Religião e política: disputas ideológicas e o avanço da extrema direita no Brasil
Cebes Debate desta segunda (30) discutiu a questão religiosa. Às vésperas da eleição municipal, lema integralista “Deus, pátria e família’ segue disputando espaços
Nas últimas décadas, observou-se a intensificação da participação de grupos religiosos organizados na esfera política, com grande incidência nas eleições. Eventos religiosos são cada vez mais transformados em palanques de apoio a correntes políticas e candidatos. Para parte da população, professar uma fé passou a ser sinônimo de reputação ilibada e habilitação suficiente para ocupar um cargo eletivo ou desempenhar funções no poder Executivo.
Embora esse fenômeno não se restrinja às igrejas neopentecostais e a outras denominações protestantes, é notório o crescimento da participação de evangélicos no debate público. Com presença expressiva nos três níveis do Legislativo, esses grupos de parlamentares, muitas vezes chamados de “bancada da Bíblia”, estão frequentemente ligados à pauta conservadora de costumes e à defesa dos interesses da elite econômica.
Para muitos analistas, essa participação ocorre em detrimento dos princípios de solidariedade cristã e do Estado laico, muitas vezes ameaçando o exercício de outras perspectivas de fé.
Essas questões e outras relacionadas à intersecção entre religião e política foram debatidas na edição desta segunda-feira (30) do Cebes Debate, que abordou o tema “Religião e Política nas Eleições”. O convidado desta semana foi o deputado federal Reimont (PT – RJ), que também é professor e teólogo. A mediação foi realizada pelo presidente do Cebes, Carlos Fidelis.
Fidelis, ressaltou a crescente participação de grupos religiosos no cenário político brasileiro, destacando a transformação de eventos religiosos em palanques eleitorais. Fidelis iniciou sua fala apontando que essa intensificação, embora não seja um fenômeno recente, tem se tornado cada vez mais visível e contundente, especialmente nos últimos anos.
O presidente do Cebes também destacou que, segundo muitos analistas, essa participação religiosa muitas vezes se dá em detrimento de valores como a solidariedade cristã e o princípio do Estado laico, podendo também ameaçar a tolerância religiosa.
Outro ponto abordado por Fidelis foi a disputa de diferentes correntes teológicas no campo religioso, como a Teologia da Libertação, a Teologia da Prosperidade e o que ele chamou de “Teologia da Dominação”. Segundo ele, essas perspectivas estão em constante conflito, tanto no seio da Igreja Católica quanto entre os segmentos evangélicos, especialmente na disputa entre grupos progressistas e conservadores. “Essas disputas afetam tanto a qualidade da participação política quanto o próprio funcionamento interno das confissões religiosas”, afirmou o presidente do Cebes, ressaltando a necessidade de debater o impacto dessas divisões na esfera pública.
O deputado Reimont lembrou da necessidade haver o discernimento entre as duas esferas. Ele fez uma referência a Paulo Freire, destacando a importância da “leitura do mundo” como etapa inicial do processo de alfabetização. Segundo ele, saber ler vai além de decifrar palavras e textos; trata-se de entender a realidade em que vivemos e interpretar suas dinâmicas sociais. Essa reflexão foi trazida para o debate sobre a relação entre religião e política, destacando como a fé, muitas vezes, é instrumentalizada pela política.
Reimont enfatizou que, embora fé e política dialoguem, é um erro acreditar que uma deve dominar a outra. Ele comparou a relação entre religião e política à de duas pessoas apaixonadas que preservam suas identidades individuais, sem se fundirem em uma só. “A política e a fé são autônomas, elas dialogam, mas continuam independentes em suas essências”.
Na visão do parlamentar, a instrumentalização da fé no campo político tem gerado uma distorção, afastando ambos os conceitos de suas essências libertadoras. Reimont defendeu que tanto a religião quanto a política só podem ser legítimas se forem libertadoras, ou seja, se proporcionarem ao indivíduo o poder de tomar sua vida em suas próprias mãos e buscar o transcendente. Para ele, uma religião que oprime, que estabelece preconceitos ou que não tolera o diálogo com diferentes crenças pode até carregar o nome de religião, mas não o é verdadeiramente. “Toda religião deve ser transformadora e libertadora”, destacou.
O deputado também criticou a prática de pessoas que, embora frequentem cultos ou missas, demonstram comportamentos de opressão e preconceito fora dos espaços religiosos. Para ele, essa contradição entre prática religiosa e ações cotidianas esvazia o sentido da fé.
Para, Reimont, e qualquer prática religiosa que justifique violência ou discriminação, como o uso de armas “em nome de Deus”, não entendeu o verdadeiro propósito da religião. Para ele, essas ações são profundamente humanas, ou melhor, desumanas, e não têm relação com a essência transcendente da fé. “Fazer essa leitura de mundo que toda e qualquer religião só é religião se ela for libertadora, e toda atividade política também deve ser libertadora”.
