Socorro a planos de saúde em crise financeira, ANS não é ressarcida

Ligia Formenti

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) repassou para operadoras de saúde com problemas financeiros e em liquidação extrajudicial o equivalente a R$ 33,64 milhões entre 2005 e 2009, mas apenas 8% das empresas socorridas se recuperaram. Além de pouco resultado prático, a esmagadora maioria dos empréstimos ainda não foi quitada.

Até agora, a ANS conseguiu reaver menos de 1% do total do dinheiro repassado: R$ 304,7 mil. A quantia foi paga por 6 das 170 operadoras que estavam em direção fiscal, uma espécie de intervenção prevista em lei, que a ANS declara para operadoras com as contas em desequilíbrio. Dos recursos passados para 339 empresas em liquidação extrajudicial, nada foi devolvido.

“Além de dispendioso, o modelo adotado pela ANS é ineficiente”, avalia Andrea Salazar, advogada consultora do Idec. O ideal, diz, seria a agência adotar medidas preventivas para evitar, por exemplo, a cobrança de mensalidades insuficientes para sustentar um atendimento com um mínimo de qualidade. “A ANS tem de acompanhar a saúde financeira das empresas antes de elas entrarem em colapso. Tomar medidas preventivas. Mas, para isso, a empresa muitas vezes se cala. ”

O pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Mário Scheffer, concorda. “É preciso fazer uma avaliação crítica desse sistema. Trata-se de dinheiro público, usado numa tarefa que, mesmo prevista em lei, mostra claros sinais de pouca eficácia.”

O presidente da ANS, Maurício Ceschin, afirma que o acompanhamento das contas das operadoras é rotina. “O sistema está sempre se aprimorando”, defende-se. Ele reconhece a demora das operadoras no pagamento dos empréstimos e o baixo índice de recuperação das que entram em direção técnica e fiscal.
Ceschin argumenta que números têm de ser analisados com cuidado. “Cada empresa que sai da crise evita impactos nos consumidores e no mercado.” Como exemplo, cita a Unimed Paulistana. “Ao recuperarmos uma empresa, evitamos a desassistência de muitas pessoas.”

Drama. Os números das empresas que naufragam mesmo com a intervenção da ANS refletem o drama de usuários que perdem garantias de atendimento. O exemplo mais recente é da Samcil, plano com 193 mil associados que foi acompanhado pela agência. Como a maioria das empresas que passaram por direção fiscal e técnica, a crise não foi revertida e a carteira teve ser transferida para outra empresa, a Green Line. Até o desfecho, usuários enfrentaram longas esperas para consultas e exames, causadas pelo descredenciamento constante de médicos e clínicas.

“Não adianta injetar dinheiro em uma empresa com os dias contados. A fiscalização tem de começar na abertura da operadora”, defende a advogada e consultora do Idec Daniela Trettel.
Ela e Andrea analisaram regimes especiais feitos pela ANS, partindo de três casos: Unimed, Classes Laboriosas e Interclínicas. “Em todos, a falta de atenção aos consumidores foi patente. Eles sofreram restrições tanto no período de intervenção quanto depois de eles serem transferidos para outro plano.”
A carteira da Interclínicas, por exemplo, foi transferida para o Grupo Saúde ABC, que também dava indícios de irregularidades. Mesmo assim, a ANS aprovou a mudança. No ano da operação, houve reclamações de clientes e o grupo foi multado por reajuste abusivo das mensalidades.

Faltam critérios na aplicação dos recursos

Além da utilidade questionável, os recursos dos empréstimos da ANS às operadoras de saúde são aplicados de forma pouco transparente e de difícil controle.

O dinheiro é entregue diretamente para diretores técnicos e fiscais e, no caso de empresas em liquidação extrajudicial, para liquidantes. Todos os profissionais são escolhidos pela própria agência, num banco de pessoas formado por contadores, funcionários que vieram do Banco Central ou da Superintendência de Seguros Privados.

Nas liquidações extrajudiciais, o valor repassado varia de empresa para empresa. Não existem critérios legais para nortear esse valor.
De acordo com a ANS, o consultor apresenta o valor que foi gasto e o dinheiro é reembolsado pela agência pouco tempo depois.

Flexibilidade. Uma resolução da ANS estabelece apenas que valores pagos por serviços prestados devem “responder à média do mercado e guardar proporcionalidade do trabalho”. Com essa flexibilidade, o que se vê são diferenças expressivas nos valores repassados para os profissionais. De fixo, apenas os salários dos diretores e liquidantes: R$ 8,6 mil, mais encargos do INSS de R$ 1,7 mil.

Valor repassado à agência pelo Tesouro cresceu quase 700%

Depois de dez anos de criação, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) continua a manter estreita dependência do governo para pagar suas contas. Levantamento do pesquisador Mário Scheffer, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, e da professora Lígia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra que a receita obtida com taxas, multas e serviços da ANS subiu 31,11% entre 2005 e 2009. Para fechar as contas, o valor repassado pelo Tesouro teve de aumentar em 677,87% (mais informações em quadro nesta página).

“Num setor como esse, com tantas infrações cometidas pelas empresas, era de se esperar um desempenho diferente”, avalia Scheffer. Para ele, os números indicam a existência de um descompasso entre os objetivos da agência, sua atuação e a situação dos mercados de planos de saúde. “E o mais importante: trata-se de dinheiro público.”

O presidente da ANS, Maurício Ceschin, admite a diferença nos valores. E diz que a solução seria aumentar o valor da taxa compulsória cobrada das operadoras, equivalente a R$ 2 por usuário. “Esse valor foi fixado há muito tempo. Está defasado.”

Mas nem os R$ 2 por usuário chegam aos cofres da ANS. Em 2009, a agência deveria receber com isso pelo menos R$ 84, 3 milhões. As contas mostram que R$ 5,5 milhões se perderam no caminho. Ceschin atribui a diferença à inadimplência, aos descontos oferecidos a empresas que preenchem determinadas características e ao fato de que empresas em direção fiscal e técnica estão dispensadas de recolher esses valores. Ele não soube dizer quantos usuários estariam em empresas nessas condições.
Outra fonte seriam os recursos obtidos com a cobrança de multas. Mas boa parte desse dinheiro acaba emperrado em recursos interpostos pelas empresas. “É preciso respeitar todas as possibilidades de recurso. Com isso, o recebimento das multas pode demorar.” E a agência não sabe dizer qual o tempo médio entre a aplicação de uma multa e o pagamento.

Fonte: O ESTADO DE S. PAULO (9/05/2011)