Profissionais de saúde estão tendo de tratar pacientes de covid-19 sem qualquer proteção

por Paulo Henrique Rodrigues e Lusiana Chagas Gerzson

Circulou recentemente nas redes sociais um episódio lamentável em que oficiais do Exército forçaram a entrada na enfermaria onde está internado o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, chefe do sinistro Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República. O enfermeiro responsável barrou os oficiais que o empurraram, fazendo com que a máscara de proteção do profissional de saúde saísse do lugar. Seguiu-se uma discussão na qual o enfermeiro foi firme, contestando a postura dos militares, obrigou-os a sair do ambiente e mostrou o risco que eles o estavam expondo. Este vídeo foi enviado para, ‘Dionéa’, uma enfermeira amiga que trabalha num hospital do Sistema Único de Saúde (SUS) do Rio de Janeiro, ela reagiu fazendo um depoimento sobre as péssimas condições em que os trabalhadores do SUS estão vivendo no tratamento a pacientes de covid-19. Este depoimento acabou atraindo outros dois profissionais a se manifestarem, mais uma enfermeira e um médico.

O quadro descrito é alarmante, principalmente quando sabemos que se trata das condições em que os profissionais se encontram para tratar as vítimas da pandemia da Covid-19. São reproduzidas abaixo os depoimentos e uma conversa por rede social entre as duas enfermeiras. Segue o depoimento de ‘Dionéa’:

Nós estamos trabalhando sem EPIs (equipamentos de proteção individual) na minha unidade hospitalar. Isolaram um andar inteiro para o covid-19, mais de 20 leitos, com apenas uma enfermeira de isolamento respiratório as outras enfermeiras normais sem nenhum preparo para receber pacientes com essa patologia. Neste andar não há respiradores e nem recursos humanos suficiente. Muitos colegas moram longe sem condições de vir ao trabalho pelo grave problema de condução e alguns estão completamente nervosos, estressados já vi colegas surtarem em pleno corredor. Isso em apenas uma semana. E as nossas chefias nos ameaçam o tempo todo.

Dionéa continua:

– Ontem tive que dobrar. E amanhã terei que dobrar novamente. Estão misturando os pacientes com tuberculose e covid no mesmo setor. Muitos colega entrando em surto. Tá um desespero só, pois a enfermaria teria de ter pressão negativa e uma antessala, mas não temos. Usamos capote de pano o ideal é o impermeável porém nenhum hospital do SUS tem. As máscaras também estão em pequena quantidade. O pessoal está usando saco de lixo para proteção, um absurdo.

Segue a conversa entre Dionéa e sua colega, também enfermeira de outro hospital do SUS:

Aqui no hospital não temos condições nenhuma de receber esses pacientes. E acredito que nenhum hospital do SUS. Que Deus proteja a todos!
Pior foi inventar de isolar um prédio inteiro para receber esses pacientes, como no caso do HFB, e semana passada mesmo teve a denúncia de uma médica reclamando de falta de EPI na emergência.
Na minha unidade só temos sete respiradores e nada a mais. Estamos sofrendo companheira…. O cenário em si já é caótico, não há EPI para quem está na assistência direta, imagina pra quem não está na assistência, mas precisa rodar o hospital todo?
Verdade eles esquecem que todos nós de alguma maneira corremos riscos, mesmo que indiretamente.
Pra imprensa, fazem aquele discurso de “grandes guerreiros da saúde”, tapinha nas costas, e uma valorização que não passa da retórica. Na vida real, só descaso é abandono
Queremos EPIs concordo plenamente com vc. Queremos sobreviver e voltar para nossa família.
De preferência né, deixa esse negócio de “morrer pela pátria” pros militares
Verdade.
Talvez até tenha algum aqui, não leve a mal, não é nada pessoal, é que no meu termo de posse quando virei funcionária pública não tinha nada dessa parada de “morrer pela pátria”, “dar a vida em serviço”…
No hospital da aeronáutica eles estão usando a mesma roupa que usa no ebola. Os milicos estão tendo todo assistência do Estado.
Sei que alguns colegas que são de UPAs e de emergência aberta utilizam sacos de lixo como capote para proteção máscara só temos a cirúrgica aquela branca que não é a correta. Na minha unidade só chegaram cinco kits de teste para o corona, nunca achei que viveria para ver isso
Nem eu
Pior foi inventar de isolar um prédio inteiro para receber esses pacientes, como no caso do HFB, e semana passada mesmo teve a denúncia de uma médica reclamando de falta de EPI na emergência
Na rede do Ministério da Saúde, saco de lixo. Utilizamos capote de pano e máscara cirúrgica nem tem “n95”.

