Saúde das mulheres brasileiras: o que celebrar?
No Brasil houve grande evolução nas concepções políticas sobre a temática da saúde das mulheres e dos direitos sexuais e reprodutivos. Ao valorizar o desenvolvimento dos estudos de gênero em saúde e a aplicação da teoria das relações de gênero aos fenômenos relacionados às doenças e mortes das mulheres fica reconhecido o seu potencial de apontar alternativas de mudanças na saúde. Ana Maria Costa, feminista, doutora em Ciências da Saúde, integrante do GT Gênero e Saúde da Abrasco e Presidente do Cebes nos convida à uma reflexão no Dia Internacional da Mulher.
A despeito de todos os avanços no plano do conhecimento, as politicas de saúde para as mulheres se estreitam à abordagem focalizada. Na prática cotidiana, dificuldades de acesso e má qualidade dos serviços exigem transformações dos profissionais, dos serviços e dos gestores de saúde.
Para a construção ou formulação de uma política de saúde é necessário conhecer e valorizar os problemas do grupo ao qual se destina, atribuir importância e prioridade política e também rever os caminhos já percorridos reorientando as suas diretrizes e estratégias. Nessa perspectiva, para uma política de saúde das mulheres é necessário analisar os valores sociais, as discriminações de gênero associados a saúde feminina e buscar mecanismos para fortalecer novas correlações de forças na sociedade que promovam valores para mudar as condições atuais subjacentes às desigualdades e às iniquidades em relação às mulheres.
As ações desencadeadas no setor da saúde são importantes, mas ainda insuficientes. De fato, são necessárias mudanças e ações articuladas dos diversos setores de governo e da sociedade com politicas intersetoriais para a promoção da saúde das mulheres e dos direitos sexuais e reprodutivos. A sociedade deve se responsabilizar na compreensão ampla e solidária do aborto como recurso para as mulheres que engravidam sem o desejar. A atual condição clandestina do aborto tem importância indiscutível na saúde pública, no adoecimento e na morte das mulheres.
A medicalização como prática abusiva e desnecessária tem as mulheres como alvo ocasionando uma verdadeira expropriação do corpo feminino. Esta condição é presente tanto no abuso das laqueaduras tubárias como nas taxas campeãs de cesarianas ou mesmo na prescrição sem critérios para a reposição hormonal nas mulheres em climatério.
É reconhecido que a prática indiscriminada da cesariana, além de elevar os custos hospitalares, tem relação direta com a morte materna. A reposição hormonal por outro lado, além de alimentar a indústria farmacêutica, traz riscos reais à saúde das mulheres e tem seus benefícios questionados.
Movimentos sociais especialmente os atuantes na defesa de mais equidade para a população negra e na defesa da livre orientação sexual, têm advertido o SUS sobre a presença de discriminações nos serviços ou omissões de oferta de demandas por parte do sistema. Estas situações se manifestam tanto no que diz respeito à ausência de políticas ou de atitudes e práticas dos profissionais. Nesse contexto, é que as mulheres lésbicas, transexuais e negras reclamam por respeito e reconhecimento de suas demandas e especificidades na atenção e cuidado à saúde e, ao dar voz às suas necessidades fornecem outros ângulos que reafirmam a complexidade da saúde, particularmente, a das mulheres.
O cenário epidemiológico para a saúde da população feminina, cada vez mais complexo, é acentuado pelo desvendamento de novas situações e o agravamento de outras existentes. A AIDS alastra-se entre as mulheres, a violência e as doenças cardiovasculares agregam-se aos cânceres ginecológicos e à mortalidade materna. De uma forma geral, para as mulheres, os indicadores de atenção e cuidado à saúde que vêm sendo divulgados pelo Ministério da Saúde , são positivos e corroboram a diminuição da mortalidade materna, 81% das mulheres têm acesso a métodos contraceptivos, 89% das gestantes realizam quatro ou mais consultas de pré-natal e 97% realizam parto com profissionais de saúde qualificados, e 98% dos partos são institucionais, ou seja, hospitalares.
A redução da mortalidade materna foi de 46% entre 1990 e 2009. Em 1990, a RMM corrigida foi de 139 óbitos por 100 mil NV, caindo para 68 em 2009 .No entanto, nos últimos anos observa-se diminuição na velocidade de queda da RMM, principalmente a partir de 2001. O fato pode estar relacionado às diversas iniciativas adotadas no SUS que são voltadas à melhoria das informações, como é o caso da estratégia para redução dos óbitos por causas mal definidas, a autópsia verbal, a busca ativa de óbitos e nascimentos nos estados das regiões Norte e Nordeste onde há baixa notificação, e a implantação da vigilância do óbito fetal, infantil, materno e por causas mal definidas.
A ampliação do acesso aos serviços de saúde é resultado do SUS, mesmo que a universalidade real bem como a equidade constituam ainda grandes desafios. Contrapondo aos seus potenciais benefícios , a ampliação do acesso a serviços de saúde para as mulheres, tem ocasionado maior medicalização particularmente em termos de cesariana, episiotomias e uso abusivo de exame ultrassom.
Desde os anos oitenta o Brasil desponta no cenário mundial como campeão das cesarianas, apesar do reconhecimento dos riscos para mulheres e recém nascidos que esse procedimento envolve. Associado ao processo de trabalho dos profissionais médicos e, ao mesmo tempo a um fetiche na cultura de consumo para as mulheres, nos últimos anos algumas iniciativas foram adotadas para qualificar e reduzir a indicação do parto cirúrgico.
Acesso , expressão do direito à saúde
O acesso a cinco ou mais consultas durante o pré natal é definido como critério básico para a qualidade desta modalidade de atenção. Em 1981, 40,5% das gestantes receberam cinco ou mais consultas enquanto em 2006/07 esta cobertura ampliou para 80,9%, embora a cobertura de vacinação antitetânica atingiu apenas 76,9% das gestantes. Entretanto, ao mesmo tempo que se observa um crescimento do parto institucionalizado de 79,6% em 1981 para 98,4% em 2006/07, o crescimento da ocorrência dos partos por cesariana passa nesse período de 24,1 % para 43,8 %. (Fonte: SISPRENATAL/DATASUS)
A desigualdade de acesso aos serviços de saúde para as mulheres grávidas, parturientes ou aquelas que provocam aborto inseguro, é responsável pelo fato de que as mulheres negras, jovens, pobres e residentes em áreas peri-urbanas sejam as mais afetadas pela morte materna. Em virtude destas dificuldades de acesso, a mulher negra tem três vezes mais riscos de morrer de aborto inseguro que as mulheres brancas.As dificuldades ou falta de acesso aos serviços de saúde configuram uma injusta desigualdade e atinge especialmente as pessoas residentes nas áreas rurais e no interior da Amazônia e do Nordeste e também aquelas que residem nos 10% dos municípios brasileiros, que não têm médicos.
Aborto: problema de saúde pública e violação dos direitos das mulheres
É significativa a presença do aborto como causa da mortalidade materna, apesar de ser um evento subnotificado em virtude da clandestinidade. Do ponto de vista médico, a interrupção da gravidez quando feita sob condições tecnológicas adequadas, não oferece riscos para as mulheres. Na situação atual de ilegalidade as mulheres grávidas que não querem ou não podem por qualquer razão prosseguir na gestação acabam realizando o abortamento.
O aborto realizado de modo clandestino envolve riscos à saúde, mas os riscos não são iguais para todas as mulheres já que as de classe social mais altas buscam serviços que, mesmo clandestinos, são melhores. Por ser causa de morte e de adoecimentos de milhares de mulheres, o aborto ilegal deve ser tratado como um grave problema de saúde pública. A solução para isso é a retirada da condição da ilegalidade da interrupção voluntária da gravidez na legislação brasileira.
Além dos danos à saúde, a criminalização do aborto constitui uma violação aos direitos sexuais e reprodutivos, consequentemente aos direitos humanos. Têm sido muitas as tentativas de aprovação de projetos de lei para avançar a democracia nacional, ampliando os permissivos legais ou mesmo descriminalizando o aborto. Nos últimos anos a sociedade tem debatido com maior seriedade e compromisso sobre o assunto. Entretanto esse debate não tem sido fácil, especialmente quando conduzidos pelos dogmas religiosos como são as posições da, cada vez maior, bancada cristã evangélica do Congresso Nacional, determinados a eliminar toda possibilidade de aprovação naquela Casa, de projetos dessa natureza.
Finalizando, aborto é uma questão para a democracia. As mulheres esperam pela sua legalização e pela criação de serviços de saúde dignos que possam acolhê-las nesse momento hoje vivido com abandono, solidão e riscos.