#precisamos falar sobre aborto
Por Natacha Cortêz, da Revista TMP.
É noite de feriado prolongado na cidade de São Paulo. Insone, B. recapitula em sua cabeça as orientações que um aplicativo de mapas lhe deu. Metrô até a avenida Paulista, ônibus até um bairro nobre da zona sul e uma caminhada de 10 minutos. Ainda naquela noite, ela planejou que no dia seguinte acordaria às 7 horas pra chegar pontualmente às 10 no lugar marcado, uma clínica de ginecologia. Feito. Antes das 13 estava no ônibus de volta, a caminho de casa. Com ela, a certeza: “Tinha de novo minha liberdade”. Aos 29 anos, com pouco mais de dez semanas de gestação e “R$ 4 mil em dinheiro vivo”, B. fez um aborto. Ilegal, no seu caso. Para a legislação brasileira, só têm direito a aborto mulheres que engravidaram por causa de estupro, ou se existe algum risco de vida à mãe ou se ficar comprovado que o feto é anencéfalo – essa, uma decisão de 2012 do Supremo Tribunal Federal. Nenhuma das situações era a de B. Ela só não se via como mãe, e teve o azar de seu método contraceptivo falhar. Usava o DIU há pelo menos 2 anos quando engravidou. Para mulheres como B., no Brasil, não existem alternativas a não ser os serviços clandestinos e a confiança no desconhecido.
A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada pela antropóloga Debora Diniz e pelo sociólogo Marcelo Medeiros em 2010, é uma das mais recentes e importantes sobre o assunto. Feita na Universidade de Brasília em parceria com a organização ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero –, a pesquisa virou referência para a Organização Mundial de Saúde. E revela: mais de uma em cada cinco mulheres entre 18 e 39 anos de idade já recorreu a um aborto na vida. Dados da OMS vão além: atestam que o número de abortos ilegais ultrapassa 1 milhão por ano no Brasil. Ainda assim, o código penal prevê punição de um a três anos de cadeia a gestantes que realizem o procedimento.
Está claro: nem a interdição legal (ou a proibição religiosa) impede essas mulheres de interromper suas gestações quando isso é necessário. Mas a maneira como cada uma delas resolve a questão pode ser muito diferente. Para Rosângela Talib, psicóloga e coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, que há 20 anos luta pelos direitos reprodutivos e sexuais da população, tudo depende basicamente da classe social e do poder econômico de cada mulher. “As políticas de criminalização do aborto criam um recorte cruel, e só fazem com que brasileiras pobres se submetam a abortos inseguros, em condições insalubres. Quem tem dinheiro consegue pagar por serviços que, mesmo ilegais, são mais seguros e, logo, têm menos riscos.”
Sem o cuidado e a regulamentação da lei, o aborto clandestino ganha pernas próprias e anda de acordo com a vontade de profissionais que aceitam atender em condições de criminalidade – ou com a coragem de mulheres que realizam a interrupção através de métodos caseiros. A PNA diz que o método mais comum são os medicamentos que provocam o abortamento do embrião. A pesquisa não identifica quais os utilizados, mas sugere que entre eles o Misoprostol – nome do princípio ativo do Cytotec – seja o mais difundido. Acontece que, mesmo quando um aborto começa de forma aparentemente simples, com a ingestão de comprimidos, o caráter caseiro do procedimento não traz garantias pra quem o faz.
“Sem a descriminalização, será impossível regulamentar o aborto e evitar que continue sendo o que já é: um método anticoncepcional maluco, perigoso para os pobres, menos perigoso para os ricos, mas traumático para todos” Contardo Calligaris, psicanalista e escritor
Um estudo feito pelo Instituto do Coração (InCor) com base em dados do Datasus de 1995 a 2007 revela que a curetagem – procedimento necessário quando existem complicações após um aborto – foi a cirurgia mais realizada no Sistema Único de Saúde no intervalo de tempo avaliado, com 3,1 milhões de registros. Em seguida vieram correção de hérnia (com 1,8 milhão) e retirada da vesícula (1,2 milhão). Ainda no SUS, em 2013, foram 205.855 internações decorrentes de abortos, sendo 154.391 por interrupção induzida.
