Saúde em Debate v.44 nº 127

A esperança impulsiona, alimenta, move e fortalece a utopia

Maria Lucia Frizon Rizzotto1,2, Ana Maria Costa1,3, Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato1,4

1 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)  – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
2 Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) – Cascavel (PR), Brasil.
3 Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS)  – Brasília (DF), Brasil.
4 Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ), Brasil.

ESTE EDITORIAL, QUE ENCERRA AS NOSSAS ATIVIDADES DE 2020, não poderia ter outro tom que não fosse de tristeza e indignação. Aproximamo-nos de 200 mil mortes decorrentes da Covid-19, com franca elevação do número de casos e óbitos desde outubro e dramática previsão de aumento para os primeiros meses do ano vindouro em virtude das aglomerações de final de ano. O povo brasileiro segue entregue ao vírus sem que medidas adequadas e oportunas por parte do governo federal sejam adotadas para salvar vidas. O editorial1 da revista ‘The Lancet’, de maio de 2020, alertou sobre os riscos sanitários para o País decorrentes da má condução da crise atribuída ao governo federal deixando que o vírus circulasse livremente e ganhasse o território nacional. Esse editorial, intitulado ‘So What?’, repete uma frase do presidente, que, quando interpelado sobre as mortes e a pandemia, respondeu, chocando o mundo: E daí?

Na mesma direção, o editorial2 da revista ‘Saúde em Debate’, de junho de 2020, adverte sobre a ausência de um plano nacional de enfrentamento da pandemia, obrigando estados e municípios a agirem sem coordenação e apoio do governo federal. Propostas e estratégias racionais, fundamentadas em conhecimento científico, foram desconsideradas, sendo substituídas por discurso ideológico que promoveu o negacionismo, com repercussão negativa nas medidas de prevenção como uso de máscaras e distanciamento social, além de ‘prescrever’ e divulgar falsas ilusões terapêuticas sobre as quais ainda não se dimensionaram os malefícios no curso da pandemia e da doença.

A farta produção científica que o Brasil vem divulgando acerca da pandemia e as suas circunstâncias de enfrentamento apontam que grande parte das mortes poderia ter sido evitada se tivéssemos vontade política e adotado as medidas consequentes e eficazes. Infelizmente, esta pandemia encontrou a República do Brasil presidida por uma pessoa despreparada para o cargo, sem empatia e insensível à dor das milhares de pessoas que perderam entes queridos, amigos, colegas de trabalho e companheiros. Para além desse perfil do presidente, o conjunto de seu governo vem se aproveitando do sofrimento do povo para aplicar medidas perversas de uma política econômica que esvazia as chances de um Estado soberano e com justiça social. Ao lado disso, esse governo e suas alianças promovem a mais danosa política ambiental e a escolha de um caminho isolado nas relações internacionais, em especial neste momento de extrema necessidade e dependência de tecnologias e insumos para o controle do novo coronavírus. O governo não é só incompetente em administrar o País na pior crise sanitária de nossa história. Ele trabalha contra os interesses das e dos brasileiros, deixando mortos pelo caminho, mentindo e fazendo descaso do sofrimento e aprofundando as condições de pobreza, com uma política econômica austericida que reduz o investimento público, considerado um modelo de política tosca, antiquada e de ineficácia comprovada em todo o mundo, mesmo entre teóricos conservadores.

O presidente que se elegeu prometendo uma nova política atua da forma mais atrasada no conluio com o ‘centrão’, à custa de poderosas transações e com o dinheiro público que ele afirma não ter para combater o vírus e estender o auxílio emergencial.

Ao encerrar o ano, destacamos o trabalho realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) neste momento tão desafiador, especialmente para as entidades da luta pela Reforma Sanitária. Em meio às diversas mobilizações e posicionamentos públicos, o Cebes se articulou com dezenas de entidades do campo da saúde para formar a Frente pela Vida, a qual, diante da visível ausência de um plano de enfrentamento da pandemia, mobilizou estudiosos de todas as disciplinas para elaborar o Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da Covid-193, oferecendo-o ao governo federal e aos governos das instâncias subnacionais como contribuição das entidades da Reforma Sanitária.

