos de imunidade”.

Revisar os critérios é fundamental, porque há evidências científicas que demonstram que a população com maior exposição ao SARS-CoV-2 são os trabalhadores, que permaneceram trabalhando e se expondo continuamente ao vírus.

Qual a importância de os critérios de prioridade para a vacinação considerarem as desigualdades sociais e territoriais, o transporte coletivo como vetor de transmissão, bem como as características da evolução da pandemia em países como o Brasil?

Isabela: A revisão dos critérios é um movimento processual que vem sendo realizado em diversos países, com base no conhecimento que se vai acumulando. Até porque, no início da pandemia, pouco se conhecia sobre o vírus, a doença e sua evolução. Países como Chile, Polônia, Islândia, Camboja, Fiji, Malta e Iêmen incluíram grupos de trabalhadores entre os prioritários para a vacinação ainda no primeiro semestre de 2021.

No Brasil, alguns estados e municípios estão atualizando seus planos de imunização, com ampliação da prioridade para trabalhadores, como garis e os que manuseiam resíduos de procedimentos em saúde. No Maranhão, por exemplo, foram incluídos os trabalhadores do porto e, em Belo Horizonte, os trabalhadores do transporte coletivo e da limpeza urbana.

Quando tivemos uma quantidade de vacinas da Janssen que estava com validade prestes a vencer, rapidamente o SUS conseguiu usar sua característica de aplicação em dose única para a recomendação de aplicá-la em pessoas que estão em situação de rua, pois os decisores sabem que seria mais difícil a identificação posterior dessas pessoas para a segunda dose. O SUS tem muitos problemas, mas também tem muitas qualidades. Uma delas é um corpo técnico com muito conhecimento acumulado. Esse é o SUS que funciona, que queremos e que, aqui, exigimos que aconteça no enfrentamento da pandemia. Por isso, fizemos esse documento com as recomendações de melhoria das regras de prioridade da vacinação. Sabemos que é difícil para os gestores e trabalhadores, mas sabemos que é possível, e é esse Brasil que queremos.

Juliana: O controle de todas as fontes de exposição com adoção de medidas de vigilância, como barreiras sanitárias, distanciamento físico e adequada higienização, são essenciais para reduzir o contágio e a cadeia de transmissão, por exemplo, nos transportes coletivos usados pela maioria dos trabalhadores e trabalhadoras para seu deslocamento.  Para serem efetivas, essas medidas de vigilância devem vir acompanhadas de uma política de mobilidade urbana com adequadas condições de uso e capacidade de utilização dos equipamentos públicos em cumprimento às normas de segurança em Saúde.

O Brasil tem dimensões continentais e enormes desigualdades entre as regiões e suas populações, que conformam uma geografia da pandemia de sítios e grupos mais vulnerabilizados, seja pelas ausências de políticas sociais capazes de oferecer proteção universal, seja pelos efeitos do acúmulo das crises sanitária, política e social pelas quais atravessa o país. As análises locos regional devem considerar as desigualdades sociais e territoriais, para orientar os planos de imunização contra a Covid-19, baseadas em uma ação de impacto da vigilância epidemiológica para o controle e bloqueio da cadeia de transmissão do SARS-CoV-2 nas populações.