Reforma Política proposta pelo atual Congresso eliminará de vez a voz da sociedade
Gabriel Brito e Valéria Nader | Publicado Originalmente no Correio da Cidadania
Ao lado dos retrocessos econômicos e regressões sociais pelos quais o país vem passando, corre-se grande risco degeneração da política e da democracia. Dentro do pacote de reformas conservadoras, existe uma que pode tornar a classe política ainda mais a alheia à população: a Emenda Constitucional (PEC) 352/2013, também conhecida como Reforma Política. Por conta disso, o Correio da Cidadania entrevistou o arquiteto Chico Whitaker, do Movimento Fé e Política e do Fórum Social Temático da Reforma Política – Pela Democratização do Poder.
“Precisamos falar de reforma política desde as manifestações de junho de 2013. Já se fala disso há muito tempo na sociedade. Ao mesmo tempo, a sociedade continua a se mobilizar por uma verdadeira reforma política, com coisas que efetivamente mudem o quadro, como o controle do financiamento de campanha. Isso, sim, é um escândalo nacional, porque a OAB já entrou com moção no Supremo, tem a maioria de 6 votos favoráveis e o Gilmar Mendes, simplesmente, sentou em cima”, afirmou.
Além de lembrar dessa manobra política, que se combina perfeitamente com a necessidade de aprovação da reforma pautada por Eduardo Cunha e companhia até setembro, a fim de valer nas eleições de 2016, Chico também traz alguns pontos que poderiam criar uma reforma mais democratizante. Sem dúvidas, o financiamento privado de campanha precisaria ser abolido, mas a própria maneira de tramitação dos Projetos de Lei de Iniciativa Popular, o instrumento das Medidas Provisórias e procedimentos de coligações e criação de partidos estão na lupa dos grupos e movimentos sociais que querem popularizar a discussão.
“Temos de fazer a reforma política para valorizar o controle da sociedade civil, através de organizações e movimentos sociais, que precisam ter mais voz e peso nos processos decisórios. Trata-se de contar menos com os partidos e mais com a organização da sociedade civil autônoma, horizontal, com perspectivas de mudar as atuais regras do jogo”, propôs.
Eis a entrevista.
Como você tem visto o contexto político em que estão colocadas as atuais discussões sobre a reforma política no Brasil, com a adoção da Emenda Constitucional (PEC) 352/2013, proposta pelo ex-deputado Cândido Vaccarezza (PT/SP) na legislatura passada, pelo presidente da Câmara Eduardo Cunha?
Vivemos uma situação política típica do quadro brasileiro: o oportunismo bateu a porta. No caso concreto, precisamos falar de reforma política desde as manifestações de junho de 2013. Já se fala disso há muito tempo na sociedade. E, obviamente, quando houve as manifestações vimos que muitas coisas precisavam mudar no sistema político para responder às atuais necessidades da sociedade civil. Naquele momento, a própria presidente Dilma propôs que se fizesse uma constituinte exclusiva, ou algo do tipo, para trabalhar especificamente o assunto.
A reforma política se tornou tema geral da sociedade, embora seu conteúdo ainda precise ser discutido. Na época, a Câmara fez uma comissão, que só trouxe posições anteriores, pequenos remendos ou detalhes muito ruins, como a legitimação dos financiamentos empresariais de campanha, o grande drama, que ganhou energia com a famosa Operação Lava Jato. São coisas que existem desde sempre no Brasil e configuram uma das maiores distorções da democracia, porque, evidentemente, com o peso do dinheiro, não necessariamente é eleito um representante do povo, e sim quem pode fazer mais propaganda e ‘comprar’ votos.
Acontece o que vemos: os presidentes da Câmara e do Senado (Eduardo Cunha e Renan Calheiros) foram eleitos, em certo sentido, quase como oposicionistas da Dilma. Não declaram essa posição porque o partido deles faz parte da base aliada. Mas como personalidades fazem oposição. E isso ficou ainda mais exacerbado com as complicações da Operação Lava Jato, já que ambos estão passíveis de investigação a respeito do dinheiro desviado da Petrobras. Assim, os dois estão ainda mais raivosos em sua atuação parlamentar.
