Por Bruno, por Dom, por todos nós
O diretor do Cebes Carlos Fidelis Ponte escreve sobre o caso do desaparecimento, e possível assassinato, do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista Dom Phillips, do jornal The Guardian, e como o caso sinaliza que esse Brasil “dirigido por uma elite que cultiva e estimula a violência como instrumento de dominação e de política pública”. Eles estão desaparecidos desde o início de Junho (5). Viajavam da comunidade ribeirinha de São Rafael até a cidade de Atalaia do Norte, no interior do Amazonas – um trajeto de cerca de duas horas, mas, até essa terça (14), não haviam chegado. Atalaia do Norte está na região chamada de tríplice fronteira. É onde se tocam as fronteiras do Brasil, Peru e Colômbia. Veja a seguir o artigo de Fidelis.
“Queria encontrar pelo menos o corpo dele para poder finalizar essa história de horror e passar para uma outra etapa. Essa angústia de não saber se estão implorando por ajuda é uma tortura, é muito difícil (…). Eu já disse isso antes, eu espero que eles não tenham sido torturados, ou tenham sofrido.”
Alessandra Sampaio, mulher de Dom Phillips em referência ao desaparecimento do jornalista e de Bruno Araújo Pereira.
“Estou tentando me manter firme. Estou tentando preservar meus filhos, que são muito pequenos (…). Teve um estopim.Teve uma ação, por exemplo, que ele fez, de detonação de balsas de garimpo no sul da terra no Vale do Javari. Então ele foi exonerado do cargo coordenador”. “Nas condições que a Funai estava, ele não poderia continuar o trabalho que ele estava realizando, então ele teve essa opção de se licenciar da Funai para poder trabalhar como assessor da Univaja”.
Antropóloga Beatriz Matos, mulher do indigenista Bruno Araújo Pereira
Com profunda indignação que recebemos as notícias contraditórias ora confirmando, ora negando, as mortes do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista Dom Phillips. Há algo de muito estranho nesse desencontro.
Estamos diante de mortes anunciadas. Assassinatos em um país dirigido por uma elite que cultiva e estimula a violência como instrumento de dominação e de política pública. Mortes que denunciam ao mundo os resultados de uma posição de governo que facilita a exploração e degradação da condição humana e do meio ambiente em todas as partes de nosso território. Na floresta, no campo ou nas cidades, as mortes violentas são presença constante e relacionadas a ausência do Estado ou à sua conivência negligente e interessada.
O país vive uma escalada de violência política que precisa ser urgentemente contida. Essa escalada conta com a participação direta do presidente que há anos faz declarações condenáveis como: “Você sabe que eu sou a favor da tortura. Através do voto, você não muda nada. Só com uma guerra civil. Tem que matar uns trinta mil. A começar por FHC. Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem”; ou ainda: “Quem procura osso é cachorro” sobre a busca de desaparecidos durante a ditadura militar. Uma profusão de barbaridades que inclui elogio que o então deputado federal Jair Messias Bolsonaro fez em discurso na Câmara em 1998 quando declarou, sem nenhum constrangimento moral que: “competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou os seus índios”.
Fanfarronices de um falastrão, dirão alguns sem avaliar o peso de tais declarações proferidas por um parlamentar. Declarações que se somam a outras bastante conhecidas de desdém para com as vítimas da pandemia de covid-19 e que continuaram na mesma linha quando ele foi questionado sobre o desaparecimento de Dom e Bruno. “As pessoas abusam”. “Duas pessoas apenas num barco, numa região daquela, completamente selvagem, é uma aventura que não é recomendável que se faça“. “Naquela região, geralmente você anda escoltado,foram para uma aventura. A gente lamenta pelo pior”, afirmou o chefe do executivo em entrevistas recentes.
Afirmações prontamente rebatidas pelos familiares das vítimas. “Acho que ele [Bolsonaro] está colocando a culpa no meu irmão por uma ‘aventura’. Não é uma aventura. Ele é um jornalista, ele está pesquisando para um livro que vai escrever sobre como salvar a Amazônia”, afirmou Sian Phillips, irmã de Dom Phillips, em entrevista à CNN.
Beatriz Matos, mulher de Bruno, também contesta as declarações estapafúrdias do presidente: “São afirmações que contradizem a extrema dedicação, a seriedade, o compromisso que o Bruno tem com o trabalho dele. (…) Essas afirmações, que me ofendem muito e que me doem muito, porque foi trabalhando que aconteceu o que aconteceu com ele. Ele estava trabalhando. E se o local de trabalho dele, meu, e de tantos outros virou um local perigoso, que a gente precisa usar a escolta armada para poder trabalhar, tem algo muito errado aí. E o erro não está conosco. O erro é de quem deixou que isso acontecesse.”
