População LGBT na Revista Saúde em Debate

Os movimentos sociais de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) vêm construindo trajetórias e narrativas que alargam os sentidos e os objetivos das mudanças rumo à desejável radicalização da democracia em nível nacional. O feminismo e os movimentos articulados em torno da AIDS, configurados como lutas por emancipação e inclusão social, trazem a sexualidade, os direitos sexuais e a vida privada ao âmbito da nova construção e da prática democrática, e rompem amarras impostas pelos interesses, até então, hegemônicos.

Para o setor da saúde é fundamental compreender esses movimentos e incorporar as demandas dos grupos sociais,não apenas para o cumprimento dos princípios da universalidade e integralidade do Sistema Único de Saúde (SUS), mas, essencialmente, pela importância que a participação social e a democracia participativa têm e tiveram na gênese e na sobrevivência do direito universal à saúde e do SUS.

Pelo menos duas situações podem ser identificadas quando são analisadas a organização e a oferta de serviços pelo SUS sob o ponto de vista das demandas e necessidades de grupos LGBT: a discriminação e a impropriedade da oferta de atenção e de cuidados. A questão da discriminação, associada ao preconceito e às moralidades, é de difícil reversão, e envolve complexas medidas, desde os serviços e formação dos profissionais de saúde até a imediata instalação, no interior das instituições, de mecanismos que permitam a sua visibilidade, apuração e punição.

Já os problemas vinculados à oferta exigem maior amplitude na identificação das necessidades e demandas desses grupos, que não se restringem às doenças sexualmente transmitidas.

Há uma ampla constatação de que os direitos humanos dos grupos LGBT são violados ou negligenciados. O setor da saúde tem se mostrado permeável ao debate e à incorporação de desafios e inovações de diversas naturezas, o que ocasiona uma expectativa positiva quanto às mudanças. Entretanto, para a satisfação e a consolidação do direito à saúde integral para essa população, é necessária uma ressignificação dos direitos sexuais e reprodutivos a partir da desnaturalização da sexualidade e de suas formas de manifestação.

Para tanto, é fundamental considerar a eliminação da medicalização da sexualidade, que tende a normatizar as expressões da sexualidade humana a partir do “padrão” e da lógica heteronormativa e linear, prevalente na determinação baseada na imposição do biológico sobre as identidades de gênero, estas constituídas por fatores e condicionantes bem mais complexos e multifacetados.

No bojo dessas mudanças, é fundamental considerar legítimos outros discursos sobre a sexualidade humana, e, ao mesmo tempo, desconstruir saberes e poderes associados à medicina que tendem a patologizar e à medicalizar o que é “diferente” ou “desviante da normalidade”. Tais pré-conceitos e práticas médicas denunciam a persistência da visão essencialista e o não reconhecimento, no humano, dos processos constitutivos e das práticas sociais e relacionais vinculadas à sexualidade.

A sociedade brasileira, nos últimos tempos, “descobriu” que abriga no seu interior uma diversidade de grupos sociais, com culturas distintas e múltiplas sexualidades e identidades de gênero, antes ocultos e sufocados pelas moralidades e pelos valores patriarcais conservadores. A diversidade, hoje finalmente reconhecida, mostra as possibilidades plurais de constituições humanas em termos psíquicos e relacionais, e que o olhar e as práticas dos profissionais e dos serviços de saúde devem se pautar em resguardar aos sujeitos humanos o direito à autonomia, ao livre desenvolvimento da personalidade, à privacidade e à dignidade. Isso implica conceber a homossexualidade, os travestismos e as transexualidades como possibilidades humanas legítimas, assim como a heterossexualidade, e não como desvio de um padrão de normalidade.

No Brasil,há uma perigosa onda conservadoracom relação aos direitos dos grupos LGBT, a despeito da retirada da categoria homossexualismo dos compêndios nosográficos e do fato de que em diversos campos do saber háconsenso quanto ao caráter não patológico das práticas homoeróticas. Sob essa perspectiva, devem ser celebradas normatizações específicas, ocorridas nos órgãos reguladores de categorias profissionais da área da saúde, particularmente, o caso do Conselho Federal de Psicologia (1999), que, através da Resolução Nº 001/99, estabelece normas de atuação para psicólogos no tocante à questão da orientação sexual. Tais normas orientam que os profissionais devem contribuir com o seu conhecimento para reflexões críticas sobre os preconceitos e primar pelo combate à discriminação e ao estigma contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas, não devendo exercer quaisquer ações que favoreçam a patologização dessas pessoas, nem adotarações coercitivas que tendam a orientar homossexuais a tratamentos não solicitados.

O Conselho Federal de Serviço Social (2006), por sua vez, através da Resolução nº. 489/2006, estabelece normas vetando condutas discriminatórias ou preconceituosasem função da orientação e da expressão sexual, no exercício profissional do assistente social, resguardando ao sujeito o direito à singularidade e à diferença subjetiva.

No SUS, a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (Portaria Nº 675/GM, D.O.U 31/03/2006) (BRASIL,2006) deu um passo à frente ao assegurar o atendimento humanizado e livre de preconceito e discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, inclusive, assegurando o uso do nome social para travestis e transexuais como estratégia de promoção de acesso ao sistema de saúde.

Outro desafio posto para o SUS é o rompimento da naturalização da configuração familiar heterossexual, particularmente, na abordagem realizada por meio da estratégia da Saúde da Família, que é realizada por profissionais de saúde que precisam conhecer e reconhecer a legitimidade das diferentes modalidades de constituição de redes familiares distintas do padrão heterossexual.

A história mundial recente vem consolidando as lutas populares e reafirmando o novo ideal democrático, que requer a real emancipação social de classes sociais e de grupos morais submetidos à opressão. Esses ideais devem ser edificados a partir da ruptura com os valores e imposições do capitalismo.

Sob essa perspectiva, impõem-se o resgate e a radicalização da democracia, hoje consumida e desgastada pelo liberalismo capitalista. Nesse sentido, o alerta de Boaventura Souza Santos é enfático, ao afirmar que “o capitalismo não exerce o seu domínio senão servindo-se de outras formas de opressão, nomeadamente, do colonialismo e do patriarcado”. A nova democracia, prossegue Boaventura, deve ser “uma democracia radical, além de anticapitalista tem de ser também anticolonialista e antipatriarcal”.

Diretoria Nacional do Cebes

 

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