Qual foi a principal política social de Lula?
Eduardo Fagnani | GGN Jornal de Todos os Brasis
A hegemonia do projeto neoliberal em escala global a partir da década de 1980 impôs retrocessos aos direitos trabalhistas e aos valores dos regimes de Estado de Bem-Estar Social (igualdade, direitos universais, seguridade, serviços públicos) que se consolidaram durante “Golden Age” (1945/1975). Em contraposição emergiu o ideário do Estado Mínimo (assistência, focalização e privatização).
No Brasil, a opção ao modelo liberal no início da década de 1990 impôs limites ao desenvolvimento social, percebidos, especialmente, pela profunda crise do mercado de trabalho e pelas restrições ao gasto social.
A agenda do Estado Mínimo era funcional para a estratégia de ajuste macroeconômico e de reforma liberal do Estado, pois, segundo seus dogmas, o “bem-estar social” poderia ser alcançado sem crescimento econômico, geração de empregos, valorização da renda do trabalho e políticas sociais públicas e universais que asseguram a cidadania. Bastam políticas de transferências monetárias focadas nos “pobres” (aqueles que recebem até US$ 2 por dia). (BANCO MUNDIAL, 2001).
Em última instância, o Estado Mínimo é um poderoso instrumento para o ajuste fiscal, na medida em que políticas focalizadas são mais baratas (0,5% do PIB) que políticas universais como, por exemplo, a Previdência Social (8% do PIB).
É neste contexto que podemos perceber a força das idéias que procuravam impor a focalização como a única “política social” possível para o Brasil, revigoradas após o acordo com o FMI selado em 1998. Desde então, houve ampla difusão de programas dessa natureza que passaram a se contrapor aos programas universais e a encerrar a própria “política social” do governo.
Esse reducionismo reapareceu em recente artigo escrito por especialista do PSDB (GRAZIANO, 2013). Além de impropriedades – como creditar os benefícios da Previdência Rural e da Assistência Social, frutos da Constituição de 1988, ao governo tucano – o autor recita uma procissão de “políticas sociais” de FHC como, por exemplo, os programas Bolsa Escola, Garantia de Renda Mínima, Bolsa Alimentação, Auxílio-Gás, Bolsa Renda e o Cartão do Cidadão. No longo artigo não há uma única citação sobre políticas sociais universais que asseguram a cidadania social (saúde, educação, previdência, seguro-desemprego, entre outros) ou de políticas sociais urbanas que garantam moradia, saneamento e transporte público de qualidade. Também deixa de considerar a mais eficiente de todas as políticas sociais que é o emprego e a renda do trabalho, frutos do crescimento da economia e da valorização do salário mínimo. Portanto, em sua análise, a “política social” de FHC se restringe às “políticas pobres para pobres”.
No início da década passada, com a emergência dos governos progressistas na América do Sul, o continente passou a buscar alternativas ao neoliberalismo, ainda hegemônico em escala global.2 No Brasil, essa via tem sido um processo árduo e foi particularmente crítica nos primeiros anos do Governo Lula. Passada essa etapa, após 25 anos o crescimento econômico voltou a ser contemplado na agenda macroeconômica e teve repercussões positivas sobre o mercado de trabalho.
A taxa de desemprego aberto atingiu em 2012 seus mais baixos patamares históricos. Entre 2004 e 2012, o estoque de trabalhadores formais empregados elevou-se em 18,4 milhões (média de crescimento superior a 5,5 % ao ano). A participação dos empregos formais na estrutura ocupacional foi ampliada em detrimento das diversas formas de trabalho precário. Observe-se que a participação dos trabalhadores “sem rendimentos” na estrutura ocupacional caiu de 7,2% para 3% em igual período.
O crescimento tornou possível que o salário mínimo aumentasse mais de 70% acima da inflação, ampliando a renda do trabalho, bem como a renda das 34 milhões de famílias que recebem benefícios monetários da Seguridade Social (previdência rural e urbana, assistência social e seguro-desemprego) atrelados ao piso.
Além disso, foram implantadas ações específicas de combate à pobreza, com destaque para o Programa Bolsa que atende 13,8 milhões de famílias e contribuiu para que a porcentagem de pessoas que vivem em miséria extrema caísse pela metade entre 2003 e 2011 (de 24,4% para 10,2% da população total).
O gasto social foi outro elemento estratégico que impulsionou o ciclo econômico. Entre 2004 e 2010 o Gasto Social Federal per capita cresceu quase 60% em termos reais. Além das transferências monetárias às famílias, também houve expansão nos gastos federais com educação (dobraram, em valores constantes, entre 2000 e 2010) e saúde (cresceram mais de 60% em termos reais, em igual período), dentre outras políticas setoriais (CASTRO E OUTROS, 2012). Na infraestrutura urbana, destaca-se a ampliação do patamar de investimentos em saneamento e em habitação popular – especialmente a partir da criação do programa Minha Casa, Minha Vida, que alcançou 1,3 milhão de moradias entregues.
