Política anti-crack. Epidemia do desespero ou do mercado anti-droga?
A primeira e má impressão é que a posição dos segmentos da sociedade que trabalham e pensam a questão da saúde pública não tem o devido espaço, nem suas vozes o devido acolhimento para os gestores da área. Tanto na IV Conferência Nacional de Saúde Mental quanto na recém realizada XIV Conferência Nacional de Saúde, a proposta de financiamento público das “comunidades terapêuticas” foi rejeitado por meio de moções e de propostas alternativas bastante fundamentadas. Não adiantou! Poucos dias após o encerramento da XIV Conferência, que envolveu cerca de 50 mil pessoas diretamente, entre profissionais, gestores, prestadores de serviços, usuários, familiares, dentre muitos outros ativistas de lutas sociais e políticas, o Governo anunciou o plano de combate ao crack que implica no financiamento das “comunidades terapêuticas”.
Como professor e pesquisador no campo da saúde mental na Fiocruz, conheci a experiência das Comunidades Terapêuticas a partir de seus idealizadores, com destaque para Maxwell Jones, um grande psiquiatra inglês do pós-guerra que demonstrou, antes mesmo do advento dos psicofármacos, que o envolvimento dos pacientes psiquiátricos em seu próprio tratamento pode ser um dos principais princípios terapêuticos. E, ainda mais, que o envolvimento e a afetação, a participação democrática e a horizontalidade do poder institucional (expressões utilizadas por Maxwell Jones) entre profissionais, familiares, enfim, de todos, em prol do tratamento, construindo um espírito de comunidade, são os mais importante passos para o objetivo da terapêutica. Estes são os princípios da verdadeira Comunidade Terapêutica, que se tornou política nacional na Inglaterra a partir do Plano Nacional de Saúde de 1948. E é por tais motivos que a Comunidade Terapêutica é uma das bases fundamentais do processo de Reforma Psiquiátrica brasileira e da Luta Antimanicomial.
Já sobre a “comunidade terapêutica” (assim mesmo, com letras minúsculas e entre aspas, para não confundir com a verdadeira) – a primeira vez que eu ouvi falar foi em uma reunião particular que tive com Tim Lopes. Em cerca de seis horas de reunião, o jornalista e amigo de “outras épocas” (em que eu mesmo fazia uns bicos como jornalista na mesma imprensa independente que Tim), me mostrou fotos e vídeos surpreendentes destas tais “comunidades” que ele estava pesquisando para matérias para a TV Globo. Cenas de violências e maus tratos, de extorsão de familiares, de inúmeros constrangimentos. Ele me confidenciou, inclusive, que estava assustado por haver recebido ameaças. Além do tom de fraude que o uso de tal terminologia implica (comunidade terapêutica), pude constatar que a fraude encobria algo absolutamente oposto aos ideais de Maxwell Jones.
Mais recentemente o tema tomou uma enorme dimensão, com o crescimento do uso de crack (crescimento ainda muito pouco pesquisado e comprovado). Tenho notado que o processo na mídia tem distorcido a questão – para mais ou para menos – , de acordo com interesses de mercado jornalístico ou outros mercados afins.
A Reforma Psiquiátrica no Brasil, é hoje reconhecida e respeitada em boa parte do mundo, e tem acumulado importantes conhecimentos e experiências no tratamento do abuso de álcool e outras drogas, particularmente com a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) especializados em tais tratamentos, assim como as iniciativas de Redução de Danos. Em ambos os casos é o vínculo com a pessoa que faz a diferença, e isso é fundamental. O chamado “dependente” não perde sua capacidade de construir um projeto de vida. Os modelos calcados na internação compulsória respondem ao imediatismo do desespero da sociedade, que após a alta – nos informam especialistas no tema – mais de 90% retornam às drogas. Seria absurdo pensar que, na medida em que as pessoas forem internadas compulsoriamente, novos usuários surgirão? Pois o mercado do tráfico encontrará meios de produzir novos usuários. Como a internação não resolve o problema, os usuários de alta se somarão aos novos.
Um outro aspecto que chama a atenção no Plano é o seu texto sobre prevenção se apresentar tão sem força, com uma carência expressiva de idéias. Esse é um problema amplo e interdependente de muitos fatores e se a questão das drogas não for pensada intersetorialmente, com ações profundas no âmbito do ensino, da cultura, do esporte, do bem estar social, das famílias e assim por diante, estaremos apenas tateando as margens do problema e caminharemos para o velho e “bom” tapar o sol com a peneira.
Certamente ninguém discorda que o Estado precisava definir uma política sobre o uso de drogas. O curioso é que a questão do financiamento público às “comunidades terapêuticas”, geridas, como são, por entidades religiosas, venha a ser um dos principais aspectos do Plano. Seria pelo apoio político ao Governo das bancadas que defendem os interesses destes mesmos setores? Afinal, numa interpretação ampliada do conceito de biopolítica de Foucault, o mercado é uma estratégia fundamental de regulação das relações público-privado. Neste sentido, tudo é mercado, e o resto… também é mercado! O mercado das terapêuticas, das religiões, da mídia.