Ou seja, a rede pública de saúde tem pagado a conta por tantos procedimentos clandestinos. “Temos um gasto enorme não só porque o SUS precisa tratar a mulher que vem de um aborto inseguro, mas também precisa tratar as sequelas que um procedimento malfeito pode deixar. Problemas de ordem reprodutiva. Lesões nos órgãos genitais, infecções, hemorragias e perfurações no útero são alguns”, diz Thomaz Gollop, médico geneticista do Hospital Israelita Albert Einstein e coorde nador do Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA).
A insalubridade, a falta de segurança e o medo guiam a mulher que precisa interromper uma gravidez. Sim, o termo é precisar. “O aborto é sempre o último recurso. Nunca é feito sem dor e sofrimento, não se trata de um gosto ou de uma frivolidade”, afirma Rosângela, que recebe no escritório das Católicas mensagens de socorro, escritas por mulheres que já não sabem o que fazer e veem o aborto como a única saída. Um estudo da ONG aponta que 83% delas se dizem cristãs, mas não menos aflitas.
A pesquisa PNA também encontrou um retrato comum entre as mulheres que decidem por um abortamento. “Ela usa métodos contraceptivos regularmente. É religiosa e, muitas vezes, mãe de família. Está no mercado de trabalho. Insistimos na caricatura de que ela é ‘promíscua com incontáveis parceiros’ para sustentar o tabu. Erramos. Ela é sua mãe, minha irmã, a menina que trabalha com você”, esclarece Debora Diniz.
Márcia Tiburi, filósofa que já escreveu muito sobre o assunto, garante: o discurso antiaborto ajuda na construção desse tabu. E faz isso porque se mascara como um argumento “do bem” defendendo “a vida” (do embrião) quando, na verdade, é uma tentativa de controlar o desejo feminino.
Sobre esse controle do desejo feminino, o juiz criminal e professor de direito penal da PUC de Campinas (SP), José Henrique Torres concorda com Márcia. “A criminalização do aborto não tem nada a ver com a proteção do feto. Ela é, na verdade, o controle da sexualidade feminina. Em pouquíssimos casos a polícia instaura um inquérito contra quem pratica o autoaborto. Embora essa criminalização quase não acarrete prisões, ela é uma ameaça constante sobre qualquer mulher.” Torres faz parte de uma Comissão Especial de Juristas que luta pela mudança no código penal brasileiro defendendo a descriminalização do aborto.
“Estamos diante de um fato: no Brasil as mulheres morrem por abortos malfeitos há décadas. Nós, como sociedade, pretendemos continuar cúmplices dessa mortandade?” Marília Gabriela, jornalista e apresentadora
O Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), coordenado no Brasil pela advogada Gabriela Ferraz, acabou de fechar uma parceria com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo. O objetivo é mapear quem são as mulheres presas no país por autoaborto e prestar assessoria jurídica gratuita a elas. “Comparado a outros crimes, como o tráfico de drogas, o autoaborto tem um número baixo de registros policiais. Mas, sim, existe mulher presa e existe mulher que está respondendo a processos”, afirma. Gabriela reforça que até na penalização existe o recorte social e econômico: quem cumpre pena é a mulher pobre. “É um crime que admite uma série de benefícios. Fiança é um deles. Mas os valores são absurdos. Acompanhei o caso de uma fiança de R$ 10 mil para uma empregada doméstica. Ela não pode pagar o valor, e hoje está em regime semiaberto.”
Caso de polícia
Dois crimes envolvendo aborto ganharam ampla cobertatura na mídia. As mortes de Elisângela Barbosa e Jandira Magdalena dos Santos Cruz foram hipernoticiadas, o que é raro quando se trata de ocorrências assim.
