Quando jegues perdem para motocicletas…
O Estado de S. Paulo – 16/03/2012
Durante esta semana, com a realização do Fórum Mundial da Água em Marselha, na França, a comunicação está bombardeando os leitores/espectadores com uma pletora de informações a esse respeito – que tranquilizam, por alguns ângulos, e inquietam, por outros.
Uma pesquisa da Universidade de Twente, na Holanda, por exemplo, diz que o mundo consome 9 trilhões de metros cúbicos de água por ano – 20% dos quais estão embutidos em produtos exportados (o que faz do Brasil grande “exportador virtual” de água). Já a ONU informou que em duas décadas mais 2 bilhões de pessoas passaram a ter acesso a água de boa qualidade; com isso se reduziu à metade a parcela da população desfavorecida; agora, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Organização Mundial de Saúde, 89% das pessoas (6,1 bilhões de pessoas) dispõem de água potável; e 11% (785 milhões) não a têm. Já no saneamento a situação continua dramática: 3,5 bilhões não têm suas casas ligadas a redes de esgotos. Mas nas áreas rurais dos países mais pobres 97% não têm água canalizada. A cada ano morrem no mundo 1,5 milhão de crianças (4,5 mil por dia) vitimadas por doenças transmitidas pela água, principalmente diarreias.
Mas há notícias boas, como a de que se conseguiu em uma década economizar na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) – quase 20 milhões de pessoas – cerca de 14 bilhões de litros mensais de água com programas de combate a perdas (vazamentos e furtos), que eram de 32% do total de água posta à disposição pelas estações de tratamento; hoje as perdas estão em 25,6% e se pretende chegar em 2019 a entre 10% e 15%, com investimentos de R$ 4,3 bilhões (Estado, 1.º/3). É uma situação muito melhor que a média brasileira nas cidades, onde as perdas estão próximas de 40% do total.
Na RMSP a disponibilidade de água é de 146 mil litros anuais por habitante (400 litros/dia). Mesmo se reduzirmos as perdas a 15%, ainda estaremos longe do Japão (que nos está fornecendo tecnologia), onde essa perda é de 3%. Aqui, um dos dramas está na extensão das redes – 32,7 mil km na RMSP. Mas é uma questão vital, porque a região metropolitana só dispõe de 1,6% da água do País. E mesmo assim com água “viajando” até 120 km, como no sistema Cantareira.
Já no saneamento básico a situação brasileira continua constrangedora, como se tem comentado neste espaço. Só 45,7% da população (IBGE) têm suas casas conectada a redes de esgotos e, do que é coletado, apenas 37,9% recebem algum tipo de tratamento, em geral primário, que devolve aos rios metade da carga orgânica e não trata da poluição secundária e terciária. Ou seja, poluímos os cursos d”água com mais de metade dos 9,3 bilhões de litros de esgotos gerados a cada dia. Fossas sépticas em pouco mais de 50% das residências amenizam a situação; 2.495 municípios não dispõem de sistemas de esgotos. Na Região Norte do País, a situação é dramática: só 13,5% da população conta com rede de esgotos. No Nordeste, 33,8%. Só 30% das obras do PAC nesse setor foram concluídas. E a Agência Nacional de Águas (ANA) pede investimentos de R$ 22,1 bilhões em cinco anos nas infraestruturas para que não falte água na maioria dos municípios em 2025.
Com todos esses dramas, o governo federal continua a garantir que o projeto de transposição de águas do Rio São Francisco – paralisado em tantos lugares, apesar do aumento dos custos – resolverá o problema do abastecimento de água no semiárido. Quando, desde o estudo de impacto ambiental, foi afirmado que 70% da água transposta iria para irrigação em grandes projetos de exportação, 26% para uso industrial e só 4% para a chamada “população difusa” – ainda assim, reforçando o abastecimento em cidades que chegam a desperdiçar até 70% da água que distribuem. Mais ainda, a Fundação Getúlio Vargas calcula o custo da água no Eixo Leste em R$ 0,13 por metro cúbico, quando a média nacional é de R$ 0,02.
Em certos momentos, a impressão é de que se reserva para o Nordeste certa cota de notícias indesejáveis. Uma delas é na área do abastecimento de comunidades isoladas, aonde não chegará água da transposição. Há muitos anos uma coligação de ONGs – chamada de Articulação do Semiárido – vem instalando nesses locais as chamadas cisternas de placa, com revestimento de concreto para impedir que se infiltre na terra a água de chuvas recolhida nos telhados e para elas canalizada. Cada cisterna consegue abastecer com 20 litros diários cada pessoa de uma família, na estiagem. Ao custo de pouco mais de R$ 1 mil por unidade, já foram construídas mais de 300 mil e é preciso implantar outras centenas de milhares. Pois bem, há poucas semanas o governo federal anunciou que substituiria as cisternas de placa por cisternas de plástico, muito mais caras (R$ 5 mil cada). E algumas das primeiras instaladas, com três meses ao sol, já se estão derretendo (texto e fotos de Roberto Malvezzi/CPT, 5/3), quando tinham “garantia” de 15 anos. O governo federal já recuou de 300 mil para 60 mil cisternas de plástico e assegura que o derretimento foi apenas um “acidente” já resolvido – mas ainda não faz sentido. Sem falar que poderia optar também pelas minibarragens desenvolvidas pela Embrapa Sete Lagoas.
Não bastasse, o Ministério da Agricultura pensa agora em liberar variedades de mandioca resistentes ao glifosato (usado com transgênicos), quando a mandioca, a mais brasileira das variedades de alimento, mais adaptada aos nossos solos, não costuma precisar nem de fertilizantes nem de agrotóxicos.
Devem estar estimulados por tantos descaminhos produtores nordestinos que decidiram agora vender à China 300 mil jegues por ano, para serem abatidos pelas indústrias de cosméticos e alimentos (remaatlantico, 7/3). Dizem os exportadores que não há mais lugar para jegues, substituídos no sertão por motocicletas.
Glauber Rocha, lá do seu canto, deve estar pensando que o sertão vai mesmo virar mar e o mar vai virar sertão.