Sem Terra formados em Cuba promovem saúde

Por José Coutinho Júnior | MST

 

A estrutura de saúde pública brasileira tem diversos problemas: falta de investimentos, falta de médicos, infraestrutura precária. Outro problema é o tipo de tratamento realizado por muitos profissionais, que desumanizam o paciente e não levam em conta sua realidade de vida.

A Página do MST conversou com Luciana Brandão, Marcos Tiaraju e João Antônio, médicos do Movimento formados em Cuba, que contam suas experiências de como realizam um trabalho de prevenção e promoção da saúde, além de atender de forma humana os pacientes.

Luciana nasceu no Pará e se formou na primeira turma de médicos do MST em Cuba, em 2005. Em 2006 voltou ao Brasil e fez uma especialização de dois anos em saúde da família no município de Sobral.

“Chegamos de Cuba sem ter noção de como era o processo de fazer medicina no Brasil, e tínhamos muita bagagem da teoria e prática cubana para aplicar no nosso país, mas tínhamos muito que aprender aqui também”.

Atualmente atua na comunidade São Nicolau, atendendo 2350 pessoas do assentamento 25 de Maio. Além de fazer o atendimento, Luciana prioriza a prevenção e promoção da saúde, realizando trabalhos de saúde da mulher, do homem, da criança, pré-natal, saúde da gestante e do idoso.

Nos finais de semana, ela também faz plantão no hospital do município de Madalena, que tem uma população de 19 mil habitantes. “Muitos dos nossos acampados e assentados também vão para o hospital para serem atendido por nós. Tanto que muitos pacientes ligam e perguntam o dia que a gente vai estar lá para poder ir ao hospital”.

Em relação à prevenção da saúde, ela conta que muitas doenças ocorrem por causa das condições precárias de higiene. “Eles ingerem água das cisternas, que precisa ser filtrada e não filtram. As águas que consomem é a mesma que os animais tomam banho. Por causa das águas contaminadas, tem muitos casos de Parasitose”.

Outro problema é a desnutrição, causada tanto pelos efeitos da seca quanto pelos hábitos alimentares da população, que não tem o hábito de comer verduras. Para reverter essa situação, Luciana iniciou uma horta no posto de saúde. “Plantei alface, repolho, couve, rúcula, pepino. Ensino eles a plantar e comer verduras; a cozinhar sem óleo. Não precisa colocar óleo numa carne de frango ou em qualquer outra carne. Se cozinhar só com água já fica gostoso”.

Além de ficar no posto de saúde e hospital, Luciana realiza visitas domiciliares aos assentados, para conhecer a realidade dos pacientes e poder identificar os problemas.

“Eu sou metida, chego futucando tudo. Tenho um paciente hipertenso, diabético, com asma, insuficiência renal, e cheguei bem na hora do almoço dele. Ele estava comendo um peixe muito salgado. Disse que ele não ia mais comer o peixe, ia comer ovo cozido. Falei para a esposa dele cozinhar um ovo e disse que eu ia comer o peixe. Mas nem dei conta de comer de tão salgado”.

As medidas preventivas são simples, mas Luciana afirma que elas exigem que o médico seja coerente e que trate os pacientes como pessoas. “É complicado um médico gordo pedir para um paciente emagrecer, um que fuma pedir para parar de fumar. O trabalho de prevenção e promoção que fazemos aponta para melhoras nas vidas dos pacientes. Muitos falam que antes da gente era diferente, que nunca nenhum médico entrou na cozinha deles, sentou na mesa para comer ou na beirada da cama para conversar quando estão doentes”.

“Tu não tem que tratar a doença, tem que tratar o indivíduo”

Marcos terminou o curso em 2012. Regressou ao Brasil, revalidou seu diploma e começou a trabalhar no município de Nova Santa Rita (RS). O município tem uma população de 23 mil pessoas, sendo que 40% dela está na área rural. Nesse território existem quatro assentamentos, porém, a estrutura para exercer um trabalho específico nas áreas ainda está sendo criada.

Marcos conta que a ideia é realizar um trabalho diferenciado. “Nossa ideia é montar equipes de saúde da família no município, que ainda não existem, e trabalhar atendendo a população rural e urbana. Nesse momento fazemos o trabalho na área urbana, atendendo inclusive os assentados.Um dos assentamentos doou uma casa vaga e estamos adaptando para ser um consultório.

Para ele, o discurso da impossibilidade de se fazer um bom trabalho pela falta de estrutura é meia verdade. “As condições devem ser criadas pela comunidade e profissionais para se desenvolver um bom trabalho”.

