Salvaram o HC sem uma boia para o SUS
Valor Econômico – 25/11/2011
O Hospital das Clínicas de São Paulo é o maior complexo médico do país. Sua administração está subordinada à secretaria estadual de Saúde e é lá que a Universidade de São Paulo forma seus médicos. Mais de um milhão de pessoas são atendidas todos os anos em um de seus 13 hospitais.
A grande maioria tem o atendimento garantido pelo Sistema Único de Saúde, mas como muitos dos hospitais da rede privada não cuidam de casos de alta complexidade, no tratamento de câncer e cardiopatias, por exemplo, pacientes com apólices de planos de saúde também acabam em seus leitos.
Há muitos anos a direção do HC viu no filão do atendimento aos planos de saúde uma saída para seus problemas de caixa. O Instituto do Coração (Incor), um de seus hospitais, hoje destina 20% dos atendimentos a portadores de apólices privadas. O procedimento foi batizado pelo obstetra José Aristodemo Pinotti, secretário de saúde de São Paulo no governo José Serra e falecido em 2009, de dupla porta.
Médico de Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva e diretor do Incor, o cardiologista Roberto Kalil disse ao repórter Morris Kachani, da “Folha de S.Paulo”, que os planos de saúde respondem por 40% da receita do Incor. É a intermediação da Fundação Zerbini, entidade de caráter privado, que dá cobertura jurídica à dupla porta do instituto.
Na semana passada, a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou projeto do governador Geraldo Alckmin (PSDB) que transformou o HC num tipo especial de autarquia e deu segurança jurídica aos contratos privados da instituição. De acordo com esse projeto, aprovado pelo placar de 58 a 19, o Hospital das Clínicas terá mais flexibilidade em seus convênios. O texto aprovado regulariza a receita privada e estabelece que o HC dê atendimento prioritário, mas não exclusivo, ao SUS.
O texto deixa o Sistema Único de Saúde no maior complexo hospitalar do país à beira da capitulação. Os diretores do HC podem ter razão quando afirmam que a nova legislação apenas regulariza um fato – o atendimento privado – e permite que se cobre por ele.
O ex-ministro da Saúde Adib Jatene, idealizador da CPMF, tem dito que o HC, sem contratos com a iniciativa privada, não pode como oferecer salários para manter seus melhores quadros ou investir na modernização de seus equipamentos.
Mas uma parte dos problemas financeiros do HC poderia ser resolvida se houvesse maior empenho na cobrança do ressarcimento dos planos de saúde pelo atendimento prestado aos seus usuários. Pacientes com apólices de planos de saúde têm o direito constitucional de ser atendidos em qualquer hospital público do país, mas lei federal de 1998 obriga os planos de saúde a ressarcir o SUS pelo atendimento. Como inexiste um cadastro nacional que facilite a identificação desses pacientes na triagem dos hospitais públicos, esse ressarcimento é residual.
A institucionalização da porta dupla solapa as bases do SUS porque os planos de saúde respondem a normas da Agência Nacional de Saúde no prazo e condições de atendimento. Seus pacientes, sob pena de as seguradoras serem multadas, não podem ficar sujeitos às mesmas filas de meses ou anos para a marcação de consultas e cirurgias a que um paciente do SUS é submetido.
Dentro da mesma instituição, uma parcela dos pacientes tem como garantia de atendimento a Constituição. A outra, uma apólice privada. Pela lei aprovada, o HC terá completa autonomia de gestão para arbitrar um e outro atendimento. E a razão por que os segurados terão mais direitos é simples. Se esses pacientes tiverem seus prazos de marcação de consulta e cirurgia sujeitos às condições vigentes no SUS, as seguradoras serão multadas pela Agência Nacional de Saúde.
Na situação inversa, a dupla porta é a alma do negócio. Pela lei, os hospitais privados têm a obrigação de fazer um determinado número de atendimentos do SUS. Para atender as exigências da lei, os hospitais vips de São Paulo montaram unidades em favelas ou assumiram a gestão de hospitais públicos na periferia. Dessa maneira seus clientes privados não ficam misturados aos da rede pública. E não há Constituição – nem Agência Nacional de Saúde – que garanta o mesmo pronto-socorro.
Adriano Diogo, um dos 16 deputados do PT que votaram contra o projeto de Alckmin (os outros oito ausentaram-se da votação), diz que a votação da semana passada coroa uma visão de saúde pública que preside os governos do PSDB em São Paulo e que tem, em grande parte, inspirado administrações de outros partidos, inclusive o seu.
Primeiro vieram as Organizações Sociais (OS). Em 1998, no governo Mário Covas (PSDB), a Assembleia aprovou a administração dos novos hospitais públicos por empresas privadas por meio de contratos de gestão com as OS. Em 2006 Claudio Lembo (DEM) assumiu o governo para Alckmin disputar a Presidência. Enviou à Assembleia o projeto de lei do HC que acabaria aprovado apenas na semana passada. Em 2009 novo projeto permitiria que todos os 29 hospitais estaduais passassem a ser administrados por OS.
O ex-governador José Serra (PSDB) foi o ponto fora da curva ao vetar uma emenda a este projeto apresentada em plenário por uma deputada de seu partido. De acordo com o artigo aprovado, 25% das vagas dos hospitais administrados por OS seriam destinados ao atendimento de usuários de planos de saúde. Serra vetou o artigo sob o argumento de que a relação dos hospitais públicos com os planos de saúde deveria se dar sob a forma de ressarcimento, como previsto em lei federal.
A reserva de vagas nas Organizações Sociais seria recolocada em pauta em 2010, quando Alberto Goldman assumiu o Palácio dos Bandeirantes para Serra disputar a Presidência. A Assembleia Legislativa aprovou projeto com esse teor mas a justiça suspendeu sua eficácia.
Adriano Diogo conta que foi depois dessa ação judicial que os catedráticos da USP, médicos de todo o arco partidário brasileiro, entraram em campo. Pretendem ter salvado o HC, mas ainda não apareceu a boia para o SUS.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política.