– Aquele de tnt que não presta nem pra fazer curativo? (E 2)
Não o de pano mesmo amanhã tô de plantão vou tirar foto (E 1)

Ah, já sei qual é
E vai o trabalhador reclamar…
Quem tinha que promover a saúde, que justamente deveria ser o empregador, é o primeiro a oprimir o trabalhador
Sim as chefias alegam que as estamos assediando, quando reclamamos. E que não é papel delas e sim do Ministério da Saúde comprar os EPIs.
Quando a chefia acha que reclamar da falta de materiais adequados de proteção é um ato de “insubordinação” e ameaça a pessoa de demissão é sinal de que o problema é ainda maior.
Justamente quem deveria ser um dos primeiros a querer proteger a integridade física da mão de obra sob sua gerência. Como os trabalhadores do SUS podem promover a saúde da população se há essa displicência com a própria saúde deles?

Médico:

Eu sou médico aqui no Rio e queria fazer uma denúncia. A questão toda é que a maior parte dos médicos do Rio e de São Paulo trabalham sobre o regime de PJ (pessoa jurídica). Ou seja, a gente tem que fazer empresa pra poder trabalhar para os outros hospitais, e isso tira todos os nossos direitos de férias, 13º, inclusive o direito de adoecer e ter faltas abonadas. Daí tem rolado muito médico com síndrome gripal indo trabalhar pois não pode perder o dia de trabalho. Médicos que potencialmente podem estar infectados com o Covid-19 e que podem estar passando isso pra outras pessoas! A gente faz, em média, uns 50 a 60 atendimentos por plantão, sem contar as outras pessoas que a gente interage. Eu mesmo há três semanas tive que dar plantão com febre alta (tava com uma arbovirose). Acho que essa denúncia é importantíssima, uma vez que a recomendação do Ministério da Saúde é a de AFASTAR TODOS OS PACIENTES E FAMILIARES COM SÍNDROME GRIPAL por 14 dias!

O médico continua.

E também há o fato de que não estão testando pessoas com sintomas leves, só afastando em casa! Mas se a gente que é médico não for trabalhar, a gente não recebe nada. E isso faz com médicos doentes continue se arriscando nos plantões pois não tem direitos trabalhistas. Por favor, façam algo com essa denúncia. Se algo não for feito pelo governo ou pelas autoridades, não há nada que impeça que mais médicos continuem trabalhando com sintomas e TRANSMITINDO isso para outras dezenas de pessoas, que transmitirão para suas famílias e vai piorar e muito essa pandemia. Olha onde a enfermagem dorme, fiz um vídeo.

Todo mundo amontoado. Basta um se infectar que durante o descanso, infectam todo mundo. O descanso médico também são três beliches e um colchão. Enfim cara, eu tô exausto. Tô pra desistir de trabalhar no SUS de vez! A situação não tá legal pra gente. Eu tô comprando muito EPI com meu dinheiro. As máscaras que dão aqui são as piores. Queriam me dar ‘um’ óculos usado mano!!! Me falaram que são quatro óculos de proteção pra unidade toda. Mas daqui a pouco é a gente adoecendo com corona e daí ferrou.

As terríveis condições descritas por esses três trabalhadores do SUS revelam um enorme descaso das autoridades que põe em perigo a segurança dos profissionais, dos pacientes, e que colocam em risco o controle da pandemia no país. Tais condições nos mobilizaram para trazer a público a angústia pela qual estão vivenciando as pessoas que estão na linha de frente para proteger a saúde da população brasileira.


Paulo Henrique Rodrigues é Sociólogo, integrante do CEBES e professor do Instituto de Medicina Social da UERJ.

Lusiana Chagas Gerzson é Psicóloga da rede de saúde da Cidade do Rio de Janeiro, integrante do movimento Trabalhadores pelo SUS.