Tecnologia e direito à saúde: o papel do estado e o avanço das tecnologias digitais
Cebes promove debate sobre o atual momento crucial para entender a saúde digital e como ela opera no direito à saúde
De que maneira a tecnologia se entrelaça com a saúde, seus impactos e, no contexto do SUS, e como ela pode colaborar com sua efetividade sem deixar de lado as lacunas existentes e os potenciais riscos trazidos ao sistema? Responder a essas questões foi o grande desafio da edição do Cebes Debate que, em 15 de abril, teve como tema “Saúde Digital: da informação à luta por direitos”. Mediado pela cebiana e professora de Saúde Coletiva na UFPR Carla Straub, o debate aprofundou o olhar sobre as informações de saúde dentro do cenário das tecnologias digitais, o papel do Estado e os interesses do setor privado ao colaborar nesta ação de interesse público.
Partindo do contexto histórico, o debate sobre Saúde Digital tem caminhado junto ao desenvolvimento da tecnologia, especialmente a partir da década de 1990, até culminar, em junho de 2020, na Estratégia Global de Saúde Digital da Organização Mundial de Saúde (OMS). Para a jornalista, cientista social e pesquisadora no Laboratório de Tecnologias Livres da Universidade Federal do ABC, Joyce Souza, este é um momento crucial, onde a OMS aponta a necessidade de pensar em uma saúde com interoperabilidade a nível global, e pontua a importância de discutir, junto a essa perspectiva, a atuação tanto o setor público quanto do setor privado.
Raquel Rachid, advogada, integrante do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN) e do projeto “Implicações das Tecnologias Digitais para os Sistemas de Saúde” da Fiocruz lembra que essa construção histórica perpassa pela digitalização do governo, com uso da internet de forma mais isolada e posterior expansão do que seriam os usos das tecnologias pelos governos. O que, no Brasil, consumou-se no início dos anos 2000, com uma lógica de abertura dos serviços públicos ao setor privado, culminando na onda de privatizações. “Os países que são influenciados por essas políticas de outros países, que já vêm um pouco prontas, tiram um pouco do Estado a obrigação de financiar esses modelos mais diretamente. Isso está expresso em documentos da OMS, por exemplo, mas também está expresso em documentos da OCDE que vai falar sobre as fatias de mercado do bem-estar, então a gente tá falando de questões muito interessantes que estão em dimensões e assim parecem estar distantes, mas elas vão se relacionando”.
Interoperabilidade – Quando se fala em Saúde Digital é impossível não falar sobre interoperabilidade, a ideia de fazer com que os dados se comuniquem em diversos sistemas, compartilhando informações, uma pauta que tem centralizado o debate. Para o diretor do Cebes, Mateus Falcão, isso gera uma marginalização de outros aspectos que precisam ser debatidos. “Quando a gente olha para a política da Saúde Digital, tanto no setor público quanto no privado parece que tudo se resolve em torno de interoperabilidade”, critica.
Segundo Joyce, esta é uma questão complexa, mas que tem sido determinante para monopolizar a discussão construção de grandes bancos de dados. Ainda assim, ela afirma que este é um assunto fundamental quando se pensa num país do tamanho do Brasil, com um sistema como SUS que atende um território gigante e com pessoas que circulam bastante pelo país. Para a jornalista, este assunto leva a outra questão: a crença exacerbada que a sociedade tem nestes dados. Como se eles, ao serem coletados e processados, pudessem resolver problemas que a sociedade ainda não conseguiu sem eles. “Isso é uma falácia. A gente não consegue resolver o problema da saúde não necessariamente porque não temos dados”, aponta.
