SUS eficaz, resolutivo, hierarquizado, e em agonia

Heleno Rodrigues Corrêa Filho*

Primeiramente é necessário dizer que o SUS em Brasília não funciona desde que o seu projeto original foi concebido por Wilson Fadul em 1962, antes da Constituição Federal de 1988 e da lei 8080/1990, para não concorrer com o sistema privado que sempre influenciou a política de saúde do Distrito Federal. Os hospitais públicos e Centros de Saúde foram historicamente subfinanciados impedindo que se consolidassem como referências do sistema. Hoje estão em ruínas, como tudo que agrada a grande imprensa que deseja dizer que o SUS é inviável, em busca de fazer propaganda subliminar dos planos privados de saúde que pagam suas reportagens.

Os serviços dos poucos Centros de Saúde da capital federal vêm desaparecendo, restando apenas para a lembrança a figura histórica de seus prédios vazios, sucateados, sem função local e recusando clientes que descem dos ônibus procurando atendimento e vacinação, de portas fechadas e criando obstáculos burocráticos para atendimento: _ “Não trouxe a conta de luz não tem atendimento”. “O Centro de Saúde fecha ao meio-dia. Já coloquei as vacinas no refrigerador desde onze e meia. Volte amanhã.” “Deseja descartar seringas hipodérmicas? Procure um hospital ou jogue no lixo comum!” “Mora na cidade satélite? Aqui não é seu local de atendimento.” É a política de saúde sob a influência da guerra entre os estratos sociais das classes gerenciais e subordinadas contra os trabalhadores e o lumpem.

Os políticos do Congresso Nacional impedem que seja aprovada uma lei nacional de compensação dos serviços de saúde, transferindo fundo-a-fundo o gasto de saúde com munícipes que saem em busca do atendimento que deveriam receber onde moram. Os prefeitos ficam com a verba e as pessoas tomam transportes para buscar atendimento distante, onerando as referências nas cidades maiores. Nada de Centros de Saúde, nada de centrais regionais de vagas, nada de policlínicas regionais, nada de convênios intermunicipais. O cartão “único” do SUS não aparece e não é implantado como providência do executivo acovardado nem como decisão do Legislativo dominado por lobistas do setor privado e da política neoliberal do estado mínimo. O SUS está asfixiado.

Várias tentativas brasilienses bem sucedidas de desenvolver Agentes Comunitários de Saúde e Equipes de Saúde da Família foram sabotadas por políticos e administradores ligados ao setor privado de saúde. Brasília não se preocupa com conflitos de interesse nem com a entrega da responsabilidade pública a quem ganha na outra ponta representando o setor privado.

Feita essa ressalva não deixa de ser contraditório constatar que nesse ambiente de guerra o SUS dos hospitais públicos ainda funciona. Os pacientes entram graves, amontoados, são tratados por poucos trabalhadores da saúde, e na sua maioria saem com seus problemas resolvidos, são medicados e amparados por trabalhadores sonolentos, cansados, nervosos e que conseguem encaminhar seus exames. Um verdadeiro paradoxo. Os profissionais do SUS que levam a sério o que fazem conseguem resultados e sofrem por isso as agruras de um trabalho assediado por metas, vigiado por administradores que ao mesmo tempo exigem as metas e retiram os meios de atingi-las.

O resumo da ação do SUS nas referências hospitalares em Brasília é o máximo de tecnologia de ponta, exames sem economia contra os pacientes ao contrário do que é comum nos convênios privados, disponibilidade máxima de medicamentos independentemente do custo, eficácia total dentro dos limites que o conhecimento científico consegue. Apesar de tudo trabalha com equipes desestruturadas, sem supervisão clínica, observação ou acompanhamento em linhas de cuidado. Ao lado disso os pacientes enfrentam o maior desconforto, a falta de condições mínimas de equipes para rodízio, a realização de exames a cada vinte e quatro horas. É um cenário que pede DEZ por cento da arrecadação bruta federal para o SUS e também a reversão da atual política de gestão. Não se trata de incompetência de gestão. Ao contrário, existe uma gestão muito competente para sucatear, terceirizar e privatizar.

Qual é a cena? Não se trata da cena dantesca exibida pela Rede Globo a serviço da seguradora de saúde associada ao seu sistema jornalístico. Se as motivações fossem explicadas os problemas seriam revelados e ficaria impossível destruir para vender o que resta do SUS. É o que se pode ver apesar da eficácia e da abnegação dos que trabalham e conseguem resultados.