No plano editorial, publicamos, além dos números regulares, diversos números especiais da revista ‘Saúde em Debate’, sendo um deles dedicado ao tema da pandemia. No campo político, o Cebes tem atuado no Congresso Nacional para garantir financiamento adequado ao Sistema Único de Saúde (SUS) combatendo a EC-95 que congelou o investimento público por 20 anos, o que significa a pá de cal no projeto do SUS-Constitucional, ou seja, universal, integral e resolutivo. Nossas preocupações se voltam agora não apenas ao agravamento da pandemia, mas também para a ausência de garantias de vacinas suficientes para imunizar a nossa população.

Nesse turbilhão de ativismo e formulação de propostas, avançamos ainda mais criando o Cebes Debate, um canal com programação sobre os temas importantes para a conjuntura e para a saúde, direcionado a todo o público, além de programas de debates internos entre os núcleos regionais ou temáticos que integram o Cebes. Toda a nossa luta esse ano converge para o combate à pandemia e para o fortalecimento do SUS, que, apesar de subfinanciado, está fazendo a diferença e salvando vidas.

Mergulhados neste caos político e administrativo de cunho genocida, não podemos deixar de celebrar a resistência, com quem contamos para sairmos dessa crise abissal. Mais que nunca, é imprescindível reafirmar e valorizar que não estamos sós nomeando e homenageando aqueles que lutam e trabalham pela vida e pelos valores da solidariedade humana.

Saudamos nossos cientistas que trabalham dia e noite para encontrar uma vacina que consiga proteger a população e interromper a transmissão do vírus;

Homenageamos nossos milhões de trabalhadores da saúde que, mesmo cansados e esgotados pelas longas jornadas e pelo estresse que sofrem cotidianamente, continuam à frente desta guerra contra o vírus, mesmo sabendo que isso pode lhes custar a vida;

Celebramos nossos pesquisadores que em suas áreas buscam estudar e compreender a realidade brasileira e oferecer soluções para nossos problemas;

Manifestamos nosso respeito aos milhares de profissionais e servidores públicos que se dedicam a atender a população nos serviços públicos – na saúde, na assistência, na educação, na previdência –, a despeito do desprezo do governo pelo seu trabalho;

Nossa admiração e solidariedade aos milhares de professores que se dedicam a fazer com que as crianças e os jovens sofram menos com o distanciamento social;

Celebramos a solidariedade entre as famílias que se unem para enfrentar o sofrimento pelas perdas e as dificuldades financeiras diante do desemprego e da falta de apoio do governo;

Renascem nossas esperanças com as associações, os movimentos sociais, os movimentos de bairro, que têm desempenhado papel crucial no apoio concreto às famílias e comunidades, na organização da resistência aos desmandos do governo federal e de governantes ausentes no atendimento às demandas da população;

A presença da arte na humanidade é essencial, e a produção artística opera como registro subjetivo revelando os sentimentos diante da realidade. Nas palavras de Adorno4(154), “o conteúdo de verdade das obras de arte funde-se com o seu conteúdo crítico”, um conteúdo que não se encontra “fora da história, mas constitui a sua cristalização nas obras”.

Na diversidade das manifestações artísticas, artistas de todas as artes têm registrado os tempos de recolhimento e quarentena provocados pela pandemia em todo o mundo. Em um esforço de iluminar nossa resistência e o otimismo da vontade necessário para temperar o elevado pessimismo da razão desses tempos, trazemos poetas que representaram em verso e em prosa este momento de dor e sofrimento da humanidade, zelando também pela esperança de justiça que haveremos de conquistar.

Moraes Moreira5, instigante compositor de músicas e excelente letrista que perdemos no ano de 2020, publicou sua última obra, o cordel ‘Quarentena’, que além de expressar sobre o medo do vírus, critica e denuncia outras mazelas passadas e presentes do Brasil.