Raquel aponta como exemplo o European Health Data Space, um projeto que vem sendo debatido na Europa há alguns anos com a perspectiva de disponibilizar o que seria a “jornada completa do paciente” e, assim, facilitar a vida das pessoas. Entretanto, a premissa de utilização dos dados é a geração de insumos para potenciais negócios e inovação, palavras usadas especialmente pelo setor privado que, para ela, inova utilizando basicamente materiais que são públicos. “É curioso pensar nesse parasitismo mesmo, porque não necessariamente há projetos muito geniais sendo bolados, mas eles vão surgindo, e o setor público acaba também comprando essas soluções”, aponta a pesquisadora.
As contradições da atuação do sistema público e privado a partir desses dados é um ponto essencial nesta discussão. Atualmente existe uma lógica de parceria na ação, mas qual é o interesse do mercado privado principalmente nestes dados? Para Joyce, o sistema privado acessar essas informações é um prêmio. Entregar essas informações a grandes corporações que possuem Data Center, é possibilitar a utilização para o desenvolvimento de novos serviços e produtos que não, necessariamente, irão atender a quem deveria ser beneficiado. “Nós estamos transferindo isso que a gente chama de aprofundamento da dependência tecnológica, o valor do conhecimento que tem dentro dessas infraestruturas”, afirma. Para ela, apesar do Estado estar se tornando um grande financiador da Saúde Digital, falta o investimento no desenvolvimento das infraestruturas que vão garantir a privacidade do cidadão e que os dados sejam utilizados para o avanço da ciência médica.
Raquel chama a atenção para o fato do discurso da cooperação entre setores acontecer, aparentemente, sem conflitos. “A Saúde Digital é um campo interessantíssimo para observar a proposta de cooperação, de conciliação entre setores, de trabalho conjunto, e a gente sabe que tem conflitos entre o que é o objetivo da saúde pública e o objetivo do lucro em cima da saúde”, assinala. Ela afirma que é necessário uma certa ruptura com essa lógica, para não permitir que lógicas autorizem a mercantilização da saúde, o que também é contrário às nossas prerrogativas. “Se a gente observar, o nosso sistema de saúde tem uma lógica de complementaridade da iniciativa privada, mas não fala de cooperação em nenhum momento”.
Investimentos – Um recente estudo do IBGE apontou a importância do investimento na área da saúde. Segundo o Instituto, o Brasil investe apenas 4% de seu PIB na área da saúde, valores muito menores que diversos outros países, inclusive da América Latina, como o Chile. Paralelamente a isso, o atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, declarou que haverá uma redução em áreas como saúde e educação nas próximas décadas. Joyce indica que isso simboliza para a Saúde Digital, um desinvestimento em infraestruturas tecnológicas e cada vez mais para a contratação de tecnologias privadas.
Apesar disso, as debatedoras apontaram alguns avanços no cenário brasileiro. “Quando a gente pensa na perspectiva da saúde digital o que a gente desenha neste exato momento na saúde brasileira: a gente tem um grande avanço que a gente tem a primeira secretaria de informação e digitalização do Brasil. A Secretaria de Informação e Saúde Digital – SEIDIGI vem com uma proposta de trazer inovação, modernização, de trazer a perspectiva da Saúde digital mais consolidada”, afirma Joyce. Porém, quando nós olhamos as infraestruturas que estão permeando o governo federal, os datas-centers onde os dados estão sendo armazenados, dentro dessa perspectiva os dados tanto a forma como eles estão sendo armazenados quanto eles estão sendo processados por sistemas algorítmicos, tem sido feito pelo setor privado.
“Falta uma política de Soberania de dados e uma política de soberania digital dentro do país. A SEIDIGI, junto com o Ministério da Saúde, têm total condição de desenvolver uma política de desenvolvimento da Saúde Digital Nacional”, alega Joyce que acrescenta que o Brasil tem condição de desenvolver isso. “Temos grandes centros de pesquisa, grandes universidades no Brasil, excelentes pesquisadoras e pesquisadores que com certeza poderiam atuar na construção dessa Saúde Digital. O que eu vejo que falta é uma política econômica voltada a isso”.