O deputado destacou que a disputa entre progressistas e conservadores, é uma divisão que não se limita às igrejas, mas permeia também a política, o empresariado e até os ambientes de saúde. Ele ressaltou que essa dualidade de pensamento – seja progressista ou conservadora – é natural em diferentes esferas da sociedade.
No entanto, o deputado destacou que o ponto central é o entendimento de que tanto a religião quanto a política devem existir com o propósito de transformar e libertar. “Se entendermos que a nossa religião existe para ser transformadora e libertadora, e que a nossa política existe para mudar a vida das pessoas, está tudo bem”, afirmou Reimont. Para ele, essa compreensão permite que se sigam adiante, mesmo com divergências, e que seja possível avançar “irmanados” por objetivos comuns de justiça social e liberdade.
Carlos Fidelis ampliou o debate, destacando que a busca por sentido na vida também é uma questão enfrentada por ateus, não sendo exclusiva de pessoas religiosas. Ele ressaltou que a construção de um propósito pode unir diferentes visões em torno de um mundo mais justo e solidário. No entanto, chamou atenção para uma característica da extrema direita, que, segundo ele, se baseia mais na destruição do que na construção. Fidelis observou que esses grupos mobilizam afetos negativos, como o ódio, sem oferecer propostas claras, como redistribuição de renda ou soluções para a fome. Em vez disso, limitam-se a discursos vagos de patriotismo e anticorrupção, sem enfrentar problemas estruturais.
Ele criticou a contradição de um país que se orgulha da cordialidade, mas discrimina mulheres, negros, pobres e pessoas com orientações sexuais fora do padrão heteronormativo. Fidelis também se disse perplexo com a proximidade de alguns grupos religiosos com o crime organizado e a benção de armas por líderes religiosos, além da hostilidade ao Papa Francisco, visto por esses grupos como comunista.
Para ele, essa disputa também é evidente no Congresso Nacional, onde, apesar das diferenças teológicas, algumas figuras religiosas se unem em defesa da solidariedade e do bem comum, valores fundamentais para uma sociedade justa.
Lema integralista e a mistura da religião com o estado – O deputado Reimont abordou com preocupação o avanço da extrema direita, destacando o lema “Deus, Pátria e Família”, que, segundo ele, é contraditório em suas práticas. Para o deputado, esses grupos, apesar de pregarem valores religiosos e patrióticos, na verdade desrespeitam a fé, a pátria e as famílias. Ele observou que esse crescimento não é exclusivo do Brasil, mas uma tendência mundial, influenciada por contextos globais.
Reimont comparou a atual ascensão da extrema direita ao retorno de práticas medievais, como a Inquisição, que ele vê nas atitudes intolerantes e repressivas de alguns grupos religiosos. Ele destacou o desrespeito por minorias, como a comunidade LGBTQIA+, pessoas em situação de pobreza e até aqueles que não professam fé. Apesar de sua prática religiosa, o deputado frisou que o verdadeiro caminho para se aproximar de Deus não é apenas pela fé, mas pelo exercício da solidariedade e do amor ao próximo. Para ele, a religião, assim como a política, só tem sentido se for libertadora e promotora de justiça social.
Ele também criticou a especulação financeira, citando como exemplo o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que, segundo Reimont, favorece os ricos com políticas que aprofundam as desigualdades, enquanto os mais pobres ficam ainda mais vulneráveis. Reimont destacou o discurso violento da extrema direita, que vai além da retórica e chega à ameaça física, lembrando episódios de agressão e violência política em diversas partes do país. Para ele, essa agressão não é apenas física, mas também simbólica, manipulando a fé e distorcendo conceitos como o “amai-vos” para justificar o ódio.
Reimont destacou a profunda diferença entre os valores pregados pela extrema direita e os defendidos por ele e seus aliados. Enquanto a extrema direita promove o ódio, a exclusão e a intolerância, ele afirma pregar o amor, a inclusão e a diversidade. Para o deputado, estar do lado que defende esses princípios é motivo de grande satisfação, e ele expressou sua alegria por lutar por uma sociedade mais justa e solidária.
Reimont destacou que as eleições de 2024 serão cruciais para o cenário de 2026, refletindo sobre a vitória de Lula em 2022. Apesar de derrotar o candidato do fascismo, ele lembrou que o movimento em si não foi completamente superado. Embora Lula tenha conquistado a presidência, o governo ainda enfrenta desafios, já que a representação no Congresso é limitada, com poucos deputados e senadores aliados.
Apesar disso, Reimont elogiou as conquistas do governo, como o Bolsa Família, Mais Médicos e a ampliação do SUS, além das conferências nacionais em diversas áreas. Ele ressaltou que, mesmo com dificuldades, o governo avançou em questões importantes.
Para Reimont, 2024 é fundamental para evitar o avanço do fascismo e preparar um cenário mais favorável para 2026, com um Congresso mais alinhado às pautas democráticas e sociais. Ele expressou sua esperança de que o fascismo não avance, sem buscar influenciar diretamente nas escolhas eleitorais.
O Cebes Debate completo está disponível no canal do Cebes no Youtube. Clique aqui para assistir.