Primeira edição especial de 2021 da Saúde em Debate homenageia as mulheres
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EDITORIAL
A relevância acadêmica, social e política da produção de conhecimentos sobre mulheres nas ciências e na saúde
Claudia Bonan1, Cristina Araripe2, Roberta Gondim3, Simone Kropf4
1 Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF), Programa de Pósgraduação em Saúde da Criança e da Mulher – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. cbonan@globo.com
2 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Vice-presidência de Educação, Informação e Comunicação (VPEIC), Coordenação de Divulgação Científica – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
3 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), Departamento de Planejamento e Administração em Saúde (Daps) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
4 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
O NÚMERO ESPECIAL ‘MULHERES, CIÊNCIAS E SAÚDE’ foi construído a partir de muitos olhares e contribuições de autoras e autores de diferentes áreas do conhecimento, que se somaram para trazer novas e distintas perspectivas de análise. A pertinência e a relevância social, política e científica desse tema têm sido enfatizadas no contexto crescente de debates sobre a atuação de mulheres na produção de conhecimentos, com destaque aos estudos feministas e de gênero, em articulação com práticas e pesquisas em saúde.
Para além das pesquisas sobre a participação das mulheres na ciência – crescente, contínua e persistente –, os problemas tratados nos trabalhos reunidos neste número abrangem discussões sobre a formação e os modos de inserção profissional das mulheres na saúde, suas trajetórias e carreiras, os aportes acadêmicos e significados dessa produção científica tão fortemente marcada, entre outras razões, pela agência e potência feminina como consciência coletiva. Trata-se de uma produção que atravessa e expressa ações e lutas pela equidade de gênero e, em particular, por garantias de direitos, liberdade de escolhas e fim da invisibilidade do trabalho. Assim, nós, mulheres, vamos nos organizando para promover e divulgar reflexões críticas sobre marcadores sociais das diferenças que permeiam espaços sociais, incluindo os acadêmicos1.
A profícua literatura existente no campo de estudos sobre ciência e gênero aponta, incessantemente, para o sentido fundamental dos esforços coletivos que procuram não apenas ampliar e consolidar os debates cada vez mais intensos sobre feminismos, desigualdades de gênero e produção de conhecimentos, mas também sobre as formas de enfrentamento de retrocessos, anacronismos e barbáries que não cessam de nos indignar no tempo presente2-5. Nesse sentido, as lutas contra as iniquidades que estão presentes nas sociedades patriarcais, sexistas, racistas e homofóbicas com as quais temos que lidar são urgentes6.
As ciências, na era moderna, em seus postulados teóricos, esquemas conceituais, métodos e práticas, contribuíram sobremaneira para uma representação da diferença sexual e uma ordem de gênero que, perpassando dimensões simbólicas, normativas e institucionais, foram profundamente injustas com as mulheres. Como enfatizou a historiadora Ana Paula Vosne Martins7(23), citando a cientista e teórica feminista Evelyn Fox Keller,
[…] as associações de gênero estão presentes na formulação da linguagem científica, não como ornamentos ou recursos estilísticos, mas como elementos formadores da estrutura ideológica das ciências com implicações práticas.
As mulheres não somente foram excluídas, subalternizadas e/ou invisibilizadas como também foram consideradas objetos problemáticos das ciências, que insistiam em indagar ‘o que é uma mulher?’, na busca por desvendar e controlar o corpo feminino e estabelecer seus papéis na sociedade.
Na contemporaneidade, a produção de conhecimento regida pelos cânones da ciência ocidental moderna eurocêntrica e operada sobre as bases do neoliberalismo e da colonialidade tem raça/cor, gênero e classe. Nas intersecções desses marcadores, disputam-se tanto a produção de sujeitos políticos como a definição daqueles que estão legitimados e habilitados a fazer parte do campo ‘científico’, provendo os contornos daquilo que é considerado como conhecimento válido, construído a partir de determinados lugares e leituras de mundo. A exclusão das mulheres dos cenários e agendas produtoras de conhecimento tem nas mulheres negras e indígenas uma das suas principais faces, operada pelo racismo estrutural, próprio da matriz da colonialidade definidora de lugares no mundo.
Não podemos deixar de sublinhar, portanto, que a estratégia do poder hegemônico de tratar a ciência com neutralidade e objetividade deixou de fora inúmeras contribuições; entre elas, aquelas que apontavam para o fato de que a ciência não está apartada da história, contribuindo para a reprodução de desigualdades em inúmeras camadas de opressão e subalternização8-10.
Nesse contexto, dar visibilidade ao trabalho de mulheres nas ciências é um desafio maior, que está relacionado com o conjunto de condições objetivas da produção de conhecimentos. Em tempos de negacionismos e de ataques às ciências e ao conhecimento, é fundamental reforçar a reivindicação das teóricas feministas que, há décadas, vêm salientando que a diversidade e a inclusão são elementos cruciais para o fortalecimento da ciência, tanto em sua dimensão social quanto em sua dimensão epistemológica11,12. Esperamos que os trabalhos aqui reunidos, em sua pluralidade, reforcem essa perspectiva, que se faz imprescindível para pensarmos os desafios postos à ciência, à saúde e à sociedade.