Para finalizar, no que diz respeito às modalidades de tratamento, seria importante que o plano criasse possibilidades maiores para os Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS), muitas das vezes apontados como ineficazes, mas a verdade é que muito pouco se investiu neles. No Boletim Oficial de julho de 2011 da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde pode-se ver que na data em questão existia apenas um CAPS com funcionamento 24 horas no Brasil inteiro. No verdadeiro investimento nestes serviços, não apenas na implantação de mais unidades, mas na formação de profissionais, na remuneração adequada dos mesmos, na supervisão e na garantia de recursos e insumos básicos, existe um bom caminho. Um caminho coerente, avaliado e apoiado pelos atores que atuam na área da saúde mental no Brasil.
Por Paulo Amarante, psiquiatra, doutor em Saúde Pública, pesquisador da Fiocruz e professor da ENSP, presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME) e diretor do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. Do site do Cebes.
Entrevista Humberto Verona
1. Qual sua avaliação sobre o relatório da vistoria a instituições de internação de abuso de drogas, divulgado durante a XIV Conferência Nacional de Saúde?
O relátório foi fruto da inspeção realizada pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia em parceria com as Comissões de DH dos 20 Conselhos Regionais de Psicologia e entidades parceiras. Aconteceu em 23 estados brasileiros visitando 68 comunidades terapêuticas. Em todas as instituições, sem excessão, foram encontradas violações de direitos humanos graves, desde a privação da liberdade dos internos até castigos físicos como a abertura,com as mãos, de covas para semi-enterrar o usuário punido. Ameaças de perda de guarda de filhos e prisão em “celas fortes” também foram relatadas, além de ambientes insalubres e trabalho forçado sob nome de laborterapia.
Entendo que vivemos em um país onde muitos ainda são considerados sub-cidadãos e por isso podem ser submetidos às mais cruéis intervenções em nome do cuidado, entre eles estão os usuários de drogas e portadores de saúde mental. O que presenciamos na inspeção foi uma amostragem do que acontece nas instituições privadas que trabalham na lógica da internação compulsória e da privação de liberdade, contrárias aos princípios do SUS e da Lei 10.216 (Reforma Psiquiátrica)
2. O Plano anti-Crack do atual Governo, na sua opinião, contempla as necessidades reais do problema do crack no Brasil?
O Plano do governo federal foi mais uma demonstração da forte pressão de setores conservadores da sociedade brasileira sobre os governos e a falta de coragem dos mesmos no enfrentamento dos graves problemas sociais com políticas verdadeiramente transformadoras. O plano é um retrocesso quando adota a internação compulsória e as comunidades terapêuticas (aquelas mesmas que demonstramos violar direitos humanos) como recursos de cuidado. Quanto mais que o Ministro da Saúde explica, menos se compreende esta atitude que põe em risco todos os avanços conquistados pela Reforma Psiquiátrica no Brasil. Isso só para falar da parte que envolve o SUS. Se olharmos para a parte da Segurança Pública vemos os mesmos velhos recursos da repressão e da criminalizarão.
Enfim estamos apreensivos com o que pode acontecer no Brasil quando o governo federal dá a linha para uma política que pode favorecer a violação de direitos e alimentar idéias contrárias às práticas democráticas.
3. O status de epidemia é real?
Epidemia de crack é uma ficção. O problema das drogas, principalmente do uso abusivo de álcool, é sério e demanda cuidados no Brasil. O crack é mais uma droga que circula nas ruas das cidades e seu uso elevado ao status de epidemia serve para justificar políticas higienista e autoritárias contra os usuários. Veja o que acontece em São Paulo, Rio e Minas por exemplo. Os governos desses estados e de outros também, agora respaldados pela presidenta, estão promovendo uma verdadeira limpeza das cidades em nome do cuidado aos usuários e da dita epidemia. Quem conhece um pouco de história sabe o que isso significa.
4. Quais suas perspectivas em relação à reforma psiquiátrica para o próximo ano?
Estamos muito apreensivos.
Há um conjunto de medidas anunciadas pelo Ministério da Saúde que indicam a ampliação da rede substitutiva de atenção às pessoas com transtorno mental e isso é bom. Entretanto a reação conservadora à reforma antimanicomial que insiste na ampliação de leitos em hospitais psiquiátricos e ataca os serviços substitutivos ganha força com a lógica de internação e segregação defendidas no Plano Crack. Será muito mais difícil para as equipes de saúde mental do SUS defender metas de reduzir internações em favor dos dispositivos de cuidado em liberdade, principalmente quando a pessoa com transtorno mental for também um usuário de drogas. A resistência terá que vir dos próprios usuários, familiares e trabalhadores da saúde mental para que não retornemos ao passado dos grandes (e pequenos) manicômios segregadores e violentos.