Interesses privados abocanharão saúde do Recife?
O plano da prefeitura de Recife para conceder os serviços de atenção primária em saúde a uma PPP tem suscitado críticas e preocupações de especialistas, incluindo integrantes do Cebes, como Itamar Lages, do núcleo local. A proposta prevê que 41 unidades de saúde da família sejam construídas e operadas pela iniciativa privada.
Especialistas, como a pesquisadora Lígia Giovanella e o presidente do Cebes, Carlos Fidelis, questionam a eficácia e apontam possíveis impactos negativos, como aumento da desigualdade no atendimento e desvio de recursos públicos para interesses privados. Lideranças sanitaristas locais expressam preocupação com a alienação de bens públicos e a possibilidade de multinacionais priorizarem interesses financeiros sobre a qualidade dos serviços.
O apoio do BNDES à PPP contradiz o compromisso verbal do governo federal com a fortificação do caráter público dos serviços essenciais, gerando um cenário desafiador entre interesses sociais e privados pelo orçamento público. A PPP, prevista para ser aprovada em dezembro de 2023, coloca em destaque a velocidade do processo, com o leilão planejado para o primeiro semestre de 2024, suscitando preocupações sobre a devida avaliação e participação pública.
Veja a seguir o texto de Guilherme Arruda publicada originalmente no portal Outra Saúde.
Prefeitura propõe PPP para serviços de atenção primária – e projeto pode até receber financiamento do BNDES. Pesquisadores e ativistas são unânimes: em nenhum lugar do mundo concessões melhoraram eficiência e cobertura da Saúde
No fim do ano passado, a prefeitura de Recife (PE) trouxe a público um plano insólito para a saúde do município: a concessão dos serviços de atenção primária em saúde (APS) a uma parceria público-privada (PPP). O projeto prevê que 41 unidades de saúde da família (USFs) sejam construídas, ampliadas e operadas pela iniciativa privada. No mês passado, foram concluídos os estudos técnicos que subsidiarão os argumentos privatistas do prefeito João Campos (PSB) – e tudo indica que o leilão deve ser marcado ainda para o primeiro semestre de 2024.
O projeto de PPP tem levantado questionamentos de especialistas. A professora Lígia Giovanella, pesquisadora da Fiocruz e membro do comitê coordenador da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), aponta que, historicamente, a concessão e a privatização não garantiram nem mais eficiência do serviço e nem ampliação da cobertura, diferentemente do que alega a prefeitura. Já o presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) Carlos Fidelis, em edição recente do Cebes Debate, externou pelo menos três preocupações: a possibilidade de elevação da desigualdade no atendimento, o dreno de recursos públicos para bolsos privados e a ausência de controle social.
Não menos críticas da proposta são as lideranças do movimento sanitarista local. Em entrevista a Outra Saúde, o diretor do Cebes Recife e professor de enfermagem da Universidade de Pernambuco (UPE) Itamar Lages rechaça a “alienação de bens públicos por 20 anos”, tempo previsto para a concessão das USFs. Além disso, ele ressalta que o leilão provavelmente entregará os equipamentos para “empresas multinacionais, mais interessadas no mercado de ações e na financeirização” da saúde do que na prestação de serviços de qualidade – um município vizinho, Jaboatão dos Guararapes, fala abertamente de “atrair o interesse de investidores internacionais” para seu próprio projeto de privatizar a saúde.
Contraditoriamente ao compromisso verbal do atual governo federal com o fortalecimento do caráter público dos serviços essenciais, a PPP conta com o apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A concessão da APS recifense está inclusive exposta no portal Hub de Projetos, ligado ao banco estatal. A disputa entre os interesses sociais e privados pelo orçamento público promete ser dura.
