Racismo brasileiro e a negativa da sua existência
Em entrevista especial em homenagem ao Dia Nacional da Consciência Negra, Carmela Zigoni,doutora em antropologia pela Universidade de Brasília e assessora política do Inesc, aborda as características do racismo no Brasil, além de tratar da importância das políticas afirmativas e da representatividade dos negros/as no poder. Temas como educação e falta da presença dos negros/as nos discursos midiáticos também foram assuntos tratados pela especialista.
Além da entrevista, para marcar o mês da Consciência Negra, o Inesc lançou no dia 13/11 a publicação “Por um Parlamento sem Racismo – Guia para parlamentares sobre a promoção da igualdade racial”. A publicação objetiva fornecer informações úteis para os parlamentares e suas assessorias com relação ao reconhecimento da desigualdade racial, da existência do racismo nas relações sociais no Brasil e dos marcos normativos vigentes voltados para a sua superação. E ainda contribuir para mudanças de atitude tão necessárias para a construção de um parlamento sem racismo. Vale conferir a entrevista abaixo
Boa parte da sociedade brasileira insiste no discurso de que o racismo não impera no país. Para você, esse discurso contrário à realidade dos negros/as se deve principalmente a que questão?
O racismo brasileiro tem essa particularidade: a negativa da existência do racismo e o discurso de que existiria uma “democracia racial” da qual participariam igualmente brancos, negros e indígenas. O poder desse argumento é nefasto, pois invisibiliza desigualdades profundas, vividas por negros e negras em seu cotidiano, e esconde também mecanismos de exclusão sistemáticos, de discriminação de populações negras inteiras, seja no mercado de trabalho, na televisão, nos espaços de poder e decisão. A teoria da “democracia racial” serviu apenas para reforçar as desigualdades sociais após a abolição em 1888: aos negros foi negado o acesso à terra, à educação, ao trabalho, à saúde e, principalmente, à dignidade.
Outra parcela da população também se declara contra as políticas afirmativas. Alguns utilizam a justificativa de que esse tipo de política deve ser direcionada não somente para negros/as, mas para os pobres em geral. O que você tem a falar sobre o tema?
A pobreza é um fator de exclusão, mas não o único. Estudos comprovam que a pobreza brasileira “tem cor”, mas as cotas para alunos de escolas públicas seriam insuficientes para enfrentar o problema do racismo. O racismo é uma forma particular de discriminação, que se baseia na crença de que existem diferenças biológicas que hierarquizam os seres humanos. Veja recentemente o caso dos médicos cubanos, em que algumas pessoas colocaram a competência desses profissionais em dúvida devido ao fato de serem negros (“essas médicas parecem domésticas”, disse uma jornalista nas redes sociais). Temos uma divida histórica com a população negra e as ações afirmativas visam corrigir essa perversidade. Além disso, as pesquisas demonstram que os alunos do sistema de cotas tem rendimento igual ou superior aos alunos que acessam a universidade através do vestibular. O Itamaraty promove ação afirmativa para afrodescendentes visando diversificar o perfil dos diplomatas que representam o Brasil em outras partes do mundo. Ou seja, as cotas são legítimas e devem ser ampliadas no Brasil.
E sobre a falta de representatividade dos negros/as dentro dos espaços de poder, dentro o Parlamento. Como essa questão pode ser revertida?
O Parlamento reflete a desigualdade da sociedade brasileira, ou seja, são poucos negros e mulheres, e nenhum indígena, no principal espaço de decisão sobre o futuro da população brasileira. Entendemos, assim, que a sub-representação no Parlamento deve ser superada se almejamos uma sociedade democrática de fato, e um caminho para isso é a Reforma do Sistema Político. O racismo é tão infrojetado, que mesmo em partidos de esquerda, as candidaturas majoritárias, ou seja, as que recebem mais recursos e apoio do partido, são de homens brancos. Também em espaços de formulação e gestão de políticas públicas não é possível enxergar diversidade étnico-racial: recentemente, a presidenta Dilma colocou na pauta do Congresso a questão as cotas raciais para concursos públicos no executivo federal, mais um passo para alcançarmos a promoção da igualdade racial no Brasil e consequentemente um país mais democrático.
A Lei 10.639 estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para a inclusão da “História e Cultura Afro-brasileira” no currículo escolar. Se bem aplicada, a lei pode ajudar a quebrar barreiras do preconceito dentro da escola?
Certamente. A escola é uma instituição fundamental na formação intelectual e humana. O racismo pode ser ainda mais perverso em espaços como este: se a criança não se reconhece na história de seu país, ou se tem a sua identidade associada somente ao período histórico colonial, de trabalho forçado, sua auto-estima fica comprometida, assim como os valores sociais de toda a sociedade. É impressionante que ainda seja ensinado em alguma escola que o Brasil foi “descoberto” por europeus brancos civilizados, quando na verdade, neste continente habitavam diversas etnias, populações com culturas complexas e diversas. Também não é ensinado que os negros e negras trazidos forçadamente por meio do tráfico negreiro eram pertencentes a culturas plenamente desenvolvidas da África. E nem mesmo que o fim do processo colonial e escravocrata acarretou em uma herança cultural para o Brasil marcada pela desigualdade social e pelo racismo.
Para finalizar, as mascaras do racismo produzidas na sociedade são diariamente reforçadas pelos discursos midiáticos. Não vemos muitos negros/as dentro das redações e sabemos que a mídia de massa no Brasil é predominantemente branca e elitista. Como podemos enfrentar mais esse desafio?
O desafio é pautar o Estado brasileiro para que essa desigualdade seja superada. A mídia de massa é privada, e atende à lógica de mercado. Neste sentido, é preciso que o Estado interfira cumprindo sua obrigação de promover a democracia, regulamentando os conteúdos veiculados e possibilitando que os negros sejam formuladores das políticas de comunicação, não somente consumidores. Além da mídia televisiva, a internet hoje é um poderoso veículo de disseminação do racismo, um veículo desregulamentado onde grupos de extrema direita e grupos racistas, neo nazistas, masculinistas, tem promovido violências simbólicas e até mesmo articulado ações concretas contra negros, mulheres e população LGBT. Neste sentido, o Marco Civil da Internet e a criação de leis punitivas para crimes cibernéticos são fundamentais para combater o racismo e a discriminação em geral.