Só a participação popular pode frear o poder dos poderes e dos poderosos!
Maria do Socorro de Souza [1]
O Decreto nº 9.759 de 11 de abril de 2019 é um ato governamental que extingue e estabelece novas regras para a formação e o funcionamento de colegiados da administração pública federal. Mais do que o efeito prático deste instrumento, devemos nos ater às intencionalidades políticas das autoridades que exerceram o ato! Essas sim, podem intencionar descumprir princípios constitucionais, corroer a democracia e promover a demolição dos direitos políticos e sociais conquistados pelo povo brasileiro.
O ato nos remete a pensar: porque, num regime democrático, um governo se recusa a dialogar e a compartilhar poder com a sociedade civil nas tomadas de decisão de questões relativas aos direitos de cidadania? Acredito que a resposta a esta questão está na máxima que Montesquieu, no livro “Espírito das Leis” (1748): “só o povo pode frear o poder dos poderes [e dos poderosos]”.
Poucos cidadãos brasileiros sabem o que é participação social. As primeiras experiências sobre participação democrática, participação direta, participação social surge desde a Grécia Antiga, século V a. C., e vincula-se ao ideário de regimes de governos democráticos e de cidadania, podendo adquirir significados diferentes, a depender de cada tempo histórico e de cada sociedade. De modo geral, significa igualdade de participação da sociedade ou exercício dos cidadãos expressarem suas vontades e incidirem sobre as decisões de governos, em contraposição ao poder de poucos, de uma aristocracia ou oligarquia.
Muitos cidadãos brasileiros também desconhecem que este princípio consta inscrito no texto constitucional de 1988: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta constituição” (CF – 1, § único). Consagrando, assim, a participação social como parte do sistema político brasileiro. Dessa forma, só o povo, por meio da expressão de suas vontades, pode frear o poder dos poderes, e dos poderosos.
No Brasil, este princípio ético-político ganhou força na década de 1980, no processo de redemocratização do Estado. Setores da sociedade civil – como intelectuais, líderes religiosos, partidos políticos, artistas, cientistas, movimentos sociais, dentre outros – atribuíram à participação social o sentido de contraste ao autoritarismo da ditadura militar. A intencionalidade era fazer mudanças na sociedade e disputar a construção de um Estado democrático, de direito e laico. Os conselhos populares, de base comunitária, deveriam ser um dos possíveis caminhos.
Este movimento alinha-se à concepção ampliada de Estado, no sentido gramsciano, onde intelectuais, dirigentes políticos e classes sociais com histórico de subalternidades devem lutar para construir outra cultura política sob o propósito de disputar a hegemonia, por dentro das estruturas do Estado.
Passados 31 anos da CF, vale perguntar se a estratégia de participação social, por meio de colegiados de políticas públicas e direitos humanos, ajudou a construir outra cultura política brasileira. Diria eu, numa simples opinião, que a cultura política brasileira continua híbrida, ou seja, ora democrática e sob o comando do campo popular, ora conservadora sob o comando das elites, a depender das agendas, dos interesses, das correlações de forças.
Ocorre que no Brasil, desde sua formação social colonizadora, a sociedade política ou classe dominante se apropriou das estruturas de Estado como se estas fizessem parte de seu patrimônio (patrimonialismo) e, complementarmente, buscam alimentar a cultura da dependência, do mando, do clientelismo, do favor, da meritocracia; em contraposição à participação democrática.
Por isto que atos governamentais, como o Decreto nº 9.759/2019, podem intencionar enfraquecer os direitos políticos de participação democrática, como já visto em outros governos de ideário neoliberal, como na Era Collor e FHC, voltando com força no governo ultra neoliberal do Bolsonaro. A ideologia neoliberal aposta no enfraquecimento do papel do Estado para ampliar a abertura e a expansão do mercado e do capital estrangeiro, por meio da expropriação de direitos sociais e da redução do orçamento destinado às políticas sociais públicas.
Embora a política econômica dos governos Lula e do governo Dilma fossem alinhados aos interesses de mercado, o projeto socioeconômico desenvolvimentista desse período apostou na ampliação das esferas de participação social, ainda que não se constituindo em força de massa contra hegemônica. Vale aqui lembrar do Decreto nº 8.243 de 23 de maio de 2014, da presidência da República (Era Dilma), que tratava da Política Nacional de Participação Social e do Sistema Nacional de Participação Social. Este ato governamental propunha instituir instâncias democráticas de diálogo e de atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil como modo de governar. Resultado: o decreto foi suspenso pelo Senado, alegando que o mesmo corroía as entranhas do regime representativo, um dos pilares do Estado democrático.
O Decreto nº 9.759/2019 pode, da mesma forma que pode corroer o direito político de participação social, pode também pretender demolir direitos sociais e civis. Explico: os conselhos de políticas públicas e de direitos humanos servem para impedir as práticas conservadoras do patrimonialismo e do clientelismo, bem como à ingerência privatista das forças nacionais e estrangeiras que – por meio do domínio que exercem sobre as estruturas do Estado e do mercado -, querem a reconfiguração do Estado, impor suas estratégias nas formas de financiamento, nas definições de diretrizes e na definição das prioridades que devem presidir as políticas públicas, sob o argumento de que é preciso racionalizar os gastos públicos, regular o acesso aos escassos bens sociais, focalizar a ação de Estado nos pobres, e deixar os mais capitalizados ou rentabilizados para o mercado, estimulando, assim, as privatizações de vários setores sociais, como a educação, a saúde, a previdência, a habitação, o saneamento.
Contrariando esta possível e perversa intencionalidade, acredito eu que este ato governamental pode surtir efeito dialeticamente oposto. Pode aumentar a capacidade de indignação e de pressão política de setores da sociedade civil sobre as estruturas de poder, a começar pelos movimentos sociais populares que carregam histórico comum de dominação e exploração colonial. Os segmentos mais afetados pela extinção dos 35 órgãos colegiados foram os povos indígenas, os trabalhadores rurais, a população LGBT, de rua, de idosos, das pessoas com deficiência e os defensores das questões ambientais
Talvez por miopia política, o que a elite que ora governa o país ainda não entendeu é que o direito à participação social não nasce nas estruturas de domínio e poder do Estado. Este direito nasce da vontade popular. Nasce nas ruas, nas praças, no campo, na floresta, na favela! Nasce da capacidade criativa do povo se organizar, denunciar, reivindicar e propor caminhos para construção de um Estado democrático de direito, e de uma sociedade democrática, plural e justa. O direito de participação social nasce da vontade do povo de apropriar-se de suas histórias, vidas e corpos, de ocupar territórios, de participar da vida pública e pôr fim à desagregação social, de pertencer à sociedade. Nos tempos socráticos, da Grécia Antiga, diria-se: do demo pertencer à Pólis!
[1] Filósofa, mestre em Política Social e doutoranda em Educação em Ciência e Saúde, pesquisadora em saúde pública, ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde período 2013-2015.