Por que o governo está gastando R$ 2,3 bi em vacinas da Índia e Rússia sem licitação, via intermediários?
por Ronald Ferreira dos Santos, presidente Fenafar (Federação Nacional dos Farmacêuticos) e ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), e Jorge Bermudez, pesquisador da ENSP/Fiocruz. Artigo publicado originalmente no Blog da Saúde do portal Viomundo em 21 de fevereiro de 2021.
Nitidamente, o General Covid, proclamado como um dos maiores especialistas em logística das Forças Armadas, não consegue encontrar a saída do labirinto no qual foi colocado pelo Capitão-mor ao assumir o comando do enfrentamento da pandemia, que já ceifou quase 250.000 vidas no Brasil e continua em ascensão, mostrando que, de nenhuma maneira, está controlada.
Ainda estamos a ver qual vai ser o impacto das aglomerações registradas nacionalmente pela imprensa durante os dias de carnaval que, embora suspenso, teve inúmeras festividades irregulares.
São estarrecedores o descompromisso e insensibilidade do Capitão e de seus Generais com a realidade, o planejamento e a necessidade da saúde do povo brasileiro.
Isso fica evidente na proposta de orçamento enviada para aprovação do Congresso Nacional.
As despesas com ações e serviços públicos de saúde propostas no orçamento de 2021 do Ministério da Saúde somam R$ 123,8 bilhões.
Esse valor corresponde ao valor do piso federal do SUS de 2017 atualizado pelo IPCA, ano que não teve Covid-19 e uma população menor que a de 2021, inclusive idosa.
Estamos falando de financiamento do SUS. Ou seja, de leitos de UTI, PNI [Programa Nacional de Imunização], Atenção Básica, Vigilância em Saúde, entre muitas ações fundamentais.
Na semana que passou, a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) divulgou nota, alegando ser “necessária, urgente e inevitável” a troca do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.
Segundo a nota, Pazuello não tem condições de conduzir a superação da pandemia e deve ser substituído “para o bem dos brasileiros”.
Essa nota se seguiu às denúncias de suspensão da vacinação em diversas cidades devido ao suprimento insuficiente de imunizantes pelo Ministério da Saúde.
Quase simultaneamente a essas críticas, o Fórum dos Governadores promoveu reunião com o Ministro Pazuello, tendo na agenda a ampliação de leitos de UTI e a cobrança de esquema claro de vacinação e as datas de entrega das vacinas nos respectivos estados.
Nessa oportunidade, o ministro Pazuello anunciou que entregaria 230 milhões de doses de vacinas até o dia 31 de julho. Disse ainda que o ritmo da entrega das novas doses seria acelerado.
Não é a primeira vez que anúncios públicos do ministro trazem esperança à população brasileira de que haverá vacinação constante, escalonada e abrangente.
Infelizmente, essas promessas têm caído no vazio, as datas reagendadas e as vacinações são suspensas por falta das vacinas
A credibilidade de nossas autoridades parece uma disputa de liderança de programa de calouros na televisão.
Neste final de semana, a publicação de dispensa de licitação para compra emergencial de vacinas provenientes da Índia e da Rússia nos leva a levantar uma série de considerações, já que são de compras governamentais de enorme vulto e impacto e que devem primar pela transparência e a correção dos dados
A dispensa de licitação, publicada em edição extraordinária do Diário Oficial da União (aqui e aqui abaixo), não especifica a origem dos recursos nem o custo unitário das doses de vacina de cada compra.
Confira abaixo.
Afinal, não é nenhuma bagatela, mas uma operação que deve consumir R$ 2,3 bilhões de um orçamento já fraturado pela EC-95. E ainda agravado com a necessária incorporação de novas tecnologias no SUS e os gastos adicionais impostos pela pandemia.
É mais do que lamentável a postura que o governo brasileiro vem assumindo na geopolítica mundial na contramão dos interesses dos países em desenvolvimento e das populações negligenciadas e vulneráveis.
Exemplo claro foi a postura inicial de oposição e o silêncio atual nas discussões na OMC a respeito da suspensão temporária de artigos do Acordo TRIPS para facilitar o acesso mundial a tecnologias relacionadas com Covid-19, em especial as vacinas.
No sentido contrário ao fortalecimento das relações entre os países do BRIC, já denunciado recentemente por Buss, Hoirisch e Alcazar e por nós, a opção colocada na dispensa de licitação pelo Ministério da Saúde engloba a compra feita com um intermediário (atravessador?) e não diretamente entre os países, o que poderia fortalecer uma relação entre governos ou com os produtores, tanto na Índia como na Rússia.
Por que a compra da vacina Sputnik V, do Instituto Gamaleya, é feita com a intermediação da União Química? E a da vacina indiana Covaxin, do Barat Biotech, é via Precisa Medicamentos?
Consideramos também necessário esclarecer a compra sendo anunciada sem nenhuma manifestação da Anvisa quanto à aprovação para uso emergencial ou submissão da documentação necessária.
Trata-se de mais um descompasso intra-governo, o que não nos surpreenderia.
Mas, certamente, mais um impacto negativo na credibilidade do Brasil no mundo, se é que falta de credibilidade do País ainda pode ir além!
O Brasil do passado, que tantas vezes liderou processos mundiais, hoje é um fantasma a assombrar os atuais mandatários.
Mas, temos a certeza de que a Defesa da Vida articulada com a Defesa da Democracia e da Nação Brasileira possui elementos para alimentar nossas esperanças e costurar as alianças que irão nos tirar desse momento de escuridão.
O novelo que permitiu a Teseu não se perdesse no labirinto e libertasse os demais atenienses dos domínios do Minotauro, ressurge hoje.
Não podemos perder a linha, nossa espada ganha forma de vacina, nosso escudo é o Sistema Único de Saúde.
Em 2021, como indica o Conselho Nacional de Saúde (CNS), o SUS precisa mais do que está no orçamento do Ministério da Saúde.
O SUS necessita de, no mínimo, o valor de 2020 — R$ 168,7 bilhões –, além dos recursos extras para a produção e aquisição de vacinas.