Recuo estratégico do Ministério da Saúde ou Cavalo de Tróia?
artigo escrito por Silvia Pimentel, Amanda Cabral, Flavia Moura, Larissa Ferraz e Maria Mendes em colaboração a MULHERES EM MOVIMENTO publicado originalmente em Folha de Pernambuco
Silvia Pimentel é Professora Doutora em Filosofia do Direito, integrante do Comitê CEDAW da ONU de 2005-2016 e sua ex-Presidente em 2011-2012. Amanda Cabral, Flavia Moura, Larissa Ferraz e Maria Mendes são da Equipe da Optativa Direito, Gênero e Igualdade da PUC/SP.
Civilização ou Barbárie?
O Ministério da Saúde, em 23 de setembro de 2020, publicou a Portaria nº 2.561/20, na qual tenta retroceder da perversidade cometida pela Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020. Revogou artigos que significavam verdadeiros retrocessos, às vésperas do julgamento, agora adiado, da ADPF 737 no STF. Permanece, entretanto, a dúvida sobre estarmos num contexto de civilização ou de barbárie, e mais, emerge a possibilidade de estarmos diante de um verdadeiro Cavalo de Tróia.
A Portaria revogada, em seus artigos 1º e 8º, exercia sobre a mulher verdadeira coação moral, ao estabelecer que “a equipe médica deverá informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia (…)”. Viola os princípios da humanização do direito e da autonomia do indivíduo (Art. 200, CF/88). A modificação sinaliza vitória parcial das juristas feministas, embora permaneçam no texto tentativas de controlar o corpo e a vida das mulheres.
Contudo, é preciso entender que são históricos esses esforços de poder e de controle do patriarcado sobre o comportamento das mulheres e meninas. As duas excludentes de ilicitude previstas no Código Penal de 1940, em relação ao aborto, preservam a dignidade da pessoa humana, macroprincípio que pauta a luta pelo direito de decidir. Mesmo assim, no processo constituinte (de 1986 a 1988) alguns parlamentares fundamentalistas defenderam que constasse na Carta Magna “o direito à vida desde a concepção” para, assim, retroceder nos direitos das mulheres. Naquela ocasião, o Movimento de Mulheres articulado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM conteve esse retrocesso com muita insistência e, aliás, avançou.
“O discurso de defesa da vida construído pelos religiosos conservadores representa um projeto de dominação que recusa às mulheres autonomia sobre si mesmas, que lhes nega a autodeterminação sobre suas próprias vidas e daquelas que podem vir a ser delas dependentes”. BATISTA, Carla Gisele (2019).
Esta alteração feita na Portaria 2.282/20 se configura, no entanto, como uma tentativa de criar a ilusão de que, se nela havíamos dado passos para trás, com a nova Portaria, estaríamos dando algum passo à frente. Há, ainda, a insistência em regulamentar tão minuciosamente o procedimento para interrupção legal da gravidez, com foco na segurança jurídica do médico, sem levar em conta o cuidado com a mulher. Daí, a preocupação com a existência de soldados escondidos dentro de um Cavalo de Tróia.
Ora, quando tratamos das hipóteses em que o aborto é descriminalizado no Brasil, estamos considerando, também em muito, mulheres que passaram por situações de violência sexual. Assim sendo, qualquer regulamentação a respeito do tratamento dessas vítimas, no hospital, precisa levar em conta o sofrimento advindo de um trauma. Nesse sentido, existe a chamada “Lei do Minuto Seguinte”, Lei 12.845/13, que determina:
“Art. 1o. Os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial, integral e multidisciplinar, visando ao controle e ao tratamento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual, e encaminhamento, se for o caso, aos serviços de assistência social.”
Em contrapartida, a Portaria do dia 23 de setembro, norma meramente administrativa e que não cria direitos e obrigações, preocupou-se em detalhar, fase a fase, todos os documentos e declarações que a gestante teria que fazer, e tem como primeiro passo um relato detalhado da violência sofrida. Em que medida é congruente, em termos de apoio psicológico, manter uma diretriz que revitimiza a mulher, fazendo-a repassar detalhes da violência sexual à que foi submetida, em tal momento de fragilidade?
A revitimização é uma violência institucional contra a qual juristas feministas vêm lutando há muito tempo, o que se reflete em instrumentos internacionais, como as Recomendações Gerais do Comitê para a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres, CEDAW, da ONU. Vide:
Recomendação Geral nº 33, de 2015, Sobre o Acesso das Mulheres à Justiça, ao tratar dos Códigos Penais, no parágrafo 47: “alguns códigos ou leis penais e/ou códigos de processo penal discriminam as mulheres: (…) b) ao criminalizar comportamentos que somente podem ser realizados por mulheres, como o aborto, (…).”
Recomendação Geral nº 35, de 2017, Sobre a Violência de Gênero contra as Mulheres, no parágrafo 18: “violações da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, tais como esterilizações forçadas, aborto forçado, gravidez forçada, criminalização do aborto, negação ou atraso do aborto seguro e de cuidados pós-aborto, continuação forçada de gravidez, abuso e maus-tratos de mulheres e meninas que procuram informações, produtos e serviços relacionados à saúde sexual e reprodutiva, são formas de violência de gênero que, dependendo das circunstâncias, podem ser equiparadas à tortura ou ao tratamento cruel, desumano ou degradante”.
Em suma, a nova Portaria, ainda que modificada, continua fazendo parte de um rol de práticas adotadas pelo Estado para tomar conta dos corpos femininos, para domar a sexualidade da mulher e podar o seu poder de escolha. Serve, na verdade, para a manutenção das práticas de aborto na clandestinidade, ao passo que dificulta o acesso ao mesmo nos casos legais, o que retira das mulheres – principalmente daquelas que integram a população negra e em situação de alta vulnerabilidade econômica – a autonomia sobre o próprio corpo e o exercício de seus direitos. E aí é que estariam os soldados escondidos, prontos para nos direcionar à barbárie.