O cenário pernambucano
Segundo a apresentação do projeto disponibilizada em um site da Secretaria Executiva de Parcerias Estratégicas do Recife, a empresa que ganhar a concessão ficará responsável pela construção ou ampliação das 41 USFs, bem como por todos os serviços não-assistenciais durante duas décadas – da administração à limpeza, da recepção à vigilância. O BNDES, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a International Finance Corporation, ligada ao Banco Mundial, são indicados como “coordenadores” do projeto de concessão.
Se a intenção de fazer a PPP estava anunciada desde 2022, só nos últimos meses deste ano é que o plano ganhou fôlego. No cronograma da prefeitura, depois de pouco mais de um mês de audiências e consultas públicas encerradas em novembro último, o edital e o leilão já devem ser celebrados no primeiro semestre de 2024 – e o contrato, assinado antes do fim do próximo ano.
Lages aponta que o governo João Campos conta com um “trunfo” nesse processo-relâmpago: a provável aprovação da PPP pelo Conselho Municipal de Saúde, em reunião marcada para o dia 14/12. Não foram poucos os esforços empregados para angariar votos – o poder público levou conselheiros para Belo Horizonte, onde conheceram o modelo de concessão que inspirou o projeto, e prometeu aos representantes dos trabalhadores da saúde a abertura de novos concursos, ele relata.
Em paralelo, outras cidades do estado de Pernambuco também pretendem privatizar a saúde: Jaboatão dos Guararapes, vizinha à capital, é uma delas. No ano passado, durante a gestão do prefeito bolsonarista Anderson Ferreira (PL), o município assinou um contrato de R$750 milhões também com a International Finance Corporation – e igualmente com apoio do BNDES – para organizar uma PPP responsável pela construção e gestão de várias USFs. As consultas públicas e audiências estão marcadas para dezembro e janeiro.
O diretor do Cebes Recife questiona o discurso, muito repetido pelos gestores, de que a concessão não seria uma forma de privatização – ladainha neoliberal repetida desde os anos 1990. “O fato de só privatizar as atividades-meio para eles não tem nada a ver, não seria privatização. Mas quando alguém está cuidando de um conjunto de ações que são de responsabilidade da secretaria de Saúde não é privatização? Dinheiro público será entregue a essas empresas”, ele aponta.
Na última semana, se opondo a esse avanço da PPP, movimentos sociais lançaram uma carta aberta à prefeitura em que se colocam “em defesa do caráter público da atenção básica à saúde no Recife”. Eles avaliam que o modelo das Organizações Sociais (OSs), forma mais comum de celebrar PPPs na saúde, é “fonte inesgotável de corrupção, caro e não resolve os problemas que precisam ser enfrentados”.
Para os movimentos, medidas como “recuperar o financiamento e direcionar o investimento, retomar e adequar as diretrizes de qualificação da APS, investir nas políticas de pessoal e de formação, avançar nas mudanças das práticas de cuidado e atenção, envolver toda a população e equipes em diálogo aberto e democrático”, nos marcos de um SUS 100% público, é que poderiam enfrentar, pela positiva, a crise da saúde.
O Cebes, a Abrasco, a Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (Aneps), o Coletivo de Professores de Residências em Saúde, o Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social (CENDHEC), a Rede Solidária em Defesa da Vida (Rede Sol/PE), o SOS Corpo – Instituto Feminista para Democracia e a Associação Brasileira de Médicos e Médicas pela Democracia (ABMMD) são alguns dos grupos que assinaram a missiva.
Em resposta à movimentação, na tarde da última quarta-feira (6/12), a Secretaria de Saúde do Recife, na figura de sua titular Luciana Albuquerque, promoveu uma reunião com os movimentos de saúde da cidade para dialogar sobre o projeto. Dela, Lages saiu com a impressão de que a “a prefeitura está decidida e com a convicção de que nenhuma crítica vai demovê-los do processo”.
Mas as experiências nacionais e internacionais sugerem que tanto as autoridades de Recife quanto de Jaboatão dos Guararapes deveriam ter mais cautela antes de entregar a Saúde em mãos empresariais.