Não podemos admitir que a violência continue marcando nosso cotidiano. Estamos virando uma terra sem lei. A imagem do país é de uma terra dominada pelo crime organizado. Nossa soberania, nossa frágil democracia e nossas instituições estão fortemente ameaçadas. Vivemos uma escalada que antecede em muito a morte de Marielle Franco e Anderson Gomes, em 14 de março de 2018, marco de uma ação criminosa contra a parlamentar e à instituição do Parlamento.
Uma escalada que passa pelos assassinatos, em dezembro de 2019 do líder sem-terra Márcio Rodrigues dos Reis e do ex-vereador do PT e conselheiro tutelar Paulo Anacleto, ambos mortos em Anapu (PA); pelo assassinato, em 10 de fevereiro de 2022, do menino Jonattas de Oliveira dos Santos, de 9 anos, vítima de um atentado realizado por pistoleiros contra o presidente da associação de agricultores familiares, Geovane da Silva Santos, na localidade de Engenho Roncadorzinho, no município de Barreiros, no interior de Pernambuco.
Passa igualmente por 80 tiros disparados, em 7 de abril de 2019, pelo Exército Brasileiro em um carro que transportava uma família e que resultou na morte do músico Evaldo do Santos Rosa e de Luciano Macedo que passava pelo local e tentou ajudar aqueles que eram alvo dos disparos. Passa pelas chacinas como as ocorridas no Jacarezinho em maio de 2021 e na Vila do Cruzeiro em 24 de maio de 2022; pelas inúmeras crianças mortas por balas perdidas na comunidade mais pobres. Passa pelo assassinato, em 25 de maio de 2022, de um cidadão em um carro da Polícia Rodoviária Federal transformado em câmera de gás e palco de um espetáculo dantesco diante de uma população amedrontada e escandalizada.
Servidores públicos, jornalistas e lideranças sindicais e de movimentos sociais têm sido perseguidos por cumprirem o papel que a sociedade espera deles. Foi assim com Ricardo Galvão, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais exonerado por Bolsonaro, em agosto de 2019, por divulgar dados alarmantes sobre o aumento do desmatamento na Amazonia. Foi assim com o servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Fernandes Miranda que denunciou, em 20 de março de 2021, o esquema fraudulento de aquisição de vacinas e foi atacado publicamente pelo então ministro Onyx Lorenzoni da Secretaria Geral da Presidência da República e pelo Coronel Elcio Franco, ex-secretário executivo do Ministério da Saúde e ex-assessor da Casa Civil, ambos apontados no relatório final da CPI da pandemia com responsáveis por ações criminosas. Foi assim também com Bruno Araújo Pereira que após contribuir decisivamente, em setembro de 2019, para a destruição de 60 balsas a serviço do garimpo ilegal na região acabou sendo exonerado logo depois.
Enquanto isso a retórica oficial manipula os valores do nacionalismo, da religião e do combate à corrupção, vendendo um patriotismo vazio, usando o nome de Deus para justificar o injustificável, decretando sigilos e promovendo interferência nas investigações. Ao lado disso, a agência internacional do bilionário Michael Bloomberg e aliado do presidente dos EUA, noticiou que Jair Bolsonaro pediu ajuda a Joe Biden para derrotar Lula no encontro de 9 de junho. Solicitação que se confirmada constitui grave atentado à soberania nacional.
Definitivamente não vivemos tempos de normalidade democrática. Estamos experimentando um conflito fundamental e definidor do nosso futuro e de nossos filhos e netos. Um conflito entre a barbárie e a civilização, entre a semeadura do ódio e a capacidade de amar, entre o medo e a esperança. Precisamos abandonar este modelo extrativista exportador de desenvolvimento que atualiza o colonialismo, degrada o ambiente e desconsidera as pessoas. Um modelo que estimula a ação de jagunços, milicianos e assassinos de aluguel.
Nestas circunstâncias, o silêncio e a omissão não nos favorece, pelo contrário nos fragiliza e nos diminui diante de um inimigo que, felizmente, mostra sinais de fraqueza e de isolamento. Precisamos dar um basta nessa situação e construir o país que desejamos e merecemos. Um país pacífico, próspero, inclusivo, solidário, soberano e sustentável. Um país de todos que seja capaz de contribuir para relações mais equilibradas e cooperativa entre as nações. O Brasil quer paz, prosperidade, ciência e cultura.
Veja a seguir um vídeo gravado pelo jornalista Dom Phillips mostrando o indigenista Bruno Araújo Pereira cantando: