Saturação e projeto
Saul Leblon em Carta Maior
A rapidez e a abrangência dos acontecimentos em marcha turvam a compreensão mais geral do que se passa no país.
Sentenças frívolas e ligeirezas interessadas tentaram instrumentalizar o aluvião desregrado, comprimindo-o entre as margens de uma canaleta estreita.
Foram atropeladas.
A mídia conservadora encabeça a série dos revezes.
Movida inicialmente pelo indisfarçável objetivo de desgastar gestões progressistas – na esfera municipal e federal— os veículos conservadores foram rapidamente desalojados da carona desautorizada.
Da sofreguidão convocatória partiram para o linchamento dos ‘vândalos’.
Em seguida, foram atropelados pela truculência repressiva, acobertada, no caso de São Paulo, pelo governo estadual que apoiam.
Recuaram, entre estupefatos e perplexos.
O que se viu nas últimas horas espraiou essa mesma perplexidade nas diferentes dimensões da vida política e partidária.
Em 11 capitais, milhares foram às ruas.
Os 20 centavos que motivaram a mobilização original em São Paulo , no dia 6 de junho, tornaram-se ainda mais irrisórios diante da abrangência e da intensidade do que se vê, 12 dias depois.
O que está em jogo é muito mais do que caraminguás.
As ruas requisitam uma nova agenda política para o Brasil.
Não significa desqualificar conquistas e avanços preciosos dos últimos anos.
Mas a história apertou o passo. Talvez até porque a musculatura do percurso agora o permite.
Mas a verdade é que as engrenagens e canais disponíveis não souberam interpretar o vapor acumulado nessa marcha batida.
Um viés economicista pretendeu resolver na macroeconomia – à frio – aquilo que pertence ao escrutínio permanente da democracia: as escolhas do futuro e os sacrifícios do presente.
Restritas, em grande parte, à negociação parlamentar, essas escolhas foram blindadas com o ferrugem dos interesses consolidados.
Com os desvios sabidos e as consequências conhecidas.
As ruas requisitam um aggiornamento da agenda política brasileira.
A inauguração de um novo ciclo histórico depende de programas e projetos que reflitam esse sentimento difuso que brota de norte a sul.
Saturação diante do caos urbano.
Angústia coletiva com o definhamento da dimensão pública da vida.
Opressão da existência individual, sobrecarregada de demandas coletivas ainda não contempladas.
Insensibilidade da representação política tradicional diante do grito entalado no fundo do peito de milhões que sacolejam diariamente nos ônibus e metrôs lotados.
Tudo isso e muito mais que isso.
No capitalismo globalizado não temos mais o ‘privilégio’ do sofrimento exclusivamente local.
A ordem neoliberal tornou-se uma usina de desordem urbi et orbi.
Líderes não lideram.
Mercados mandam. Governantes obedecem.
A soberania nacional tornou-se intrinsecamente subversiva e disfuncional. Ao mesmo tempo e com igual intensidade.
Os instrumentos convencionais de escrutínio coletivo não respondem aos estímulos.
As urnas decidem; o dinheiro desautoriza. A mídia abjura.
Os fundamentos do sistema perderam a aderência da sociedade.
Como um trem fora dos trilhos, o que seria o fim da História forma hoje um comboio desgovernado, que marcha ora na inércia, ora fora dos trilhos.
Mas não cai. E não cairá por si.
A liderança do processo brasileiro está em aberto.
Mais que isso.
A ausência de uma plataforma capaz de dar unidade e coerência a aspirações fragmentadas e avulsas pode asfixiar o que as ruas tentam dizer.
Vem da Espanha reluzente de protestos na Praça do Sol um alerta desconcertante.
Madri e Barcelona consagraram-se como o epicentro da indignação global.
Desde 15 de maio de 2011, quando o ‘Democracia Já’ convocou uma manifestação na Praça do Sol, até os protestos em 92 países, em 15 de outubro de 2011, passaram-se fulminantes cinco meses de ascensão linear das ruas.
A passeata original deu lugar a um acampamento formado por um mar de indignados.
A ocupação na Praça do Sol resistiria por 79 dias.
O termo ‘indignado’ globalizou-se.
Surgiu o ‘Ocupe Wall Street’, que mirou com argúcia o alvo da indignação: o dinheiro sem pátria e a pátria rentista sem fronteira, mas detentora de governos e Estados.
Em outubro de 2011, o sentimento nascido na Praça do Sol tornou-se o novo idioma político global, compartilhado por um milhar de cidades em todos os continentes.
Mas nem por isso imune às sombras.
No momento em que as praças rugiam a insatisfação de milhares de vozes, o voto popular consagrava nas urnas o Partido Popular, de Aznar.
A cepa herdeira do franquismo obteve uma vitória esmagadora nas eleições espanholas de 20 de novembro de 2011.
A votação recebida pelo conservadorismo, que hoje esfola e sangra o povo espanhol, estendendo o desemprego a 52% de sua juventude, garantiu-lhe, ainda, maioria folgada no Parlamento.
O paradoxo do ‘sol e da escuridão’ não pode ser esquecido, nem minimizado pelo frescor da indignação que ecoa agora de uma dezena de capitais do país.
Hoje, ninguém é de ninguém.
Em política, como dizem, com razão, suas ‘raposas’, não existe vácuo.
Na Espanha, a vitória eleitoral do ultra-conservadorismo, em 2011, só foi possível porque a abstenção, sobretudo jovem, atingiu proporções epidêmicas no berço mundial dos indignados.
A exemplo do que ocorreu na Espanha, nos EUA e, mais recentemente, na Itália , em algum momento os indignados brasileiros serão chamados a refletir – talvez precocemente – sobre as escolhas do poder.
O poder de Estado.
Os compromissos que a luta pelo poder impõe.
A impossibilidade de ignorá-la; e, sobretudo, a escolha da melhor estratégia para pautar o seu exercício, a cada movimento da história