Eu temo o coronavirus e zelo por minha vida, mas tenho medo de tiros também de bala perdida… eu digo não ao machismo também a misoginia, tem outros que eu não aceito é o tal do preconceito e as sombras da hipocrisia…

Que as mensagens dos poetas nos contaminem e nos fortaleçam neste ano novo que certamente exigirá luta e resistência de todos e todas nós; afinal, em tempos de crises, de cólera, de ódio e de intolerância, são fundamentais coragem, ação e utopia.

Concluímos este editorial com o coração pleno de esperança de que o processo civilizatório assuma o curso da construção de um mundo melhor, citando o poema ‘Esperanza’ do cubano Alexis Valdés6, escrito no decorrer da pandemia.

Cuando la tormenta pase
Y se amansen los caminos
y seamos sobrevivientes
de un naufragio colectivo.

Con el corazón lloroso
y el destino bendecido
nos sentiremos dichosos
tan sólo por estar vivos.

Y le daremos un abrazo
al primer desconocido
y alabaremos la suerte
de conservar un amigo.

Y entonces recordaremos
todo aquello que perdimos
y de una vez aprenderemos
todo lo que no aprendimos.

Ya no tendremos
envidia pues todos habrán sufrido.
Ya no tendremos desidia
Seremos más compasivos.

Valdrá más lo que es de todos
Que lo jamas conseguido
Seremos más generosos
Y mucho más comprometidos

Entenderemos lo frágil
que signi?ca estar vivos
Sudaremos empatía
por quien está y quien se ha ido.

Extrañaremos al viejo
que pedía un peso en el mercado,
que no supimos su nombre
y siempre estuvo a tu lado.

Y quizás el viejo pobre
era tu Dios disfrazado.
Nunca preguntaste el nombre
porque estabas apurado.

Y todo será un milagro
Y todo será un legado
Y se respetará la vida,
la vida que hemos ganado.

Cuando la tormenta pase
te pido Dios, apenado,
que nos devuelvas mejores,
como nos habías soñado.

SUMÁRIO

EDITORIAL
A esperança impulsiona, alimenta, move e fortalece a utopia | por Maria Lucia Frizon Rizzotto, Ana Maria Costa, Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato

ARTIGO ORIGINAL
Gasto federal com políticas sociais e os determinantes sociais da saúde: para onde caminhamos? | por Fabiola Sulpino Vieira

Tendências da mercantilização no SUS do estado de São Paulo: análise territorial dos gastos com convênios e contratos de gestão com Organizações Sociais | por Ligia Schiavon Duarte, Jair de Abreu Leme Junior, Julia Amorim Santos, Luiz Victor Felipe, Áquilas Nogueira Mendes

A práxis desenvolvida no âmbito do Conselho Municipal de Saúde em um município de São Paulo | por Bárbara Alves dos Santos, Fernanda Bergamini Vicentine, Luana Pinho de Mesquita Lago, Wilson Mestriner Junior

Adaptação transcultural e validação do instrumento Parental Health Literacy Activities Test (PHLAT) | por Francielle Brustolin de Lima Simch, Claudia Silveira Viera, Mauricio Bedim dos Santos, Beatriz Rosana Gonçalves de Oliveira Toso

Per?l epidemiológico de pacientes com câncer de uma área com alto uso de agrotóxico | por Thaís Bremm Pluth, Lucas Adalberto Geraldi Zanini, Iara Denise Endruweit Battisti, Erikson Kaszubowski

Uso de agrotóxicos e mortalidade por câncer em regiões de monoculturas | por Lidiane Silva Dutra, Aldo Pacheco Ferreira, Marco Aurélio Pereira Horta, Paulo Roberto Palhares

Acidente de trabalho grave: per?l epidemiológico em um município do oeste do Paraná | por Bruna Tais Zack, Claudia Ross, Leda Aparecida Vanelli Nabuco de Gouvêa, Nelsi Salete Tonini

Aspectos contextuais na construção da cogestão em Unidades Básicas de Saúde | por Giovanna Cabral Doricci, Carla Guanaes-Lorenzi

