Por uma política humanizada e eficaz no combate ao crack
No início de 2013, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, anunciou uma política de internação compulsória de usuários de crack que provocou diversas reações e pouco consenso em todo o Brasil – anunciando aí a necessidade de aprofundamento do debate sobre a questão.
Esta requer um olhar que, além de envolver os aspectos próprios da epidemia e da dependência, incorpore os direitos humanos e os princípios da bioética.
Entretanto, os argumentos que sustentam e defendem o tratamento parecem ignorar estes aspectos, além dos interesses financeiros envolvidos e a violência da ação da Polícia sobre o cidadão.
A critica à política de internação compulsória, de outro lado, se baseia no principio de que, em saúde mental, o principal fator para a boa evolução do quadro do paciente adicto às drogas é a própria vontade do mesmo em lutar contra o vício.
O sucesso do tratamento depende da combinação de fatores biológicos, psíquicos e sociais, incluindo uma rede de acolhimento que não viole os direitos humanos e que seja capaz de interferir no contexto de vida do usuário, com o objetivo de promover a reinserção efetiva através do reforço dos vínculos comunitários, além de garantir aos dependentes o acesso a cuidados básicos de saúde.
Estas intenções, ações e serviços, no entanto, ainda não estão presentes na política praticada pelo estado paulista, tampouco nacionalmente.
Para aprofundar o debate e a responsabilidade pública sobre esse quadro que só será modificado através de profundas mudanças na sociedade, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) recolheu opiniões de diversos atores sobre o assunto. Confira alguns deles.
Cláudio Lorenzo, Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética
Na forma como tem sido planejada, eu sou totalmente contrário a esta internação compulsória, por ela não se encontrar integrada a um programa de reinserção dos sujeitos na vida social. Não adianta institucionalizar os indivíduos e depois devolvê-los à mesma realidade que o os fez adquirir a adição. Na forma como tem sido conduzida a internação compulsória, ela não se caracteriza como uma intervenção de proteção, que objetiva afastar o usuário temporariamente do uso da droga, para permitir uma melhora do quadro e oportunidade para início de uma psicoterapia verdadeira, respeitando sua autonomia. Sem um programa muito bem pensado, tanto psicoterápico como através de medidas intersetoriais, que promovam uma nova forma de inserção social depois do internamento, esse programa tem inspirações higienistas, com fortes tonalidades fascistas.
Tatiana Lionço, doutora em psicologia pela Unb e professora do curso de Psicologia da Faculdade de Ciências da Educação e Saúde do UniCEUB
Esta medida viola direitos humanos e sociais básicos. A internação compulsória é a retomada da lógica manicomial em plena era de reforma psiquiátrica e propõe a segregação, a criminalização ou ao menos a desqualificação moral de usuários de drogas. Ela é contrária aos princípios do SUS e pode-se compreende-la também como inconstitucional. Desconsidera a necessária intervenção social sobre a problemática das drogas e vulnerabiliza o usuário ao estigma e ao rompimento de laços sociais e familiares.
O ideal seria os estados investirem na ampliação dos CAPS-AD, que prevêem, inclusive, intervenções familiares e sobre a comunidade, superando a lógica medicalizadora que reduz problemas sociais a patologias de indivíduos. Lembremos que a reforma psiquiátrica está prevista em lei no Brasil (10.216), que prevê a redução progressiva de leitos de internação psiquiátricos e sua substituição por serviços de base territorial e comunitária tal como também previsto na lei 8.080.
Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e membro do conselho do Cebes
A internação compulsória apresentada como panaceia é perigosa, pois tem poder midiático, grande apoio da população e de familiares de dependentes, o que respalda o governante na decisão equivocada que está tomando. Há um certo cinismo também, ao apresentar a compulsória como substitutiva de uma rede assistencial de saúde mental ainda incompleta e sucateada. Por descaso de gestores e ausência de controle social, rasgou-se mais uma vez uma legislação duramente conquistada.