Elisângela se enquadrava no perfil encontrado pela PNA. Dona de casa, 32 anos, morava em São Gonçalo (RJ) com o marido e três filhos. Estava grávida de quatro meses e apavorada por não poder arcar com mais uma criança. Saiu de casa em um sábado do último setembro com R$ 2.800 para realizar um aborto em uma clínica clandestina. No domingo à noite, a família recebeu uma ligação avisando que ela estava internada. Elisângela não resistiu a um sangramento no útero e morreu. Na necropsia, legistas encontraram um tubo plástico em seu útero.
Jandira, também do estado fluminense, teve a mesma sentença. Nem o dinheiro – ela saiu de casa com R$ 4.500 – a protegeu. Aos 27 anos, seu corpo foi encontrado mutilado e carbonizado dentro de um carro na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Antes disso, Jandira estava desaparecida há semanas. Em uma última conversa com sua mãe, avisou que faria um aborto. Maria Ângela, a mãe, disse à imprensa que a filha estava com 12 semanas de gestação e que teria decidido abortar por “desespero”. A vítima era mãe solteira e deixou duas filhas órfãs.
O tom sensacionalista e criminal dado aos casos entorta a realidade. “Ninguém lembrou que, se encontrada viva, Jandira teria sido algemada e presa. É assim que uma mulher como ela deve ser tratada?”, argumenta Marcelo Freixo, deputado estadual no Rio de Janeiro.
Freixo é autor de dois projetos de lei sobre aborto (um defendendo que o serviço de aborto legal seja fiscalizado e cumprido no estado do Rio de Janeiro, onde ele atua; outro tentando travar o Estatuto do Nascituro, projeto de lei que representa grandes retrocessos na questão). Mas a aprovação deles sempre encontrou entraves. “Não consegui avançar com nenhum porque a casa legislativa se incomoda com o assunto.” Para o deputado, as mortes no Rio não foram tratadas pela imprensa com o viés de direitos humanos, mas sim policial. “A imprensa estava interessada em encontrar os assassinos. Focam nisso e ignoram o debate sobre o problema de saúde pública que temos”, critica. Freixo defende uma mudança no tom do discurso. “O debate carece de um olhar pedagógico. É necessário alertar a população sobre os dados, sobre as mortes, sobre o sofrimento dessas mulheres, e parar com o julgamento moral.”
“Condenar uma criança a crescer onde não a querem por pena de um embrião: não é um contrassenso?” Antônio Prata, escritor
É em busca dessa mudança de tom que a roteirista carioca Renata Corrêa foi atrás de histórias de aborto e clandestinidade para criar um documentário. Clandestinas (disponível no YouTube) traz atrizes interpretando relatos reais e foi uma experiência que Renata descreve como “chocante”. “Fui além do aborto ‘confortável’ da classe média que me cerca, aquele feito em clínicas limpinhas, com médico e enfermeira de verdade. Ao encontrar mulheres pobres, deparei com uma realidade de açougue e com pessoas que carregavam consigo o silêncio eterno por culpa e medo.”
A jornalista Eliane Brum, codiretora do documentário Uma história Severina, que narra o caso de uma agricultora nordestina em sua luta (na Justiça e no sistema público de saúde) para interromper uma gestação de bebê anencéfalo, diz que o tratamento da questão do aborto no Brasil revela a face criminosa da nossa hipocrisia. “São mesmo as mulheres pobres as que mais sofrem, porque precisam da rede pública para ampará-las em sua decisão e garantir que possam interromper a gestação em condições seguras”.
Dados do Ministério da Saúde ilustram melhor a cena: a cada dois dias uma brasileira “pobre” morre em decorrência de um aborto clandestino. É ele, ainda, a quinta causa de morte materna no país.