Comportamento reprodutivo em mulheres ribeirinhas: inquérito de saúde em uma comunidade isolada do Médio Solimões, Amazonas, Brasil | por Ivone Cabral, Wilsandrei Cella, Silvia Regina Freitas

A atenção à saúde dos reclusos em Maputo: é viável avaliar? | por Cremilde Anli, Marly Marques da Cruz, Luisa Gonçalves Dutra de Oliveira

Itinerários vividos, histórias narradas: gradientes de autonomia entre bene?ciários do Programa ‘De Volta para Casa’ | por Alyne Silva, Ale? Aleixo, Camilla Silva, João Duarte, Maristela Moraes

Violência institucional e enfermidade mental: narrativas de egressos de um manicômio da Bahia | por Antonio José Costa Cardoso, Gabriela Andrade da Silva, Renê Luís Moura Antunes, Jaqueline Leu Santos, Daniela Viana da Silva, Samuel Martins de Jesus Branco, Enrique Araujo Bessoni

O habitar na reabilitação psicossocial: análise entre dois Serviços Residenciais Terapêuticos | por Júlia Souza Acebal, Guilherme Correa Barbosa, Thiago da Silva Domingos, Silvia Cristina Mangini Bocchi, Aline Tieme Uemura Paiva

Avaliação da implantação de um Centro de Atenção Psicossocial em Pernambuco, Brasil | por Gilcele Marília da Silva, Eronildo Felisberto, Isabella Samico, Ana Coelho de Albuquerque

Uso de drogas e cuidado ofertado na Raps: o que pensa quem usa? | por Milena Vitor Gama Duarte, Gabriela da Silva Barros, Barbara E. B. Cabral

As psicologias construídas no SUS: possibilidades e desa?os pro?ssionais no agreste pernambucano | por Vanessa Alves de Souza, Érika de Sousa Mendonça

O cuidado psicossocial no campo da saúde mental infantojuvenil: desconstruindo saberes e reinventando saúde | por Julie de Novaes Tavares

Trajetórias compartilhadas: experiências de estudantes, usuários e familiares de serviços de saúde mental em ações de ensino-aprendizagem em saúde | por Maria Ines Badaró Moreira

Satisfação de negros e não negros assistidos por Centros de Atenção Psicossocial em Álcool e Outras Drogas | por Nelma Nunes da Silva, Márcia Aparecida Ferreira de Oliveira, Mônica Silvia Rodrigues de Oliveira, Heloísa Garcia Claro, Ivan Filipe de Almeida Lopes Fernandes, Gabriella de Andrade Boska, Ronédia Monteiro Bosque

ENSAIO
A focalização utilitária da Atenção Primária à Saúde em viés tecnocrático e disruptivo | por Alcides Silva de Miranda

Da fome à palatabilidade estéril: ‘espessando’ ou ‘diluindo’ o Direito Humano à Alimentação Adequada no Brasil? | por Lúcia Dias da Silva Guerra, Aída Couto Dinucci Bezerra, Leonardo Carnut

O (des)engajamento social na modernidade líquida: sobre participação social em saúde Social | por Marcela Miwa, Carla Ventura

REVISÃO
Avaliação de Tecnologias em Saúde na saúde suplementar brasileira: revisão de escopo e análise documental | por Raquel Lisbôa, Rosângela Caetano

Educação Permanente em Saúde nos Centros de Atenção Psicossocial: revisão integrativa da literatura | por Mússio Pirajá Mattos, Hudson Manoel Nogueira Campos, Daiene Rosa Gomes, Lorena Ferreira, Raquel Baroni de Carvalho, Carolina Dutra Degli Esposti

RELATO DE EXPERIÊNCIA
Por uma política da convivência: movimentos instituintes na Reforma Psiquiátrica Brasileira | por Ariadna Patricia Estevez Alvarez, Neli Maria de Castro Almeida, Angela Pereira Figueiredo

Educação Permanente em Saúde e atenção psicossocial: a experiência do Projeto Rede Sampa | por Christiane Mery Costa, Claudia Regina de Moraes Abreu, Paulo Amarante, Felipe Rangel de Souza Machado

Anexos