O Eduardo Cunha tem um estilo particular de trator. Parece pensar: “se o problema no Brasil é reforma política, façamos já, imediatamente! E serei eu a conduzir a reforma que o povo está pedindo”. Aí, pega o projeto que já estava na Câmara, do Vaccarezza. Vivemos uma situação em que o Cunha demonstra autoridade e base parlamentar suficientes pra tratorar tudo que quiser e derrotar o Executivo em várias vezes, apesar de ser da base aliada. É um quadro tremendo.
Quais os movimentos e organizações populares que você ressaltaria como proponentes de uma reforma política alternativa, que se contraponha às medidas regressivas em andamento no Congresso? Poderia falar um pouco, por exemplo, da Iniciativa Popular de Lei por uma Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, liderada pela OAB Nacional e pela CNBB?
A sociedade continua a se mobilizar por uma verdadeira reforma política, com coisas que efetivamente mudem o quadro, como o controle do financiamento de campanha. Isso, sim, é um escândalo nacional, porque a OAB já entrou com moção no Supremo, e o Gilmar Mendes, simplesmente, sentou em cima. Naquele momento, até o ministro Marco Aurélio, numa entrevista, disse que não se tratava de um “pedido de vistas”, mas de “perder de vistas”. Ou seja, ele já sabia que a coisa ia emperrar.
É totalmente ilegal, pois desrespeita o regimento interno do STF. Mas está sendo feito. O argumento do Gilmar é de o assunto ser sério demais para o STF decidir. Deve ser decidido pela Câmara. Claro que ele não fala, mas obviamente o interesse não é bem esse. Até porque a petição da OAB já tinha sido aprovada pela maioria dos ministros, com 6 votos favoráveis à proposta de tornar ilegal o financiamento de campanha por empresas. No fundo, é uma jogada pra postergar, enquanto o Congresso apressa sua versão de reforma. Se sair essa reforma, será bem ruim.
Realmente, estamos em um drama. É muito possível que sejamos surpreendidos e, de repente, na calada da noite, as manobras sejam votadas quando todos estiverem desavisados. Estamos numa situação complicada. Os projetos que caminham por aí, principalmente o apoiado pela CNBB e OAB, são simples. Este, que foi mencionado, tem apenas 5 pontos, sendo o principal a questão do financiamento de campanha, que o Gilmar segura. É o ponto central, pois determina a representatividade do Congresso, como ilustram as famosas bancadas da bíblia, da bala, do boi…
Acho interessante observar que a sociedade está reagindo. Nesta mesma semana, a coalizão do Projeto de Reforma Política por Iniciativa Popular vai apresentar a reforma que a sociedade quer. Faremos atividades pra apresentá-lo no próprio Congresso Nacional. Devagarinho, vamos chegando a 1,5 milhão de assinaturas, número necessário para protocolá-lo, mas mesmo assim a ideia é apresentar imediatamente no Congresso, com firmeza.
Ao mesmo tempo, em junho, temos o Fórum Social Temático da Reforma Política – Pela Democratização do Poder, pensado antes de a atual reforma começar a andar no Congresso. O Fórum não visa apenas aumentar o número de pessoas que querem debater como a política pode ser feita. Uma reforma tem de agregar uma porção de pontos, como, no caso, da plataforma dos movimentos sociais, cujo caderno tem uma grande quantidade de aspectos.
E qual o grau de comprometimento dos movimentos sociais em geral com a proposta da CNBB e OAB?
Não vou especificar muito, mas os movimentos populares, sindicais, de saúde, moradia, educação, as comissões de justiça e paz, as igrejas progressistas (não aquelas amarradas aos negócios evangélicos) estão participando. No fundo, acontece um distanciamento enorme entre Congresso e sociedade. Uma tragédia. Mas não tem remédio e precisamos continuar insistindo. Vamos avançando.
Quais são as principais medidas que conformariam aquilo que, a seu ver, seria uma reforma política de cunho democrático e progressista? Poderia elencá-las e explicá-las?
