“Podemos descartar uma cura eficiente do HIV”
Correio Braziliense – 01/08/2012
O infectologista que isolou o vírus da Aids recebe com cautela o recente anúncio de que dois homens se livraram da doença após transplante de medula óssea. Para ele, a melhor estratégia de enfrentamento é investir em uma vacina preventiva
A euforia da comunidade científica internacional com o principal estudo divulgado durante a 19ª Conferência Internacional sobre Aids está longe de ser unânime. Robert Charles Gallo — o infectologista norte-americano que descobriu e isolou o vírus HIV em 1983 — mantém cautela em relação à cura de dois pacientes soropositivos em Boston após serem submetidos a um transplante de medula óssea. Em entrevista exclusiva ao Correio, por e-mail, o diretor do Instituto de Virologia Humana da Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland admite que o tratamento apresentado pelo médico Daniel Kuritzkes, em Washington, não tem qualquer vantagem prática, além de ser extremamente arriscado e impossível de ser replicado em larga escala.
Gallo prefere ser realista: trabalha com a hipótese de uma vacina preventiva, apesar de reconhecer que ela não eliminará o vírus. “Eu acho que podemos descartar uma cura eficiente do HIV em um futuro previsível próximo”, admitiu. O cientista — que também desenvolveu o primeiro teste sanguíneo para detectar a Aids — esboça otimismo ao reconhecer o progresso contínuo da ciência básica e as suas tentativas de entender a vulnerabilidade do HIV. “Veremos alguns testes clínicos interessantes surgirem nos próximos dois anos”, acredita. Na opinião de Gallo, o Brasil segue na vanguarda do tratamento da doença, com “grandes contribuições no desenvolvimento de medicamentos genéricos”.
Dois pacientes teriam se livrado do HIV após o tratamento com antirretrovirais e um transplante de medula óssea. O senhor considera que eles ficaram curados?
O termo cura, na minha opinião, é um exagero. Os cientistas não estão falando apenas sobre a doença, mas sobre uma cura total do vírus. Em outras palavras, a afirmação é de que não existe mais vírus no corpo dos pacientes. No entanto, infelizmente, essa conclusão não pode ser feita até o exame post mortem explorar os tecidos de ambos e procurar por sequências virais. Nós sabemos que esse é o caso em estudos com macacos. Somente é possível dizer que eles foram curados se o vírus estiver completamente suprimido. Na verdade, eles não foram apenas tratados com antirretrovirais. Pelo menos no caso do primeiro paciente, sabemos que ele tinha um tipo de câncer que também foi tratado com a total destruição de sua medula óssea (por radiação), seguida de um transplante de células-tronco de medula óssea, de um doador normal com genética rara — ele não tinha a molécula conhecida como CCR5, um receptor-chave para que o HIV entre e infecte as células. Essa técnica não tem, absolutamente, nenhuma vantagem prática e não oferece qualquer novo insight conceitual real. Ela tem sido discutida há anos, e é hora de pararmos de falar sobre isso.
Então, o transplante não seria um bom método para tratar a Aids?
Não. Eu não acho que seja possível realizá-lo, na prática, em um nível de larga escala. Isso porque tais doadores que não possuem a CCR5 são raros e eles não podem tornar suas medulas ósseas disponíveis para o mundo. O receptor precisaria de sua medula óssea ablacionada (removida).
Quais seriam os principais riscos dessa técnica?
Não se trata apenas do risco, mas da falta de doadores suficientes que não tenham a molécula CCR5. Certamente, tal técnica seria perigosa para o tratamento de uma pessoa soropositiva em larga escala. É provável que muitas delas morreriam.
O mundo ainda está muito distante de uma cura da Aids? É possível estabelecer um prazo para que isso ocorra?