Desde 2002, temos a lei que criou os CAPS-AD, os centros de Atenção Psicossocial para álcool e drogas, que deviam inclusive ter leitos de assistência 24 horas. Pois até hoje contamos nos dedos essas unidades. Se tivéssemos uma rede assistencial forte e humanizada, a discussão da internação compulsória e involuntária estaria ocorrendo em outros patamares, no campo da excepcionalidade, como deve ser. Culpar o doente (no caso, o dependente químico) pela própria doença, pegá-lo a força, estigmatizar, segregar e isolar é um filme que já vimos antes, e foi desastroso. Isso aconteceu, por exemplo, no inicio da epidemia da aids. Os usuários de crack hoje são como os doentes de aids dos anos 80. Além de ineficaz do ponto de vista clínico e epidemiológico, é um sequestro da cidadania seguido de morte civil dos indivíduos, é a morte antes da morte.
Antonio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)
O Governo de São Paulo lançou uma cruzada pela internação compulsória em massa de usuários de crack que hoje vivem nas ruas. A intenção é boa e a iniciativa demonstra um primeiro interesse do Estado em resolver a questão. No entanto, cabe avaliarmos se esta política de internação compulsória é a mais adequada para o momento ou a que melhor aproxima do ideal. Há uma necessidade premente de que as autoridades se responsabilizem pelos doentes mentais.
O débito do Estado junto a esta população é gigantesco. O dependente de crack, muitas vezes, é portador de algum transtorno mental e carece, antes de qualquer coisa, de atendimento médico. Se a internação compulsória for apenas o início de um processo de tratamento para aqueles que precisam de atendimento e não tem, aí sim temos uma iniciativa correta por parte do Governo, “arrumando” o desastre que deixaram acontecer.
No entanto, vale ressaltar que a internação requer indicação médica, quer seja voluntária, involuntária ou compulsória. Caso contrário, a iniciativa não passaria de uma “limpeza urbana”, uma triste eugenia. Para a ação ser efetiva, é preciso que haja uma indicação médica, como manda a Lei 10.216.
No entanto, se a premissa é a saúde da população, trata-se de uma excelente ação do Estado que, inclusive, não deve ficar restrita aos dependentes químicos de crack, mas também a outras dependências e a outros Transtornos Mentais. Há uma enormidade de moradores de rua portadores de esquizofrenia e outras Psicoses, e que não tem acesso a tratamento, lamentável efeito colateral do fechamento ideológico de leitos hospitalares em psiquiatria, na contramão do bom senso que deveria ser: qualificar profissionais e serviços, oferecer melhores condições de atendimento à população. Se assim fosse, a internação compulsória seria apenas um porta de entrada de um plano de tratamento de maior duração e complexidade, como acontece em outras grandes cidades do mundo.
Como será a avaliação e acompanhamento, daqui a seis meses, dos dependentes em crack retirados das ruas de São Paulo esta semana? Este parece o ponto central e, o que é pior, ainda sem respostas. Como médicos, ficamos preocupados em entender qual o protocolo de tratamento a ser seguido. Em outras palavras: quais as diretrizes de tratamento que usarão para os dependentes químicos do crack?
A Associação Brasileira de Psiquiatria já se colocou à disposição de todo e qualquer governo que deseje tratar do assunto do ponto de vista clínico e não midiático. Nunca surtiu efeito. Não cabe a nós, médicos, ficarmos contra ou a favor a qualquer tipo de internação. Como médicos, o que nos cabe é indicar a internação quando necessária e, a partir daí, buscarmos o acesso ao melhor tratamento, conforme diz a Lei 10.216. O foco da ação não pode ser redução de violência ou diminuição irrisória de usuários. A meta do Estado deve ser acompanhamento pleno de dependentes químicos ou de qualquer outro que padeça de transtorno mental, pelo tempo que precisarem.
Túlio Batista Franco, Psicologo, Professor Doutor da Universidade Federal Fluminense
A internação compulsória não é indicada para o tratamento a usuários do crack porque não atende aos pressupostos necessários para o sucesso no cuidado, qual seja: o acolhimento dos usuários, o que significa fazer uma escuta qualificada da sua história, se oferecer em ajuda sem o julgamento moral, estabelecer uma relação de confiança mútua; o estabelecimento de vínculo do trabalhador de saúde com o usuário, o que significa construir para e com ele uma referência segura de contato e ajuda para o cuidado, confiança mútua que permita negociar os modos de andar a vida, porque só isto permitirá que se efetue o 3o pressuposto; o estabelecimento de projetos terapêuticos pactuados, capazes de reduzir e/ou eliminar o consumo, sem necessariamente impor alguma destas possibilidades, mas entendê-las como efeito da relação entre ambos, trabalhador de saúde e usuário.