Por exemplo, um bom ponto é a regulamentação da iniciativa popular, para torná-la mais fácil. Poderia ser mais fácil se fossem necessários só 0,5% do total de eleitores. Já estaria bom, seriam 750 mil assinaturas, algo enorme. Além disso, tem de regulamentar o plebiscito, que, depois da Constituição de 1988, ficou totalmente na mão do Congresso. Não há possibilidade de a população pedir um plebiscito. E algumas decisões deveriam passar por tal instância.
Há o problema da representatividade. Quem está no Congresso é por causa do financiamento de campanha, portanto, não funciona com representatividade. A própria questão da tramitação dos projetos: poderia ser diferente quando se tratasse de projetos de iniciativa popular. Outro assunto a ser trabalhado é o instrumento das Medidas Provisórias.
Por isso o Fórum tem nome e sobrenome: “pela democratização do poder”. Ou seja, nosso problema é o processo decisório, quem e como toma decisões, por fora de qualquer controle social. Uma porção de coisas a serem trabalhadas.
A plataforma dos movimentos é um verdadeiro livro de proposições. Não vamos fazer tudo de uma vez só, é preciso ser mais pontual, medida por medida. Mas de uma em uma já é muita coisa. O drama de tudo é que tal proposta será decidida por um Congresso não representativo. É um Congresso de má qualidade e retrógrado do ponto de vista da democracia, da vida e da economia do país.
Uma tal reforma, como dito, não teria muito futuro na mão do atual Congresso. Considera necessária, e factível, a implantação de uma Assembleia Constituinte para a reforma política?
A Assembleia Constituinte Exclusiva é uma ótima proposta. O que conseguimos em 1988 foi exatamente isso. Os constituintes estavam lá pra se dedicar somente a esta tarefa. Significa que as pessoas se dedicariam apenas a ela. Uma vez finalizada, a Assembleia Constituinte sairia e o Congresso assumiria com todas as suas prerrogativas.
Mas é muito difícil passar uma Constituinte Exclusiva no Congresso. Resta resistir, denunciar e continuar brigando, como é a perspectiva do Fórum. Temos de aumentar a discussão ao máximo, chegando em mais comunidades, grupos e cidades do país todo. Pra não ser pessimista, mas sendo realista, o que nos resta é nos preparar para o que vem depois, a saber, como o Congresso vai tratorar a vontade popular.
Eles vão se sacrificar muito mais, já que sabemos ser uma das instituições mais desacreditadas pela opinião pública. Vai aumentar o descrédito, o que acumula, por um lado, os riscos de parte da população achar que um regime de força e ordem pode resolver o problema do Brasil. A outra hipótese é conquistarmos, através da democracia, cada vez mais vitórias para que a vontade popular seja atendida e a política não seja praticada como negócio.
Voltando para o teor da reforma política proposta no Congresso, além do financiamento privado de campanha que você já mencionou, o que acha do teor que estão dando para questões como distritão, coligações, cláusulas de barreira, voto facultativo, coincidências entre todas as eleições etc.?
Todos os pontos têm de ser analisados. O distritão, por exemplo, é terrível. Porque os distritos, pequenos ou grandes, têm tipos de abordagem na representatividade muito ruins. Impedem, por exemplo, que as minorias sejam representadas. São minorias no início, depois podem se tornar maiorias. Mas não podem nem exercer o direito de participar do processo decisório, porque o distrito transforma a eleição em uma disputa majoritária, onde cada distrito elege só um representante, que, naturalmente, será do maior partido na região. Nunca o distrito elegerá como representante uma liderança de um partido pequeno, não dá, razão pela qual o sistema distrital alemão é misto. Tem isso de um lado, e, de outro lado, uma eleição por lista, independente de distrito, marcada por uma escolha partidária.
Se tivermos o distritão, e é muito possível que votem a favor, pode valer na próxima eleição. Esse é o dado que está apressando o Congresso para a reforma, porque tem de ser votado até setembro para valer na próxima eleição. E a perspectiva de haver distritos já na próxima eleição, de nível municipal, é um desastre. A representatividade fica totalmente distorcida porque somente os grandes partidos vão ter possibilidade de ganhar a eleição majoritária, não proporcional, que é por onde vão ter representantes para os parlamentos municipais, estaduais etc.
