Poderá o SUS priorizar outra vez a atenção básica?
No segundo encontro preparatório para a Conferência Livre de Saúde, pesquisadores e ativistas refletem sobre como reverter a privatização do atendimento primário – e convertê-lo num grande foco de reconstrução do sistema público de saúde. Artigo de Alessandra Monterastelli originalmente publicado no portal Outra Saúde.
Que a reconstrução do SUS exigirá superar o subfinanciamento da Saúde Pública estava claro desde 15/7, quando a Frente pela Vida (RpV) organizou o primeiro debate preparatório para a Conferência Livre Democrática e Popular de Saúde. É preciso romper amarras como o teto de gastos, e passar dos atuais 4% do PIB destinados ao sistema para pelo menos 6%. Mas e quando esta meta for cumprida? Como traçar e executar um plano que melhore, passo a passo, o atendimento à população? Este foi o tema do um novo diálogo que a Frente pela Vida organizouna última quarta-feira (29/6). Intitulado Serviços de Referência Territorial, Cuidado à Saúde, é parte de um dos eixos principais da Conferência – o da crítica à mercantilização da saúde. O encontro evidenciou que uma estratégia decisiva é concentrar esforços no atendimento primário. E começou a discutir caminhos para fazê-lo.
“A consolidação do SUS foi interrompida em 2016”, afirmou Lígia Giovanella, professora da ENSP/Fiocruz e integrante da Rede APS da Abrasco. Ela apontou o teto de gastos como um entrave para o avanço no atendimento básico. “Tivemos muitos retrocessos (…) com a diminuição das equipes e falta dos agentes comunitários”, prosseguiu. Essa realidade enfraqueceu a cobertura territorial do SUS – o que, segundo ela, não foi uma fatalidade, mas sim um projeto de romper com a universalidade. “Existe uma opção política pela focalização e seletividade: o SUS mínimo para pobres”, explicou. Esta escolha é decisiva para promover a privatização.
“O nível de desmonte e desorganização da máquina pública é absolutamente assustador”, acrescentou Rodrigo Oliveira, secretário de Saúde de Niterói e presidente do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (Cosems-RJ). “Disputamos, do final da década de 1990 até 2014, cada centímetro da política de saúde. Não se enganem, o provável próximo período que se inicia em janeiro será de reconstrução, mas muito mais difícil do que qualquer processo que já tenhamos enfrentado”, alertou. Assim como Giovanella, ele relembrou que “a emenda 95 [que instituiu o teto de gastos] é impeditiva” para qualquer reconstrução e que será necessário restabelecer “os marcos normativos das políticas públicas” diante da privatização e da segmentação maciças dos últimos anos. “Dispositivos como o Dr Consulta entraram de forma pesada nos municípios, tirando inclusive financiamento do sistema público”, alertou, ao lembrar que algumas cidades preferiram contratar serviços de empresas como esta a injetar dinheiro nos serviços municipais de saúde.
Para Oliveira, a política nacional hoje existente para o setor deve ser alterada. Segundo ele, esta revisão ocorreria em qualquer cenário, visto que “o mundo mudou”. “O Brasil está mais velho, gordo, deprimido, pobre e passou pelo processo da pandemia de covid-19”, argumentou. Nessa revisão, a ampliação do financiamento da atenção primária é essencial, visto que hoje o repasse de verbas a estados e municípios voltou a “patamares de 2013”. Em consequência, “a prática clínica individual e privatizante está se colocando como hegemônica”, argumentou. Nesse cenário, segundo ele, o fortalecimento de autoridades sanitárias e de equipes de saúde da família nos territórios é essencial. Lígia Giovanella concordou. Para ela, se a Estratégia de Saúde e Família for fortalecida como modelo de atenção primária à saúde, haverá significativa diminuição da sobrecarga dos municípios. As metas seriam atender 100% da população em 8 anos – e 80% já nos próximos 4 anos (atualmente, a cobertura estimada é de 60%). Mas essa é outra perspectiva que só será possível se houver o aumento progressivo dos recursos federais destinados à APS.
Nesse contexto de mudanças populacionais, a própria atenção básica – vista como o atendimento integral ao bem-estar da população, e não apenas o tratamento de suas doenças – não pode evoluir? Túlio Franco, integrante da Rede Unida, defendeu a expansão do conceito de atenção primária com base nos hospitais comunitários europeus, experiências de sucesso em países como Itália e Reino Unido. Apesar do nome, esse tipo de instituição se insere como atenção intermediária, entre a primária e a hospitalar, e trabalha especialmente a reabilitação de pacientes. “Seria uma grande possibilidade de apoio à atenção primária, que é sobrecarregada. Às vezes a pessoa não precisa ir pro hospital, mas sem o cuidado intermediário ela é hospitalizada, o que gera um cuidado desnecessário e um custo maior”, explicou. A experiência intermediária usaria tecnologias leves, trabalho multifuncional e projeto terapêutico compactuado com usuário. “Hoje o Brasil tem 5 mil hospitais de pequeno porte e superlotados. Em outro cenário, eles poderiam se tornar uma rede robusta e resolutiva de hospitais intermediários”, frisou.
“Pacientes não devem enfrentar percursos circulares e não resolutivos” para obter atendimento, que muitas vezes leva ao agravamento de problemas de saúde, relembrou Giovanella. A fragmentação de cuidados “é sempre um desafio” para o sistema público de saúde, mas, nesse contexto, a organização no atendimento primário torna-se imprescindível.