No Brasil e no mundo, concessões falham
Autora de inúmeros estudos sobre o tema, que podem ser encontrados nos portais da Fiocruz e da Escola Nacional de Saúde Pública, Lígia Giovanella apresentou no programa Cebes Debate do dia 27/11 os problemas da “privatização e mercantilização da atenção primária da saúde”. Para ela, existem “robustas evidências de que um sistema público, gratuito e de qualidade”, quando possui como pilar estruturante uma APS forte, “é superior em qualidade e eficiência”.
A Itália traz um exemplo ilustrativo, segundo Ligia. O sistema público de saúde do país, o Servizio Sanitario Nazionale (SSN), foi uma das inspirações para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro – porém, nos anos 1990, a prestação de cuidados de saúde por entes privados passou a ser permitida nos marcos do SSN. Um estudo no Journal of Epidemiology and Community Health concluiu que essa flexibilização teve resultados desanimadores: nas regiões onde o orçamento da Saúde caiu em mãos privadas, houve mais mortes evitáveis. Por outro lado, regiões que priorizaram o fortalecimento do caráter público do serviço viveram reduções mais rápidas do mesmo índice.
Similar é o caso da Inglaterra, também citado pela sanitarista. No ano de 1997, durante o governo do neoliberal Tony Blair, o National Health Service (NHS) passou a subcontratar serviços a empresas com fins lucrativos – processo que se aprofundou após a aprovação do Health and Social Care Act, em 2012, que facilitou essa terceirização. Desde então, conta um estudo do The Lancet, “um aumento anual de 1% no outsourcing para o setor privado significou um aumento anual de 0,38% nas mortes por causas tratáveis”.
Os resultados foram tão negativos para os serviços de cuidado que novas “PPPs” na saúde inglesa foram interrompidas em 2018 – mas os pagamentos seguem até 2050, já que os acordos com os empresários parecem não poder serem quebrados em nome do bem-estar público. Com efeito, o desmonte privatista está desmantelando a saúde do Reino Unido, como noticiou Outra Saúde em outra oportunidade.
Na verdade, lembra Giovanella, não é preciso nem mesmo sair do país para testemunhar as insuficiências das parcerias público-privadas: a experiência com as Organizações Sociais (OSs) é reconhecidamente marcada pela desorganização e pelo descaso. Em São Paulo, desrespeitos com os trabalhadores da saúde – no Rio, a cobertura da população pelas equipes de Saúde da Família chegou a cair de 70% para 47%. Este é o sistema que Recife pretende adotar.
Privatizações vem de longe
Caso o projeto das 41 Unidades de Saúde da Família entre em vigor, a saúde se tornará companheira da educação, da habitação e dos esportes na onda de concessões ao setor privado em Recife: o prefeito João Campos, eleito em uma campanha marcada pelo discurso anti-esquerda, está promovendo PPPs em todas as áreas.
Mas é importante lembrar que o cenário de privatização dos serviços públicos brasileiros, que não se restringe a Recife ou Jaboatão e acaba de alcançar a Sabesp, não ocorre por simples convicção neoliberal dos mandatários: como frisaram Giovanella e Fidelis no Cebes Debate, nos marcos das reformas do Estado promovidas por Bresser Pereira e FHC nos anos 1990, os gastos dos governos municipais e estaduais ficaram comprimidos, quase criminalizados, por mecanismos como a Lei de Responsabilidade Fiscal – e seus gestores acabam induzidos às privatizações e concessões como caminho de menor resistência.
No sentido contrário vai a proposta dos movimentos sociais, de valorização dos trabalhadores e do caráter público do SUS, sintetizada na carta entregue à Secretaria de Saúde recifense. Mas sem a revisão geral das deformações neoliberais do Estado impostas há 30 anos, algo que não parece estar à vista em um cenário do BNDES financiando PPPs, a pressão popular pode ser meramente paliativa nesse processo.
Veja matéria de Guilherme Arruda na íntegra também no portal Outra Saúde.