Réquiem por uma utopia defunta às vésperas da eleição americana

artigo de José Luis Fiori publicado originalmente no site AmericaLatina.net.br

Tudo começou na madrugada do dia 10 de novembro de 1989, quando se abriram os portões que dividiam a cidade de Berlim. Depois, como se fosse um castelo de cartas, caíram os regimes comunistas da Europa Central, dissolveu-se o Pacto de Varsóvia, reunificou-se a Alemanha, e desintegrou-se a União Soviética. E o fim da Guerra Fria foi comemorado com se fosse a vitória definitiva da “democracia”, do “livre mercado” e de uma nova “ordem ética internacional”, orientada pela tábua dos “direitos humanos”.

Trinta anos depois, entretanto, o panorama mundial mudou radicalmente. A velha “geopolítica das nações” voltou a ser a bússola do sistema mundial; o nacionalismo econômico voltou a ser praticado pelas grandes potências e os grandes “objetivos humanitários” dos anos 90 foram relegados a um segundo plano da agenda internacional. Nesses 30 anos, o mundo assistiu à vertiginosa ascensão econômica da China, à reconstrução do poder militar da Rússia e ao declínio do poder global da União Europeia (UE).

Mas o mais surpreendente de tudo aconteceu no final deste período, quando os Estados Unidos se afastaram de seus antigos aliados europeus e voltaram-se contra os valores e as instituições da ordem “liberal e humanitária” que eles mesmos haviam criado, depois do fim da Guerra Fria. E todos se perguntam como foi que o mundo deu uma cambalhota tão grande, para frente e para trás, em tão pouco tempo? E o que passará agora com o mundo, depois das eleições presidenciais norte-americanas, de novembro de 2020?

Já se falou muito do papel que teve a globalização econômica e seus efeitos perversos, no desencanto com a “ordem liberal” dos 90: porque provocou um aumento geométrico da desigualdade entre os países, as classes e os indivíduos; e porque ficou associada a uma sucessão de crises econômicas localizadas que culminaram na grande crise financeira de 2008, que contagiou a economia mundial – a partir dos Estados Unidos – pelas veias abertas pela desregulamentação dos mercados globalizados. Mas existe um outro lado deste processo de autodestruição que em geral é menos mencionado, porque envolve um aspecto essencial da forma em que foi exercida a liderança mundial dos Estados Unidos, durante esses 30 anos.

A Guerra Fria terminou sem nenhum tipo de “acordo de paz”, e depois da dissolução da União Soviética, as potências vitoriosas não definiram entre si uma nova “constituição” para o mundo. Antes mesmo que se pudesse colocar em pauta esse problema, a vitória arrasadora dos Estados Unidos na Guerra do Golfo acabou impondo a vontade americana como princípio ordenador do “novo mundo”. Por isso se pode dizer que o “bombardeio teledirigido” do Iraque, em 1991, cumpriu papel análogo ao do bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki, em 1945: foi a hora em que se definiu – simultaneamente – uma nova “ética internacional” e um novo “poder soberano”, responsável – a partir daquele momento – pela arbitragem do “bem” e do “mal”, do “justo” e do “injusto” no sistema internacional. Com a grande diferença que, em 1991 – ao contrário de 1945 – não existia no sistema mundial nenhuma outra potência capaz de questionar os desígnios unilaterais dos EUA. Foram 42 dias de ataques aéreos contínuos, seguidos de uma invasão terrestre rápida e contundente, com poucas centenas de baixas americanas e cerca de 150 mil mortos iraquianos. A mesma forma de guerra “à distância”, que depois foi utilizada na Iugoslávia, em 1998, e também nas “intervenções humanitárias” da OTAN na Bósnia em 1995, e no Kosovo em 1999.

Muitos perceberam que a vitória americana na Guerra do Golfo havia consagrado uma nova “ordem ética” e um novo “poder soberano”, com capacidade de impor e arbitrar o novo sistema de valores em todo o mundo. Mas nem todos perceberam que esta nova ordem trazia consigo contradições e tendências próprias de um poder global quase absoluto, sem limites capazes de impedir seu desvio na direção da arbitrariedade, da arrogância e do fascismo, encobertas pela euforia da vitória e pela adesão entusiástica à nova ideologia da globalização liberal.

(…)

Isto explica por que a resistência ao poder americano acabou renascendo de dentro do próprio núcleo das velhas grandes potências do sistema interestatal, e da Rússia, em particular, no campo militar. Um momento decisivo dessa história aconteceu na Geórgia, em 2008, quando o poder imperial dos EUA e da OTAN – que se propunha a incorporar a Geórgia – encontrou seu primeiro limite depois do fim da Guerra Fria. A chamada “Guerra da Geórgia” foi muito rápida e talvez até passasse despercebida na história do século XXI, se não tivesse acontecido o inesperado: a intervenção das Forças Armadas da Rússia, que em poucas horas cercaram o território da Geórgia, numa demonstração contundente de que a Rússia havia decidido colocar um limite à expansão das tropas da OTAN para o Leste, vetando a incorporação da Geórgia como novo Estado-membro da organização. Foi exatamente naquele momento que a Rússia demonstrou, pela primeira vez, sua decisão e capacidade militar de opor-se ou de vetar o arbítrio unilateral dos EUA, dentro da nova ordem mundial do século XXI. Mais à frente, em 2015, a Rússia deu um novo passo nessa mesma direção, quando interveio na Guerra da Síria, sem consultas prévias e sem subordinação a nenhum outro comando que não fosse o de suas próprias Forças Armadas. Com sua intervenção militar na Síria, a Rússia já não estava se propondo apenas a vetar decisões e inciativas estratégicas dos EUA e da OTAN; impôs pelas armas seu direito de também arbitrar e intervir nos conflitos internacionais, mesmo que fosse contra os mesmos inimigos, e a partir dos mesmos valores defendidos por europeus e norte-americanos. E esta foi a grande novidade que mudou o rumo dos acontecimentos mundiais, ao questionar a “Pax americana”’ a partir dos mesmos princípios, e através dos mesmos métodos dos norte-americanos.

Do nosso ponto de vista, foi a surpresa e a gravidade desse “desafio” que levaram os Estados Unidos de Donald Trump a atacar com tamanha violência o seu próprio projeto “liberal, pacifista e humanitário” da década de 90,4 abrindo mão do seu “messianismo moral” e trocando suas convicções liberais, e humanitárias, pela defesa pura e simples do seu próprio “interesse nacional”.

Se Donald Trump for derrotado nas eleições presidenciais de novembro de 2020, e se os democratas elegerem Joe Biden como novo presidente norte-americano, é muito provável que se proponham a refazer as alianças tradicionais e a imagem cosmopolita e multilateral da política externa norte-americana. Mas os cristais já foram quebrados, e uma coisa é absolutamente certa: a utopia liberal e humanitária dos anos 90 está morta.


José Luis Fiori é professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia política Internacional, PEPI, coordenador do GP da UFRJ/CNPQ, “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”; coordenador adjunto do Laboratório de “Ética e Poder Global”; pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis, INEEP. Publicou “O Poder global e a nova geopolítica das nações”, Editora Boitempo, 2007; “História, estratégia e desenvolvimento”, Boitempo, em 201 ; e “Sobre a Guerra”, Editora Vozes Petrópolis, 2018.