Esta combinação de políticas econômicas e sociais ampliou a renda das famílias e deu vigor ao mercado interno, criando um ciclo virtuoso entre produção, consumo e investimento. Combinou-se mobilidade social ascendente, redução da pobreza extrema e queda da desigualdade social.
Em 2011 o Brasil atingiu seu menor nível de desigualdade de renda medido pelo índice de Gini desde 1960. O rendimento médio real dos trabalhadores mais pobres cresceu muito acima do rendimento dos mais ricos na década passada. (respectivamente, cerca de 70% e 20%).
Na contramão dos dogmas do Estado Mínimo, o mercado de trabalho (emprego e salário mínimo) respondeu por cerca de 60% da queda da desigualdade social; a Seguridade Social contribuiu com 27%; e o programa Bolsa Família com 13% (IPEA 2012).
A distribuição da renda funcional voltou a se recuperar após um longo período de retração: o peso dos salários subiu 10,3% e o da renda da propriedade caiu 12,8% entre 2005 e 2010 (POCHMMAN, 2012).
Negando a realidade, os defensores da corrente liberal sobrevalorizam o papel do programa Bolsa Família nos progressos sociais recentes. A despeito do papel relevante desse programa, essa interpretação reduz o legado dos governos petistas. Esse reducionismo tem razões ideológicas claras, voltadas para o convencimento acerca das virtudes do Estado Mínimo, ainda hegemônico no plano internacional (FAGNANI, 2011).
A estratégia de desenvolvimento para o Brasil não pode prescindir de ações focadas naqueles que estão submetidos à fome ou precariamente inseridos (mais de 70% dos adultos do programa Bolsa Família trabalham). O equívoco neoliberal é pretender fazer desse eixo, a “estratégia única” de enfrentamento do problema social.
No período recente esse equívoco deixou de ser cometido. A estratégia de enfrentamento da questão social foi impulsionada pela melhor articulação entre as políticas econômica e social, ampliação dos empregos, valorização da renda do trabalho e complementariedade entre políticas focalizadas e universais, vistas como ações convergentes e não antagônicas. Esse é o maior legado e a real política social dos governos petistas.
A tarefa que se coloca para o campo progressista é preservar e, sobretudo, ampliar as conquistas recentes. Ainda vivemos graves níveis de concentração de renda e de riqueza, problemas estruturais no mercado de trabalho e de desigualdades no acesso de bens e serviços sociais públicos e universais. São traços marcantes do subdesenvolvimento que precisam ser superados se queremos um país justo e civilizado. Portanto, a visão de futuro precisa estar ancorada num projeto nacional que incorpore as dimensões sociais, econômicas e ambientais do desenvolvimento.
Especificamente no campo da inclusão dos mais pobres, o maior desafio é transformar indivíduos em situação de miséria em cidadãos portadores de direitos. A universalização da cidadania deveria alcançar todos os brasileiros, incluindo os mais pobres. Nesse sentido, além da gradativa ampliação da linha de pobreza monetária será preciso transitar para o critério que também percebe a pobreza como “privação de capacidades” (SEN, 1999) decorrentes da falta de trabalho e renda dignos e dos déficits em serviços básicos como saúde, moradia, educação, nutrição, saneamento e transporte, entre outros.
Na contramão desta agenda, setores da oposição, ao defenderem a volta ao passado, acenam para a reedição do ciclo de “políticas pobres para pobres” reivindicado pelo mercado.
Referências
BANCO MUNDIAL (2001) O combate à pobreza no Brasil. Relatório sobre a pobreza, com ênfase nas políticas voltadas para a redução da pobreza. Washington, DC: Banco Mundial.
CASTRO, J.A; RIBEIRO, J.A; CHAVES, J.V.; e DUARTE, B.C. (2012). Gasto Social Federal: uma análise da prioridade macroeconômica no período 1995-2010. Brasília: IPEA. Nota técnica 9, junho.
FAGNANI, E. (2011) Seguridade social: a experiência brasileira e o debate internacional. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert Stiftung (Análises e propostas, n.42, dezembro).
GRAZIANO, X. (2013). Políticas Sociais no Brasil: antes e depois de FHC. Publicação original no site do iFHC em 15/05/2013.
IPEA (2012). A Década Inclusiva (2001-2011): Desigualdade, Pobreza e Políticas de Renda. Brasília: IPEA, Comunicados do IPEA, Nº 155.
POCHMANN, M. Heranças. Valor, 11/08/2011.
SEN, A. (1999). Desenvolvimento como liberdade. SP: Companhia das Letras
Eduardo Fagnani é economista, doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professor do IE-UNICAMP e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CESIT) desta instituição, coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento (www.politicasocial.net.br) e membro do Grupo de Conjuntura da Fundação Perseu Abramo.