Os que favorecem a privatização e impedem a chegada do financiamento dos 10% da receita bruta não incluem apenas os políticos lobistas e os administradores da porta giratória entre o sistema publico e privado. Incluem também os Tribunais de Contas que perseguem administradores que compram suprimentos em regime de urgência e deixam livres, numa boa, os que desviam recursos do sistema. Os empresários e financistas corruptores ficam absolutamente impunes. Os tribunais de contas a serviço da direita neoliberal paralisam obras, impedem licitações, perseguem gestores que pagam despesas emergenciais, atrasam ou anulam concursos públicos e liberam geral para quem compra serviços privados ou vende sistemas municipais inteiros para as OSCIPs, ONGs e cooperativas privadas .

No pronto socorro do segundo maior hospital regional de Brasília – HRAN – o que se vê? Paredes furadas e sem pintura; encanamentos vazando; vidros quebrados, portas sem alavancas de abertura de emergência e sem fechaduras; um prédio em ruínas com gente dentro. Logo na entrada vê-se muita gente e a falta de cadeiras nos corredores dos consultórios para evitar que os pacientes e acompanhantes possam se sentar. Assim, certamente não permanecem, a menos que caiam sobre o chão imundo e consigam importunar funcionários que passam pelos corredores. Não encontrarão ninguém que os ajudem e guardas terceirizados e armados expulsarão quem não estiver com uma ordem de atendimento na mão.

É impossível lavar as mãos ou beber água. As bactérias levam grande vantagem. Não existem bebedouros ou pias com água corrente fora dos banheiros imundos, sem portas, sem privacidade, com vazamentos e torneiras quebradas, com funcionários terceirizados limpando o que não tem conserto porque não se trata só de limpeza. Os terceirizados sem especialização hospitalar atropelam os auxiliares de enfermagem, empurram macas com doentes graves, manejam baldes sujos e espalham a sujeira de forma homogênea tornando as maçanetas das torneiras tão sujas quanto o chão com excrementos, vômitos e sangue. O mesmo pano do chão vai para a parede, a torneira, as privadas, e a plataforma de preparação de medicamentos do posto de enfermagem.

As camas não têm lençóis limpos. Os colchões furados remendados com esparadrapos são cobertos com lençóis sujos em uso permanente. As camas só tem lençóis limpos se os pacientes os trazem de casa, junto com algum travesseiro, por que todas as macas estão quebradas, enferrujadas, enlameadas com sujeira marrom que mistura as secreções humanas com décadas de falta de manutenção. Não existem escadas de três degraus para os pacientes subirem nas macas que são altas. O balde para o vômito a paciente trouxe de casa.

Como são poucos médicos para atender à fila da porta a visita aos pacientes guardados na retaguarda só pode ocorrer em emergências muito graves. No máximo são vistos a cada doze horas. Nenhum médico conduz a chefia clínica das quatro alas de enfermaria de retaguarda, não existem médicos residentes nem internos presentes fazendo a suposta observação clínica. Ninguém observa ninguém a não ser as atendentes de enfermagem que procuram trabalhar e fugir da opressão dos pedidos dos pacientes por socorro, com dor, com veias obstruídas, com sintomas que não tinham ao serem internados. O paciente recebe o tratamento rigorosamente dentro do prescrito na entrada. Não sabe quem conduz sua terapêutica, não sabe o nome da(o) médica(o), nem da(o) enfermeira(o). Nessa guerra o paciente não tem dono.

Alguns familiares entendem de maneira intuitiva as dificuldades da equipe de saúde e tendem a suprir a falta de cuidadores avisando que o soro terminou de correr, a veia entupiu, o coágulo de sangue impede o acesso venoso, o paciente se agravou. Alguns auxiliares de enfermagem correm pressurosos atendendo com carinho respeitoso e demonstrando ansiedade. Outros olham através das pessoas como se elas fossem transparentes.

Uma atendente avisa um acompanhante perdido com seu paciente na porta ABERTA de um consultório enquanto uma pessoa é atendida lá dentro: _ “Não fique com seu paciente em cadeira de rodas nesse corredor! Se o Doutor Leonardo [nome fictício para proteger a identidade] vir vocês aí não vai permitir que ele seja atendido! Ele não gosta de paciente que fica se mostrando.” E o todo poderoso doutor Leonardo aqui é a lei depois da cara amarrada da recepcionista que impõe as regras apoiada na força do cassetete do guarda terceirizado que só entende um papel de memorando como salvo conduto para entrar e sair.