Em 56 países o aborto é permitido sem nenhuma restrição e sua legalidade varia de acordo com o tempo gestacional. Na França ele é legal desde 1974. No Uruguai, que descriminalizou o aborto em outubro de 2012, a mulher que não deseja levar a gravidez adiante pode interrompê-la até a 12ª semana. Em Cuba, desde 1965, a prática é legal até a décima semana de gestação. Na Suécia, é possível optar pela interrupção até a 18ª semana. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina defende a legalização até a 12ª semana. Em declaração recente para o jornal Folha de S.Paulo, o presidente do órgão, Roberto Luiz d’Avila, disse que nesse período “o risco para a gestante é menor e o sistema nervoso central do feto não está formado”. Porém, nem mesmo entre os Conselhos há um concenso, alguns dos Regionais são contra o posicionamento do CFM.
“Dogmas religiosos insistem que um embrião é mais importante que uma mulher adulta. É a eterna tentativa de controlar o corpo feminino. Chega! Vamos nos libertar!” Lola Aronovich, professora
Luciana Genro, candidata à presidência nas últimas eleições pelo PSOL, foi, ao lado de Eduardo Jorge (PV) e Zé Maria (PSTU), quem abertamente defendeu a descriminalização da prática, alegando que este é um problema de saúde pública e de direitos humanos e reprodutivos. A presidente eleita Dilma Rousseff (PT) e seu adversário Aécio Neves (PSDB), quando questionados, declararam que a lei deveria ficar como está.
Marina Silva (PSB) falou em plebiscito – ideia que os especialistas rechaçam. “É uma questão de âmbito privado. Legalizar não significa obrigar ninguém a fazer. A decisão seria de cada uma das mulheres”, afirma Thomaz Gollop.
Em julho de 2013, Juliano Alessander e Kauara Rodrigues, junto com o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), publicaram o Mapa do Fundamentalismo no Congresso Nacional. Ali, estão apontadas proposições legislativas em curso com a intenção de criminalizar qualquer tipo de aborto. A PL 5.069/2013, de autoria do deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), “tipifica crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas a quem induz a gestante à prática do aborto”; um Projeto de Decreto Legislativo, do deputado Henrique Afonso (PV/AC), pretende sustar a Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes, e propõe que a vítima de estupro seja obrigada a ter o filho de seu agressor.
Silêncio ensurdecedor
Há muitas outras propostas e ao menos 31 delas sugerem retrocessos graves à legislação em curso – como transformar a interrupção da gestação em crime hediondo; pagamento de pensão pelo Estado para crianças concebidas através de violência sexual, caso o estuprador não possa arcar com ela ou não seja identificado (apelidado de Bolsa-estupro); acabar com a distribuição da pílula do dia seguinte.
Nesse contexto, não é de estranhar que não exista nenhum projeto de lei que de fato tenha avançado em relação à descriminalização do aborto. “Não existe espaço para debater aborto de forma progressista no Congresso hoje. E a bancada religiosa não é a única culpada, o restante também se abstém da questão”, afirma Manuela D’Ávila, eleita deputada estadual no Rio Grande do Sul e prestes a encerrar seu mandato de deputada federal em Brasília.
No poder executivo, a ausência de qualquer debate é ainda mais frustrante. Mesmo contando com um ministério dedicado exclusivamente às questões femininas – a Secretaria de Políticas para as Mulheres, criada em 2003, no governo Lula – e ainda sendo a atual ministra, Eleonora Menicucci, uma histórica defensora da legalização do aborto e ex-integrante do GEA (Grupo de Estudos sobre o Aborto), o assunto parece fora da pauta do Planalto. Procurada pela reportagem da Tpm, a assessoria de imprensa da Secretaria alega, há meses, “impossibilidade de agenda”: a ministra está sem tempo para falar do assunto. O fato é que seu silêncio – assim como o da presidente reeleita – sobre a questão, tão fundamental para as mulheres brasileiras, é ensurdecedor.
DESCRIMINALIZE JÁ!
Participe da Campanha! Baixe o cartaz aqui, faça uma foto segurando a imagem que abre esta matéria e poste em suas redes sociais na quarta-feira, dia 19 de novembro. Não esqueça de usar a hashtag #precisamosfalarsobreaborto. Veja quem já aderiu ao manifesto:
Fonte: Revista TPM