Ao ampliar a visibilidade do trabalho de mulheres na ciência, destacamos aspectos ligados às lutas e às formas de inserção no campo da saúde. Igualmente, procuramos enfatizar o diálogo e o compartilhamento de experiências com vistas à potencialização de outras agendas e epistemologias na produção de saberes e práticas a partir do lugar e do olhar de mulheres como agentes de transformação. A presença e o protagonismo crescentes de mulheres na ciência têm produzido efeitos nas bases epistemológicas, na práxis científica e em suas hierarquias, que os trabalhos aqui reunidos expressam, em boa medida, por meio de reflexões críticas que abrangem questões teóricas, políticas e sociais de grande amplitude e envergadura. Em um mundo de efervescências políticas e sociais, os temas aqui tratados têm, ao mesmo tempo, um sentido estratégico que reforça a importância das pesquisas no campo, mas que, fundamentalmente, também nos mostra o longo caminho de conquista de um lugar social e científico para as mulheres.
É precisamente nesse caminho, marcado por resistências e lutas, que vimos histórias de mulheres nas ciências. Mulheres que romperam barreiras e que se destacaram como produtoras de conhecimentos; entre elas, cientistas brasileiras pioneiras, como Bertha Lutz (bióloga), Nise da Silveira (médica), Elza Furtado Gomide (física), Graziela Maciel Barroso (botânica), Luiza Bairros (cientista social), Beatriz do Nascimento (historiadora), Lélia Gonzalez (historiadora, filósofa e antropóloga), Virgínia Bicudo (psicanalista), e muitas outras. Essas cientistas mulheres abriram caminhos para as gerações seguintes – e, nos tempos atuais, sua presença e contribuição têm sido cada vez mais relevantes e inspiradoras.
Os trabalhos presentes neste número especial abrangem tanto reflexões e abordagens críticas às categorias, epistemologias e práticas que conformam a atividade científica quanto trazem análises do lugar das mulheres no campo das ciências. Estamos falando de trajetórias de mulheres em diversos campos; do protagonismo de mulheres negras, trans, indígenas, travestis, jovens, lésbicas e periféricas nos cenários de produção de saberes; da inserção e da formulação crítica e criativa de pesquisadoras, profissionais de saúde, escritoras e muitas outras profissões em diversificadas áreas. Tudo isso em um esforço de revisitar, ressignificar e transformar o campo das ciências, e, por que não dizer, da vida em comum.
A preparação desta ‘Saúde em Debate’ foi, assim como todas as atividades acadêmicas e da vida em geral, atravessada pela emergência da Covid-19. As doenças são fenômenos a um só tempo biológicos, culturais e sociais. São ‘emolduradas’ por diversos elementos da sociedade e, ao mesmo tempo, constituem ‘molduras’ para a vida social13. A Covid-19 intensifica ainda mais a relevância acadêmica, social e política da produção de conhecimentos sobre mulheres nas ciências e na saúde, seja por sua atuação nesses domínios tão centrais ao enfrentamento da pandemia, seja pela explicitação das profundas desigualdades estruturais que a doença descortina e aprofunda.
Que este número seja uma homenagem às mulheres que, em tantas dimensões e em tantos lugares, enfrentam essa experiência dramática deste ainda curto século XXI.
Referências
- Silva J. Doutoras professoras negras: o que nos dizem os indicadores oficiais. Perspectiva. 2010; 28(1):19-36.
- Haraway D. Situated knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies. 1988; 14(3):575-599.
- Harding S. Gênero, democracia e filosofia da ciência. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. 2007; 1(1):163-168.
- Hooks B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes; 2013.
- Gonzales L. Por un feminismo afrolatinoamericano. Revista Isis International. 1988; (IX):133-141.
- Vergès F. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora; 2021.
- Martins APV. A mulher, o médico e as historiadoras: um ensaio historiográfico sobre a história das mulheres, da medicina e do gênero. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004. p. 21-61. (Coleção História e Saúde). [acesso em 2021 out 9]. Disponível em: http://books.scielo.org/id/jnzhd/pdf/martins-9788575414514-03.pdf.
- Gonzalez L. Primavera para as rosas negras: Lélia González em primeira pessoa. Diáspora Africana: Editora Filhos da África; 2018.
- Collins PH. Pensamento feminista negro: pensamento, consciência e a política de empoderamento. São Paulo: Boitempo; 2019.
- Carneiro S. Lélia González: o feminismo negro no palco da história. Brasília, DF: Abravídeo; 2014.
- Curiel O. Critica pós-colonial desde las prácticas políticas del feminismo antirracista. Bogotá, DC: Universidad Central Bogotá; 2007. (Nómadas (Col), n. 26).
- Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Estud. Femin. 2014; 22(3):320.
- Rosenberg C, Golden Janet, editores. Framing Disease: Studies in Cultural History. New Brunswick: Rutgers University Press; 1992.