Diferente de outros hospitais onde prevalece a ética profissional, a recepcionista reage com raiva ao ser informada que sou médico e desejo visitar um paciente. Dona Socorro [nome igualmente fictício] diz ao receber em mãos minha carteira profissional de médico que “não aceita carteiradas” e só me deixará entrar para ver o paciente se eu disser para ela o que vou fazer lá dentro. Abaixo do juízo dela eu – o médico. Meses antes, em um outro hospital do Brasil, eu recebia da atendente um cumprimento: _ “Boa noite doutor. Vou telefonar pedindo que o recebam na UTI”. Agora respondo que estou apenas cumprindo a minha obrigação de me identificar e a atendente me responde: _ “Não interessa sua carteira. Se não me disser o que vai fazer lá com seu paciente não entra e eu aviso o guarda”. A partir daí, com o coração a 200 por minuto batendo na garganta eu respondo: _ “Por favor, sou médico, vou vi sitar um paciente e a senhora não pode me impedir. A senhora não pode se recusar a ler minha carteira nem exigir informações sobre o que um médico vai fazer vendo um paciente”. Resposta imediata dela: _ “trabalho aqui há trinta e cinco anos e sempre fiz assim”. Pronto caiu tudo por terra. A mulher aprendeu na ditadura. Não tem mais jeito. Ela preenche um papel e se recusa a me dizer seu nome e número funcional completos. Entro e vou falar com o diretor de plantão dizendo que defendo o SUS, mas que com funcionários que espezinham a clientela meu trabalho cai por terra.

Raciocino que a manutenção de um sistema sucateado dessa maneira com a população de classe média mais escolarizada da cidade de mais alta renda per-capita do país, só é possível apoiada na ignorância repressiva de cassetetes terceirizados, limpadores terceirizados que sujam, nutricionistas terceirizadas que fazem pacientes passar fome, funcionários autoritários, regras de cada porteiro e guarda de corredor, que posteriormente os gestores possam dizer que foram decisões individuais e que os abusadores serão responsabilizados. Como a responsabilidade sempre vai cair sobre o porteiro ou a recepcionista do médico que pune com desatendimento, tudo passa a ser problema do guarda da esquina. Ninguém é responsável e a gestão criminosa sai impune. Os políticos ficam bem na fita e podem propor vender o que sobrou. Alegam que aí sim vai haver competência mas só depois de vendido.

Na frente do diretor da equipe de plantão repito a narração da cena e digo que defendo o SUS. Contei que o paciente que acompanhava ficou internado das dezesseis horas de um dia até as nove horas do dia seguinte sem comer nada, sem chá, apenas com copos de água. Se não morreu do edema agudo de pulmão, poderia ter sofrido menos de fome, sede e dispnéia. Acabamos amigos, como quem sai de uma confraternização, e me sinto perigosamente cooptado como quem trai o propósito original de reclamar. A classe média de Brasília prefere os convênios e não luta pelo SUS, da mesma forma que muitos políticos que falam uma coisa e defendem outra.

Na saída vejo uma mulher no nono mês de gestação sentada no meio-fio chorando isolada diante de um grupo de moradores de rua embrulhados em cobertores. Paro o carro e lhe pergunto se precisa de ajuda. Ela diz que precisa, mas não volta lá para dentro por que foi humilhada. A médica obstetra que a atendeu com dores no baixo ventre disse que como a febre que ela tem é devida a uma infecção de garganta e não a uma infecção urinária, ela deve ir procurar outro atendimento. Não é parto iminente. Segundo a médica ela estaria se fazendo de sonsa para receber atendimento obstétrico e portanto que devia comprar um tylenol e só voltasse quando tivesse as dores do parto. Desço do carro sem saber o que dizer e peço que ela aguarde a chegada da família sentada lá dentro, em um banco, por que na rua está exposta e fica frágil diante de agressões. Ela aceita ser conduzida e volta chorando trôpega e segurando a barr iga avantajada para o banco da recepção obstétrica. Alguém viria busca-la.

Se os hospitais de referencia do sistema como o HRAN forem destruídos não haverá cabeça do sistema público. Não haverá alternativa que evite a privatização definitiva para a profecia que se tornará auto-cumprida, alegando que todo o sistema público é incompetente, demonstrando a competência dos privatizadores na realização da venda do que sobrar do sistema. Ironia é que na parede da ala de retaguarda do Pronto Socorro os terminais dos equipamentos de ar comprimido, oxigênio e vácuo em cima de cada maca quebrada são da marca “Morrya”. Morria? Não! Mesmo com o SUS roubado, traído, desfinanciado, tudo dominado – É esse o SUS nos hospitais em Brasília. Vai ter que sobreviver.
* – Epidemiologista – Professor Associado Colaborador – UNICAMP – FCM – DSC – BRASIL