Esse problema tem de ser discutido, é um problema nosso de agora. E é muito importante que veículos como o Correio da Cidadania abram espaço, pois as pessoas precisam tomar consciência do que está acontecendo. É preciso fazer alguma coisa. Assinar o Projeto de Lei de Iniciativa Popular é o mínimo, mas devia ter muito mais. E os movimentos que estão lutando pelo plebiscito e pela constituinte exclusiva deveriam ser reforçados para o debate ganhar toda a sociedade.
Sobre essas propostas da OAB e da CNBB, de cunho mais progressista, como que você as coloca no contexto que temos hoje, com as dificuldades que uma sociedade capitalista impõe e num momento tão corrompido econômica e politicamente?
No mundo todo há a hegemonia destas ideias. E são ideias trágicas. Portanto, não é só a reforma política, mas o conjunto das políticas econômicas que tem de ser revisto. Atualmente, o mundo gira em torno do negócio, do lucro e temos um mundo com aumento da taxa mundial de produção e de consumo, como sabemos.
Pessoalmente, eu mesmo estou engajado em uma luta muito específica, que vai de encontro a um dos grandes negócios do mundo de hoje, fatal e mortífero: as usinas nucleares. Elas estão se multiplicando e grandes empresas estão vendendo cada vez mais projetos de usinas.
Isso é uma lógica do sistema dentro do qual estamos vivendo e, para superá-lo, a mudança é muito radical. É muito difícil, mas não podemos ficar parados porque assim vencerá a insanidade generalizada que está consumindo a natureza e nos levando ao desastre da humanidade. A partir da hora em que o globo estiver semeado de partículas radioativas, coisa que existiu quando a Terra apareceu, é o fim da espécie humana. Só pôde existir vida na Terra quando a radioatividade baixou e as raças puderam conviver com ela. Com a multiplicação de usinas, vamos causar mais aquecimento global, desastres ecológicos e radioatividade. É o fim do mundo, uma perspectiva muita séria.
Em minha opinião, nosso problema é de informação, de as pessoas saberem onde estão pisando, o que vem por cima delas. É um desastre, porque quem domina os grandes meios de comunicação é o próprio sistema, que não deixa passar nada. Contamos com parte da mídia, mas ainda é pouco pra chegar na massa manipulada pela maior parte dos meios de comunicação.
Como, finalmente, enxerga o atual governo frente a esta discussão – um governo que, ressalte-se, tantas vezes chegou a propor uma reforma política como forma de enfrentar a onda de descontentamento e protestos que se intensificou a partir de 2013?
O PT, no fundo, perdeu uma oportunidade histórica. É uma pena. Eu mesmo fui vereador pelo PT e saí num momento em que senti o partido ser engolido pela cultura política nacional e virar um partido como os outros. Caiu, descambou, transformou-se num partido eleitoral, que luta pra conquistar lugares, postos no executivo e legislativo.
Mas a mudança, de fato, não está mais no horizonte do partido. É difícil recuperar as origens e bandeiras. Outros partidos aparecem, mas sem força pra colocar a discussão… Aliás, outro ponto a ser revisto é a forma como se constituem os partidos, as regras de coligações etc.
O PT entrou no bolo geral e foi vencido pela lógica do pragmatismo, na qual o objetivo é chegar ao poder. Se for preciso vencer eleições, o partido se esforça para isso e pronto. E assim vale tudo, inclusive dinheiro tirado indevidamente de cofres coletivos, e não individuais ou partidários.
Na minha opinião, a passagem do PT é muito profunda, e já a denunciei há anos. São 10 ou 15 anos em que outra cultura política, do Brasil tradicional, totalmente pervertida em relação à democracia, entrou no partido. E é muito difícil, agora, mudar. Mas se os companheiros do partido fizerem tal mudança, serão saudados com muita alegria.
Temos de fazer a reforma política para valorizar o controle da sociedade civil, através de organizações e movimentos sociais, que precisam ter mais voz e peso nos processos decisórios. Trata-se de contar menos com os partidos e mais com a organização da sociedade civil autônoma, horizontal, com perspectivas de mudar as atuais regras do jogo.