Eu acho que você pode descartar uma cura eficiente do vírus HIV em um futuro previsível próximo e, principalmente, em larga escala. Talvez, algum dia isso ocorra, mas não num futuro previsível. Em relação a uma vacina, o progresso na ciência básica tem sido contínuo para esse vírus extremamente complexo. Nós veremos alguns testes clínicos interessantes surgirem nos próximos dois anos. Eu desisti de tentar prever o “quando” de tudo isso.
Por que é tão difícil eliminar o HIV?
Sua grande variedade é um problema, mas outros grupos têm essa mesma característica. O principal problema está no fato de o HIV ser um retrovírus. Por isso, após a infecção, ele integra seus genes à célula-alvo e os integra aos descendentes dessa célula, o que torna a infecção permanente e quase que imediata.
A Aids já é quase considerada como uma doença crônica e a sobrevida dos infectados
aumenta exponencialmente. Isso pode ser perigoso, em termos de se ter menos
cuidado para evitar a infecção?
Sim, isso é certamente possível e tem sido documentado algumas vezes. Por isso, continua a ser verdade que sempre precisamos da grande ajuda de educadores e da mídia para explicar a realidade.
Existe uma falta de vontade política para tornar os tratamentos mais
avançados disponíveis a áreas mais vulneráveis, como o continente africano?
Pelo contrário, o programa Plano de Emergência para o Alívio da Aids (Pepfar), criado sob a presidência de George W. Bush e expandido durante a gestão de Barack Obama, está alcançando 5 milhões de pessoas na África. Nosso próprio instituto está envolvido na educação e no tratamento de aproximadamente 75 mil pacientes em oito nações da África e em duas do Caribe. Nós ainda precisamos que outros países mais ricos se unam a esse esforço. Se isso ocorrer, seremos capazes de atingir a maior parte dos pacientes, se não todos, nas nações em desenvolvimento. Os Estados Unidos têm mantido o desejo de que esse programa continue e tem cuidado de aumentar o financiamento, apesar de nossas dificuldades econômicas neste momento. Uma vez mais, os EUA podem usar ajuda adicional de outras nações ricas, incluindo o Brasil.
O que é mais urgente e realista: uma vacina preventiva ou uma vacina capaz de matar o vírus?
A primeira opção, uma vacina preventiva. Uma vacina usada para controlar o vírus, em estudos com cobaias animais, nunca tem se mostrado muito eficiente e, certamente, não levará à cura. Ela não vai ser capaz de eliminar cada uma das células infectadas.
O Brasil ainda está na vanguarda do tratamento e da prevenção da Aids?
Eu diria que sim, pois o Brasil é um país que se mantém atualizado sobre várias drogas e que tem fornecido grandes contribuições no desenvolvimento de medicamentos genéricos, acessíveis à maior parte da população. Seus cientistas clínicos e funcionários da área da saúde têm se mantido atualizados desde os primórdios da epidemia. O envolvimento da mídia sempre tem sido proativo.
Como o senhor vê a importância e a eficácia da Truvada, a primeira pílula de prevenção do HIV aprovada pelo FDA (organismo regulador de medicamentos e alimentos dos EUA) e comercializada?
Quando um funcionário de laboratório ou um trabalhador da área de saúde se expunha à possibilidade de infecção após ficar exposto ao HIV, ele recebia uma droga com propriedades anti-HIV. E precisamos assumir que ficaram protegidos porque a vasta maioria nunca se infectou. Então, por que a Truvada? Simplesmente porque o laboratório Gilead Sciences a produziu, combinando duas drogas interessantes. Penso que é um avanço legal, mas não prático para o mundo. Ela será excessivamente cara, e os vírus podem escapar dessas drogas por meio de mutações. Então, ocorrerá uma resistência. Além disso, uma das duas drogas da Truvada pode ser tóxica para os rins. Não se trata de uma panaceia. Eu não acredito que a pílula terá uma longa duração e será amplamente aplicada, como estão afirmando.
“O Brasil é um país que se mantém atualizado sobre várias drogas e que tem fornecido grandes contribuições no desenvolvimento de medicamentos genéricos, acessíveis à maior parte da população”