A internação compulsória trabalha centrada na única ideia da abstinência, e, sendo assim, deixa de usar dispositivos de cuidado como a redução de danos, que significa não apenas a oferta de um consumo alternativo, mas se trata da possibilidade de promover um encontro entre trabalhador e usuário, e através do encontro estabelecer relação, vínculo, pactuar novos projetos terapêuticos. A questão central que se coloca é a de ativar no usuário o desejo de se cuidar, a vontade para a vida, coisas que a internação compulsória como ato de violência não consegue realizar, pelo contrário, torna o usuário um sujeito sem desejo, porque submetido a um regime de coerção.
O objetivo central de um projeto terapêutico centrado no usuário, é o de criar nele mesmo uma vida de não consumo do crack, mesmo convivendo em um meio onde há oferta da droga. Essa potência de vida só é possível mediante processos guiados pela sua vontade e necessidade. Diante da notória taxa de insucesso da internação compulsória no tratamento a usuários de crack, com índices de recaídas acima de 95%, fica claro o insucesso desta política, além da sua violência e ilegalidade.
Há alternativas de sucesso no controle ao uso do crack e outras drogas, fora e dentro do Brasil, que não usam internação compulsória, e apostam na constituição de redes de atenção psicossocial, com vários e inovadores dispositivos de cuidado, como consultórios na rua, facilitação de acesso aos serviços clínicos da rede de atenção, ambulatórios, arte-terapia, educação, etc… Uma questão estruturante destas ações é a descriminalização do uso de crack e outras drogas, o que torna os usuários mais seguros para buscarem ajuda, facilitando todos aspectos de contato da equipe de trabalhadores com os mesmos. Banir a internação compulsória da política de controle de crack é uma medida necessária para o estabelecimento de um foco mais produtivo de cuidado a esta população.
Ana Costa, Médica, Doutora em Ciências da Saúde e Presidenta do Cebes
A epidemia do crack é hoje uma questão complexa que deve ser tratada de forma intersetorial, envolvendo desde o combate à venda da droga ao tratamento e apoio aos usuários e suas famílias. Uma política adequada deve ter como princípio e diretriz a preservação dos direitos humanos básicos e a garantia da presença do Estado na oferta de alternativas de inserção social para as pessoas e famílias envolvidas.
A saúde mental sempre foi um campo de exploração e lucro descabido do setor privado da saúde e aqui nesta trágica epidemia do crack, mais uma vez, estão envolvidos os interesses destes grupos. A internação compulsória definitivamente não parece ser uma alternativa eficaz pelo fato sobejamente evidenciado de que, o sucesso de um tratamento de adição depender diretamente do desejo e da vontade do adicto em se curar. E, na ausência de outros mecanismos de apoio e reinserção social e familiar dos indivíduos, o mais provável para estas pessoas será o caminho de volta à rua e à droga.
É preciso uma consciência e mobilização da sociedade nacional assumindo a responsabilidade coletiva sobre o problema do crack no país. Mas é também necessária uma forte presença do Estado na adoção de uma política ampla, intersetorial com a oferta de serviços adequados para o enfrentamento do problema.
Paulo Amarante, Diretor de Política editorial do Cebes e Coordenador do Grupo Temático de Saúde Mental da Abrasco e Luis Eugenio de Souza, Presidente da Abrasco.
A internação compulsória não pode ser executada sem os cuidados de caráter clínico e de direitos que a lei estabelece. É necessário investir em uma política de Estado que seja sólida, permanente e consistente, e não em medidas imediatistas e paliativas, talvez inspiradas por interesses outros que não o verdadeiro cuidado e tratamento das pessoas com dependência química. Vale registrar que o fracasso do tratamento calcado nas internações compulsória e involuntária (estima-se que m ais de 90% destes internados buscam imediatamente a droga logo após a alta) é atribuído exatamente à falta de criação de vínculo entre o usuário e o profissional de saúde, somada, é claro, ao não desejo de se tratar.
A alternativa a medidas isoladas e de pouca eficácia terapêutica, como a internação compulsória, é a constituição de redes de atenção à saúde mental, coordenadas pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). A experiência brasileira tem demonstrado a efetividade dessa estratégia, que se deve, fundamentalmente, à criação de vínculo entre a pessoa em tratamento e a equipe de saúde.