A cidade tem quatro postos de saúde, mas apenas um foi construído para ser uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Os outros três são casas compradas pela prefeitura para ainda serem transformadas em UBS. “É uma realidade carente de atenção médica, principalmente na área rural, e não tem um serviço de atenção básica organizada”, conta Marcos.

Ele e a equipe presente em Nova Santa Rita pretendem fazer um tratamento contínuo das comunidades do município, ao contrário da situação atual. Segundo Marcos, “os médicos vão para lá fazer bicos. Eles têm dois, três empregos e vão lá apenas um dia, sem ter uma continuidade de atenção para aquela população. O médico acaba não compreendendo aquela comunidade e não consegue intervir no processo de promoção e prevenção da saúde, só faz a cura da doença”.

O tipo de atendimento realizado, afirma Marcos, valoriza a relação entre médico e paciente.

“A gente dedica um tempo maior em cada consulta, cria uma relação com o paciente para que eles nos contem um pouco sobre a vida. A partir disso conseguimos intervir sob um ponto de vista psicológico também. Pessoas que chegam com dores crônicas muitas vezes não precisam ser medicadas: uma conversa de quinze minutos resolve e a pessoa sai de lá sorrindo. Tu não tem que tratar a doença, tem que tratar o indivíduo, o ser humano como um todo”, acredita.

Do Haiti ao sertão

João Antônio se formou em 2010. Regressou ao Brasil em setembro do mesmo ano e viajou para Fortaleza. Em fevereiro de 2012 revalidou seu diploma e foi para o Haiti, atuar na Brigada Dessalines que presta solidariedade ao povo daquele país.

Contribuiu na brigada por seis meses, atendendo tanto a população rural – principalmente os camponeses nas montanhas – como a população urbana, em especial a população da periferia da capital Porto Príncipe.

João conta que a estrutura social precária no Haiti foi uma grande dificuldade para exercer o trabalho. “O Estado não tem poder, e isso é algo que se estende há séculos. Não existe saúde pública e tivemos uma grande dificuldade em conseguir medicamentos. A gente conseguia alguns com o trabalho na cidade em parceria com alguns freis franciscanos, que nos davam medicamentos para levarmos aos camponeses”.

O estado de miséria em que se encontra a maioria da população torna a prevenção de doenças no país difícil. “Muitas pessoas vivem sem casa, mais de 60% da população são analfabetas e muitas enfermidades que já estão erradicadas em vários países, como no Brasil e Cuba, lá permanecem, como a malária, febre tifodeia, verminoses, cólera. A alimentação do povo é precária, pelo menos 58% da população é subnutrida”.

Essas dificuldades, aliadas à barreira do idioma, tornaram o trabalho de promoção e prevenção da saúde difícil, e João se limitou durante o tempo que ficou no Haiti a realizar o atendimento de urgência e emergência.

Ao regressar em outubro de 2012, João vai ao assentamento 25 de maio, atuar na comunidade Paus Brancos. Ele atende cerca de 475 famílias. Ele destaca o trabalho de prevenção realizado em conjunto com os pacientes.

“Com as mulheres estamos iniciando um processo de resgate, que é da farmácia viva, de trabalhar com as ervas medicinais. Estamos aprendendo com o coletivo de mulheres. É uma forma de luta contra as grandes empresas farmacêuticas, que impõem esse modelo de medicina hospitalocêntrico, medicamentoso, baseado no tratamento imediato”.

Na cidade, junto com uma equipe de profissionais, João iniciou um projeto de trabalhar com os idosos e adultos da cidade. Com algumas caminhadas e alongamentos, ele afirma que há uma melhora significativa na pressão, frequência cardíaca, temperatura e na disposição dos participantes.

“Muitas pessoas que chegaram com a pressão alta e muitas vezes tomavam medicamentos para a pressão, tiveram uma redução de cinco a dez milímetros de mercúrio com as caminhadas”.

João acredita que o tratamento da saúde não é oferecido apenas pelo médico. O ambiente, as condições de vida e as emoções das pessoas podem em si ser um tratamento. “Quando chove e os açudes sangram no nordeste, é sinal de que o ano vai ser bom para a agricultura. Toda segunda atendo na sede do assentamento, e geralmente 40, 50 pessoas aparecem”.

Mas um dia, lembra João, não havia ninguém no posto, pois no domingo anterior tinha chovido, os açudes sangraram “e a população foi ver o açude e as águas. Saber da boa notícia, naquele dia já foi um tratamento. Se alguém tinha dor, diarréia, se curou com a notícia. Isso é saúde também”.